ERRO 2: AGORA VOCÊS
VÃO VER...
Em São Paulo, dei aula numa escola de ensino médio que
tinha algumas dificuldades. Uma delas era estar começando e formada, por consequência,
por dezenas de alunos com origens distintas. Era um espaço desafiador, mas
muito difícil.
O começo de tudo lá foi um caos. Não havia filosofia ou
linha clara de ação e todos pareciam muito perdidos. A liberdade concedida aos
alunos era digerida com leituras muito diversas, muitas ruins.
Após dois meses de luta intensa com tudo, inclusive a
disciplina, chegamos ao período das provas bimestrais. Elaborei provas
particularmente difíceis. Estava claro para mim que eu queria mostrar um padrão
alto e chamar a atenção deles para a seriedade do trabalho. O resultado era a “crônica
de uma morte anunciada”. A prova foi um desastre quanto aos resultados.
Consegui o que queria. Chamei a atenção. Imediatamente,
após alguma revolta, eu tinha muito mais atenção dos alunos do que antes. Eu
era um professor de quem era preciso assistir a todas as aulas. O respeito
tinha sido estabelecido.
Nunca duvidei de que as provas devem ser as mais pensadas
possíveis. (...) Mas, olhando aquela primeira prova bimestral naquela escola,
percebi que ao lado do respeito estava meu ego. Meu objetivo não era, de forma
líquida e clara, o aprendizado ou sua medida. Meu objetivo estava em mim. Nessa
e tantas ocasiões, percebi que eu tinha agido mal porque não tinha mirado no
meu objeto.
Ao contrário de alguns colegas, nunca fui de ameaçar
alunos. Minha ameaça existia, mas não era enunciada dessa forma. Era colocada
devolvendo as provas bem corrigidas, cheias de observações. O trabalho era
sério, muito sério. Mas suponho, cada vez mais, que era um trabalho de me
valorizar.
Eu entrava tenso em dia de prova. Separava bem todos os
alunos, elaborava muitos modelos de provas. Tornava todos semelhantes. Dezenas
de alunos colaram de provas erradas comigo a vida inteira. Andava pela sala e
dava viradas rápidas. Ficava atrás deles esperando se algum me buscava com
olhar, sinal claro de intenção criminal... Dentro de mim a ideia: agora
vocês vão ver...
Somos seres portadores de uma habilidade terrível.
Raramente enunciamos nossos medos e maldades sem revesti-los de uma cândida
camada de boas intenções. Nossa tradição moral e religiosa causa estranhamento
com ações claramente egoístas. Preferimos dizer: “Eu vou denunciar isto, mas é
pelo bem desta pessoa.” Travestimos covardias com elaborações morais belíssimas.
A questão mais difícil para trabalhar como professor já
estava enunciada antes, no problema n.º 1. Meu eu fala mais algo do que
qualquer outra coisa. O exercício do professor, do médico, do psicólogo é
sempre estar sensível ao outro e não a si. Não é algo superficial nem um
detalhe.
Ghandi dizia que só as formas pacíficas elaboram coisas
duradouras. Significa que a violência pode, perfeitamente, construir coisas.
Aliás, suponho até que as formas violentas construam de modo mais rápido do que
qualquer outro recurso. Mas não é duradouro.
O dia da prova é um dia de tensão. Tudo que estiver ao
meu alcance deve ser feito para diminuir essa tensão. Não se trata de pedagogia
do coitadinho. Não estou defendendo que nunca devemos provocar nenhuma tensão
ou que os alunos ficam traumatizados por qualquer coisa. Defendo que o ambiente
seja o mais tranquilo possível para que cada aluno possa colocar a maior
quantidade de informações e processos mentais que ele acumulou. Defendo a
tranquilidade para que eu possa dar zero ou dez, sabendo que o zero ou o dez
correspondem, dentro do possível, ao que meu aluno aprendeu, e não a sua pane
na hora da prova.
Volto ao nosso hábito de durar a pílula. Haverá colegas
que dirão: é preciso treinar o aluno para a tensão da vida e a prova é parte
dessa tensão. Fazem o que eu sempre fiz: disfarçam algo que mira em outro
vetor.
Muito curioso o magistério. Se um médico consegue curar
todos os pacientes de um hospital e todos retornam as suas casas com saúde
integral, ele é saudado como um gênio habilidoso e louvado universalmente. Se
eu conseguir dar nota máxima ou alta a todos os meus alunos porque genuinamente
aprenderam, eu, os colegas e todo o sistema vamos desconfiar de que há algo
errado.
Aqui se revela o eu. Nosso eu é forte ao dar aula. As
provas fazem parte desse processo. Não acho que a avaliação deva ser um
exercício lúdico sempre. Mas, se a injeção já é ardida por natureza, enfiá-la
de uma só vez e aos gritos de que será terrível não melhora em nada a eficácia
do medicamento, pelo contrário.
Percebo, hoje, que se aposta numa natureza essencialmente
má do ser humano. Apostando numa “natureza má”, acreditamos que ele só fará
coisas quando for coagido. Estas são dúvidas clássicas dos professores: Por que
eles estudarão? Porque a prova é difícil. Por que eles ficarão em silêncio?
Porque eles sabem que tudo o que eu disser é importante para a avaliação. Os
meios são errados e o fim também. Mas a força é mais rápida que a sedução.
Quando jovens – já disse e direi de novo – ensinamos mais
do que sabemos e queremos ser importantes para nossos alunos. Quando mais velhos,
por vezes, ensinamos menos do que sabemos e deixamos de querer ser importantes.
Nos dois casos, o eu do professor é o objetivo de tudo: querendo atenção ou
sendo indiferente a ela.
LEANDRO
KARNAL (Conversas com um Jovem Professor, Editora Contexto, 2012, pp.33-35)
Sensacional! Vou agora mesmo procurar o livro inteiro! Sou professor e estou organizando umas ideias sobre o tema em um livrinho. Grato!
ResponderExcluirEu agradeço pela visita, volte sempre.
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