FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à
prática docente. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
Síntese elaborada por Carlos R. Paiva – publicada na Revista de
Educação nº 15
Capítulo l - NÃO HÁ DOCÊNCIA SEM DISCÊNCIA
Ensinar não é transferir conhecimentos e conteúdos, nem formar é a ação pela qual um sujeito
criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Não
há docência sem discência, as duas se explicam, e seus sujeitos,
apesar das diferenças, não se reduzem à condição de objeto um do
outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao
aprender. Ensinar exige rigorosidade metodológica Ensinar não se esgota
no tratamento do objeto ou do conteúdo, superficialmente feito, mas se
alonga à produção das condições em que aprender criticamente é
possível. E estas condições exigem a presença de educadores e de
educandos criadores, investigadores, inquietos, curiosos, humildes e
persistentes. Faz parte das condições em que aprender criticamente é
possível a pressuposição, por parte dos educandos, de que o educador
já teve ou continua tendo experiência da produção de saberes, e que
estes, não podem ser simplesmente transferidos a eles. Pelo contrário,
nas condições de verdadeira aprendizagem, tanto educandos quanto
educadores transformam-se em sujeitos do processo de aprendizagem. Só
assim podemos falar realmente de saber ensinado, em que o objeto
ensinado é aprendido na sua razão de ser. Percebe-se, assim, a
importância do papel do educador, com a certeza de que faz parte de
sua tarefa docente não apenas ensinar os conteúdos, mas também ensinar
a pensar certo - um professor desafiador, crítico. Ensinar exige
pesquisa Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Hoje se fala
muito no professor pesquisador, mas isto não é uma qualidade, pois faz
parte da natureza da prática docente a indagação, a busca, a pesquisa.
Precisamos que o professor se perceba e se assuma como pesquisador.
Pensar certo é uma exigência que os momentos do ciclo gnosiológico
impõem à curiosidade que, tornando-se mais e mais metodologicamente
rigorosa, transforma-se no que Paulo Freire chama de "curiosidade
epistemológica". Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos A
escola deve respeitar os saberes dos educandos – socialmente
construídos na prática comunitária - discutindo, também, com os
alunos, a razão de ser de alguns deles em relação ao ensino dos
conteúdos. Por que não aproveitar a experiência dos alunos que vivem
em áreas descuidadas pelo poder público para discutir a poluição dos
riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem-estar das populações,
os lixões e os riscos que oferecem à saúde? Por que não associar as
disciplinas estudadas à realidade concreta, em que a violência é a
constante e a convivência das pessoas com a morte é muito maior do que
com a vida? Ensinar exige criticidade A superação, ao invés da ruptura,
se dá na medida em que a curiosidade ingênua, associada ao saber
comum, se criticiza, aproximando-se de forma cada vez mais
metodologicamente rigorosa do objeto cognoscível, tornando-se
curiosidade epistemológica.
Muda de qualidade, mas não de essência, e essa mudança não se dá
automaticamente. Essa é uma das principais tarefas do educador
progressista - o desenvolvimento da curiosidade crítica, insatisfeita,
indócil. Ensinar exige estética e ética A necessária promoção da
ingenuidade à criticidade não pode ser feita sem uma rigorosa formação
ética e estética. Decência e boniteza andam de mãos dadas. Mulheres e
homens, seres histórico-sociais, tornamo-nos capazes de comparar, de
valorar, de intervir, de escolher, de decidir, de romper. Por tudo
isso nos fizemos seres éticos. Só somos porque estamos sendo. Estar
sendo é a condição, entre nós, para ser. Não é possível pensar os
seres humanos longe da ética. Quanto mais fora dela, maior a
transgressão. Ensinar exige a corporificação das palavras pelo
exemplo Quem pensa certo está cansado de saber que palavras sem exemplo
pouco ou nada valem. Pensar certo é fazer certo (agir de acordo com o
que pensa). Não há pensar certo fora de uma prática testemunhal, que o rediz em
