ERRO 1:QUEM É ADULTO NESTA
SALA?
Amanhecer de um dia normal de aula. Atacado por furiosa
conjuntivite, coloco óculos escuros e encaro a turma. É ruim dar aulas com a
sensação de areia nos olhos, mas é ainda pior com a garganta doendo numa
inflamação, eu me consolo.
Mal entro na sala e chamo a atenção, é claro, pelos
óculos escuros naquela hora ainda nublada do amanhecer. Um aluno do fundo
(sempre no fundo...) fala em voz bem alta -” Foi boa a noitada, professor?” Eu
respondo com a mesma rapidez: -” Sua mãe não reclamou”.
A turma faz um “ohhh” geral. O gaiato fica vermelho. Fui
enfrentado com ironia naquela ora. Respondi com energia e violência ainda
maiores. O aluno fica em silêncio. Ambos nos enfrentamos antes do bom-dia e,
aparentemente, eu venci. Isso faz quase 20 anos.
Passado esse tempo, sempre refleti sobre esse pequeno
incidente e sobre minha resposta que circulou pelos corredores com lenda urbana
por anos. Por algum tempo, eu me orgulhei da rapidez do meu raciocínio e do não
intimidamento diante de uma afronta pessoal. Pensava com meus botões: “Coloquei
fulano no seu lugar.”
Incidente pequeno, mas queria refletir para pensar sobre
o que fiz. Lido com jovens em fase de formação. Muitos deles estão descobrindo
coisas estruturais. Diante de uma frase cortante que desloca meu problema de
conjuntivite para uma vida boêmia que nunca tive, irrito-me e respondo na mesma
chave e tom.
Olhando a distância, penso que fui um completo babaca.
Fui imaturo. Primeiro porque, de fato, calei o suposto agressor com um
contragolpe. Mas, ele não era meu agressor. Não era pessoal. Não sou o alvo
dele. Não era contra mim, de fato. TOMAR FRASES E GESTOS DE ALUNOS COMO
PESSOAIS É UM ERRO GRAVE. O tom blasé de tantos jovens ou a agressividade não
nasceu quando eles me conheceram e não vai se encerrar comigo. Como um
xingamento de trânsito, não é dirigido especificamente a mim, mas a tudo. Seria
como o juiz que ouve da torcida um comentário sobre a sua mãe e supor que a
torcida examinou a ele, juiz fulano de tal, e a sua progenitora, e deduziu que,
dadas as circunstâncias do comportamento moral da dita mãe, ele, juiz, seria um
filho da p.... Bem, nunca ocorre isso. A torcida que assim grita nem conhece a
suposta senhora. Meu aluno também não me conhece. Tento colocar isso na cabeça.
NÃO É PESSOAL.
O segundo ponto é mais grave para um professor. Diante de
um suposto ataque, meu contra-ataque calou o agressor. A que preço? Alto
demais: este aluno terá medo de fazer perguntas públicas no futuro. Pior, a
turma passou a temer minhas respostas ácidas e cortantes. Salvei minha “dignidade”
ao preço do sacrifício do principal: o ambiente tranquilo e de confiança no
qual podem fluir perguntas e questionamentos de uma turma. Definir que é macho
alfa funciona num bando de mamíferos selvagens. Numa sala de aula não.
Por fim e mais importante: quando um aluno joga uma coisa
dessas em público, há uma pergunta implícita. Quem aqui é o adolescente e quem
é o adulto? Quando respondo da maneira como eu respondi, estou dizendo com
clareza: ambos somos adolescentes, nenhum de nós amadureceu. No caso de alguém
da idade dele, natural; no meu caso, um equívoco.
Se eu tivesse sido sábio e tido essa reflexão antes de
tudo, imagino a seguinte cena alternativa que nunca ocorreu:
“- Foi boa a noitada professor?” Eu, então, calmamente,
tiraria os óculos, mostraria os olhos inchados e vermelhos e comentaria sobre
os problemas da conjuntivite e como se deveria fazer para evita-la. Seria uma
resposta de adulto a uma provocação de adolescente. Eu não seria citado anos a
fio nos corredores como alguém de raciocínio rápido e venenoso. Não teria tido
o prazer de humilhar um jovem. Melhor ainda: alguns perceberiam que, se mesmo
estando doente, eu tinha ido dar aulas, é porque eu valorizo muito o espaço do
aprendizado. Seria uma lição de vida e educativa. Arranharia meu narciso e meu
orgulho e, exatamente por isso, eu teria sido melhor professor.
THE WALL:
LEANDRO
KARNAL (Conversas com um Jovem Professor, Editora Contexto, 2012, pp.30-32)
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