lugar de desdizê-lo. Não é possível ao professor pensar que pensa
certo (de forma progressista), e, ao mesmo tempo, perguntar ao aluno
se "sabe com quem está falando". Ensinar exige risco, aceitação do novo
e rejeição a qualquer forma de discriminação. É próprio do pensar certo
a disponibilidade ao risco, a aceitação do novo que não pode ser
negado ou acolhido só porque é novo, assim como critério de recusa ao
velho não é o cronológico. O velho que preserva sua validade encarna
uma tradição ou marca uma presença no tempo continua novo. Faz parte
igualmente do pensar certo a rejeição mais decidida a qualquer forma
de discriminação. A prática preconceituosa de raças, de classes, de
gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a
democracia. Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática A prática
docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento
dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer. É
fundamental que, na prática da formação docente, o aprendiz de
educador assuma que o indispensável pensar certo não é presente dos
deuses nem se acha nos guias de professores que, iluminados
intelectuais, escrevem desde o centro do poder. Pelo contrário, o
pensar certo que supera o ingênuo tem de ser produzido pelo próprio
aprendiz, em comunhão com o professor formador. É preciso possibilitar
que a curiosidade ingênua, através da reflexão sobre a prática, vá
tornando-se crítica. Na formação permanente dos professores, o momento
fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando
criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a
próxima prática. O discurso teórico, necessário à reflexão crítica,
tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a
prática. Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade
cultural A questão da identidade cultural, com sua dimensão individual
e da classe dos educandos, cujo respeito é absolutamente fundamental
na prática educativa progressista, é problema que não pode ser
desprezado. Tem a ver diretamente com a assunção de nós por nós
mesmos. É isto que o puro treinamento do professor não faz, perdendo-
se na estreita e pragmática visão do processo.
Capítulo 2 - ENSINAR NÃO É TRANSFERIR CONHECIMENTO
Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria construção. Quando o educador entra em uma sala de aula, deve estar aberto a indagações,
curiosidade e inibições dos alunos: um ser crítico e inquiridor,
inquieto em face da tarefa que tem - a de ensinar e não a de
transferir conhecimento. Pensar certo é uma postura exigente, difícil,
às vezes penosa, que temos de assumir diante dos outros e com os
outros, em face do mundo e dos fatos, ante nós mesmos. É difícil,
entre outras coisas, pela vigilância constante que temos de exercer
sobre nós mesmos para evitar os simplismos, as facilidades, as
incoerências grosseiras. É difícil porque nem sempre temos o valor
indispensável para não permitir que a raiva que podemos ter de alguém
vire raivosidade, gerando um pensar errado e falso. É cansativo, por
exemplo, viver a humildade, condição sine qua non do pensar certo, que
nos faz proclamar o nosso próprio equívoco, que nos faz reconhecer e
anunciar a superação que sofremos. Sem rigorosidade metódica não há
pensar certo. Ensinar exige consciência do inacabamento Na verdade, a
inconclusão do ser é própria de sua experiência vital. Onde há vida,
há inconclusão, embora esta só seja consciente entre homens e
mulheres. A invenção da existência envolve necessariamente a
linguagem, a cultura, a comunicação em níveis mais profundos e
complexos do que ocorria e ocorre no domínio da vida, a
espiritualização do mundo, a possibilidade não só de embelezar, mas
também de enfear o mundo; tudo isso inscreveria mulheres e homens como
seres éticos. Só os seres que se tornaram éticos podem romper com a
ética. É necessário insistir na problematização do futuro e recusar
sua inexorabilidade. Ensinar exige o reconhecimento de ser condicionado
"Gosto de ser gente, inacabado, sei que sou um ser condicionado, mas,
consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele. Esta é a
diferença profunda entre o ser condicionado e o ser determinado...
Afinal, minha presença no mundo não é a de quem se adapta, mas a de
quem nele se insere". E a posição de quem luta para não ser apenas
objeto, mas também sujeito da história. Histórico-sócio-
culturais,
tornamo-nos seres em quem a curiosidade, ultrapassando os limites que
lhe são peculiares no domínio vital, torna-se fundante da produção do
conhecimento. Mais ainda, a curiosidade é já o conhecimento. Como a
linguagem que anima a curiosidade e com ela se anima, é também
conhecimento e não só expressão dele. Na verdade, seria uma
contradição se, inacabado e consciente do inacabamento, o ser humano
não se inserisse em tal movimento. É neste sentido que, para mulheres
e homens, estar no mundo necessariamente significa estar com o mundo e
com os outros. É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se
funda a educação como processo permanente. Mulheres e homens se
tornaram educáveis na medida em que se reconheceram inacabados. O
ideal é que, na experiência educativa, educandos e educadores, juntos,
transformem este e outros saberes em sabedoria. Algo que não é
estranho a nós, educadores. Ensinar exige respeito à autonomia do ser
educando O professor, ao desrespeitar a curiosidade do educando, o seu
gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, ao ironizar o
aluno, minimizá-lo, mandar que "ele se ponha em seu lugar" ao mais
tênue sinal de sua rebeldia legítima, ao se eximir do cumprimento de
seu dever de propor limites à liberdade do aluno, ao se furtar do
dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência
formadora do educando, transgride os princípios fundamentalmente
éticos de nossa existência. É neste sentido que o professor
autoritário afoga a liberdade do educando, amesquinhando o seu direito
de ser curioso e inquieto. Qualquer discriminação é imoral e lutar
contra ela é um dever, por mais que se reconheça a força dos
condicionamentos a enfrentar. A beleza de ser gente se acha, entre
outras coisas, nessa possibilidade e nesse dever de brigar. Saber que
devo respeito à autonomia e à identidade do educando exige de mim uma
prática em tudo coerente com este saber. Ensinar exige bom senso O
exercício do bom senso, com o qual só temos a ganhar, se faz no corpo
da curiosidade. Neste sentido, quanto mais colocamos em prática, de
forma metódica, a nossa capacidade de indagar, de comparar, de
duvidar, de aferir, tanto mais eficazmente curiosos nos podemos tornar
e mais crítico se torna o nosso bom senso. O exercício do bom senso
vai superando o que há nele de instintivo na avaliação que fazemos dos
fatos e dos acontecimentos em que nos envolvemos. O meu bom senso não
me diz o que é, mas deixa claro que há algo que precisa ser sabido. É
ele que, em primeiro lugar, me diz não ser possível o respeito aos
educandos, se não se levar em consideração as condições em que eles
vêm existindo, e os conhecimentos experienciais com que chegam à
escola. Isto exige de mim uma reflexão crítica permanente sobre minha
prática. O ideal é que se invente uma forma pela qual os educandos
possam participar da avaliação. E que o trabalho do professor deve ser
com os alunos e não consigo mesmo. O professor tem o dever de realizar
sua tarefa docente. Para isso, precisa de condições favoráveis, sem as
quais se move menos eficazmente no espaço pedagógico. O desrespeito a
este espaço é uma ofensa aos educandos, aos educadores e à prática
pedagógica. Ensinar exige humildade, tolerância e luta em defesa dos
direitos dos educadores Como ser educador sem aprender a conviver com
os diferentes? Como posso respeitar a curiosidade do educando se,
carente de humildade e da real compreensão do papel da ignorância na
busca do saber, temo revelar o meu desconhecimento? A luta dos
professores em defesa de seus direitos e de sua dignidade deve ser
entendida como um momento importante de sua prática docente, enquanto
prática ética. Ainda que a prática pedagógica seja tratada com
desprezo, não tenho por que desamá-la e aos educandos. Não tenho por
que exercê-la mal. Minha resposta à ofensa à educação é a luta
política consciente, crítica e organizada dos professores. Os órgãos
de classe deveriam priorizar o empenho de formação permanente dos
quadros do magistério como tarefa altamente política, e reinventar a
forma de lutar. Ensinar exige apreensão da realidade Como professor,
preciso conhecer as diferentes dimensões que caracterizam a essência
da minha prática. O melhor ponto de partida para estas reflexões é a
inconclusão do ser humano. Aí radica a nossa educabilidade, bem como a
nossa inserção num permanente movimento de busca. A nossa capacidade de
aprender, de que decorre a de ensinar, implica a nossa habilidade de
apreender a substantividade de um objeto. Somos os únicos seres que,
social e historicamente, nos tornamos capazes de aprender. Por isso
aprender é uma aventura criadora, muito mais rica do que meramente
repetir a lição dada. Aprender é construir, reconstruir, constatar
para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do
espírito. Toda prática educativa demanda:- a existência de sujeitos -
um que, ensinando, aprende, e outro que, aprendendo, ensina (daí seu
cunho gnosiológico); - a existência de objetos, conteúdos a serem
ensinados e aprendidos;- o uso de métodos, de técnicas, de materiais.
Esta prática também implica, em função de seu caráter diretivo,
objetivos, sonhos, utopias, ideais. Daí sua politicidade, daí não ser
neutra, ser artística e moral. Exige uma competência geral, um saber
de sua natureza e saberes especiais, ligados à atividade docente. Como
professor, se a minha opção é progressista e sou coerente com ela, meu
papel é contribuir para que o educando seja o artífice de sua
formação. Devo estar atento à difícil caminhada da heteronomia para a
autonomia. "É assim que venho tentando ser professor, assumindo minhas
convicções, disponível ao saber, sensível à boniteza da prática
educativa, instigado por seus desafios..." Ensinar exige alegria e
esperança O meu envolvimento com a prática educativa jamais deixou de
ser feito com alegria, o que não significa dizer que tenha podido criá-la nos educandos. Parece-me uma contradição que uma pessoa que não
teme a novidade, que se sente mal com as injustiças, que se ofende com
as discriminações, que luta contra a impunidade, que recusa o
fatalismo cínico e imobilizante não seja criticamente esperançosa.
Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível A realidade não
é inexoravelmente esta. E esta agora, e para que seja outra,
precisamos lutar, viver a história como tempo de possibilidade, e não
de determinação. O amanhã não é algo pré-dado, mas um desafio. Não
posso, por isso, cruzar os braços. Esse é, aliás, um dos saberes
primeiros, indispensáveis a quem pretende que sua presença se torne
convivência. O mundo não é. O mundo está sendo. O meu papel no mundo
não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem
intervém como sujeito de ocorrências. Constato, não para me adaptar,
mas para mudar. No fundo, as resistências orgânicas e culturais são
manhas necessárias à sobrevivência física e cultural dos oprimidos. É
preciso, porém, que tenhamos na resistência fundamentos para a nossa
rebeldia e não para a nossa resignação em face das ofensas. Não é na
resignação que nos afirmamos, mas na rebeldia em face das injustiças.
A rebeldia é ponto de partida, é deflagração da justa ira, mas não é
suficiente. A rebeldia, enquanto denúncia, precisa se alongar até uma
posição mais radical e crítica, a revolucionária, fundamentalmente
anunciadora. Mudar é difícil, mas é possível. Ensinar exige
curiosidade Como professor, devo saber que, sem a curiosidade que me
move, não aprendo nem ensino. A construção do conhecimento implica o
exercício da curiosidade, o estímulo à pergunta, a reflexão crítica
sobre a própria pergunta. O fundamental é que professor e alunos
saibam que a postura deles é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e
não apassivada. A dialogicidade, no entanto, não nega a validade de
momentos explicativos, narrativos. O bom professor faz da aula um
desafio. Seus alunos cansam, não dormem. Um dos saberes fundamentais à
prática educativo-crítica é o que me adverte da necessária promoção da
curiosidade espontânea para a curiosidade epistemológica. Resultado do
equilíbrio entre autoridade e liberdade, a disciplina implica o
respeito de uma pela outra, expresso na assunção que ambas fazem de
limites que não podem ser transgredidos.
Capítulo 3 - ENSINAR É UMA ESPECIFICIDADE HUMANA
Creio que uma das qualidades essenciais que a
autoridade docente democrática deve revelar em suas relações com as
liberdades dos alunos é a segurança em si mesma. É a segurança que se
expressa na firmeza com que atua, com que decide, com que respeita as
liberdades, com que discute suas próprias posições, com que aceita
rever-se. Ensinar exige segurança, competência profissional e
generosidade - A segurança com que a autoridade docente se move
implica uma outra, fundada na sua competência profissional. Nenhuma
autoridade docente se exerce ausente desta competência. O professor
que não leva a sério sua formação, que não estuda, que não se esforça
para estar à altura de sua tarefa não tem força moral para coordenar
as atividades de sua classe. A incompetência profissional desqualifica
a autoridade do professor. Outra qualidade indispensável à autoridade,
em suas relações com a liberdade, é a generosidade. Não há nada que
inferiorize mais a tarefa formadora da autoridade do que a mesquinhez,
a arrogância ao julgar os outros e a indulgência ao se julgar, ou aos
seus. A arrogância que nega a generosidade nega também a humildade. O
clima de respeito que nasce de relações justas, sérias, humildes,
generosas, em que a autoridade docente e as liberdades dos alunos se
assumem eticamente, autentica o caráter formador do espaço pedagógico.
A autoridade, coerentemente democrática, está convicta de que a
disciplina verdadeira não existe na estagnação, no silêncio dos
silenciados, mas no alvoroço dos inquietos, na dúvida que instiga, na
esperança que desperta. Um esforço sempre presente à prática da
autoridade coerentemente democrática é o que a torna quase escrava de
um sonho fundamental - o de persuadir ou convencer a liberdade para a
construção da própria autonomia, ainda que reelaborando materiais
vindos de fora de si. É com a autonomia, penosamente construída e
fundada na responsabilidade, que a liberdade vai preenchendo o espaço
antes habitado pela dependência. O fundamental no aprendizado do
conteúdo é a construção da responsabilidade da liberdade que se
assume. O essencial nas relações entre autoridade e liberdade é a
reinvenção do ser humano no aprendizado de sua autonomia. Nunca me foi
possível separar dois momentos - o ensino dos conteúdos da formação
ética dos educandos. O saber desta impossibilidade é fundamental à
prática docente. Quanto mais penso sobre a prática educativa,
reconhecendo a responsabilidade que ela exige de nós, mais me convenço
do nosso dever de lutar para que ela seja realmente respeitada: Ensinar
exige comprometimento Não posso ser professor sem me pôr diante dos
alunos, sem revelar com facilidade ou relutância minha maneira de ser,
de pensar politicamente. Não posso escapar à apreciação dos alunos. E
a maneira como eles me percebem tem importância capital para o meu
desempenho. Daí, então, que uma de minhas preocupações centrais deva
ser a de procurar a aproximação cada vez maior entre o que digo e o
que faço, entre o que pareço ser e o que realmente estou sendo. Isto
aumenta em mim os cuidados com o meu desempenho. Se a minha opção é
democrática, progressista, não posso ter uma prática reacionária,
autoritária, elitista. Minha presença de professor é, em si, política.
Enquanto presença, não posso ser uma omissão, mas um sujeito de
opções. Devo revelar aos alunos a minha capacidade de analisar, de
decidir, de optar e de romper, minha capacidade de fazer justiça, de
não falhar à verdade. Ético, por isso mesmo, tem que ser o meu
testemunho. Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de
intervenção no mundo Outro saber de que 'não posso duvidar na minha
prática educativo-crítica é que, como experiência especificamente
humana, a educação é uma forma de intervenção no mundo. Intervenção
esta que, além do conhecimento dos conteúdos, bem ou mal ensinados e/
ou aprendidos, implica tanto o esforço da reprodução da ideologia
dominante quanto o seu desmascaramento. Nem somos seres simplesmente
determinados nem tampouco livres de condicionamentos genéticos,
culturais, sociais, históricos, de classe, de gênero, que nos marcam e
a que nos achamos referidos. Continuo aberto à advertência de Marx, a
da necessária radicalidade, que me faz sempre desperto a tudo o que
diz respeito à defesa dos interesses humanos. Interesses superiores
aos de grupos ou de classes de pessoas. Não posso ser professor se não
percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática
exige de mim uma definição, uma tomada de posição, uma ruptura. Exige
que eu escolha entre isto e aquilo. Não posso ser professor a favor de
quem quer que seja e a favor de não importa o quê. Não posso ser
professor a favor simplesmente da Humanidade, frase de uma vaguidade
demasiado contrastante com a concretude da prática educativa. Sou
professor a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade
contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da
democracia contra a ditadura. Sou professor a favor da luta constante
contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica
dos indivíduos ou das classes sociais, contra a ordem vigente que
inventou a aberração da miséria na fartura. Sou professor a favor da
esperança que me anima, apesar de tudo. Contra o desengano que consome
e imobiliza e a favor da boniteza de minha própria prática. Tão
importante quanto o ensino dos conteúdos é a minha coerência na
classe. A coerência entre o que digo, o que escrevo e o que
faço. Ensinar exige liberdade e autoridade O problema que se coloca para
o educador democrático é como trabalhar no sentido de fazer possível
que a necessidade do limite seja assumida eticamente pela liberdade.
Sem os limites, a liberdade se perverte em licença e a autoridade em
autoritarismo. Por outro lado, faz parte do aprendizado a assunção das
conseqüências do ato de decidir. Não há decisão que não seja seguida
de efeitos esperados, pouco esperados ou inesperados. Por isso a
decisão é um processo responsável. É decidindo que se aprende a
decidir. Não posso aprender a ser eu mesmo se não decido nunca, porque
há sempre a sabedoria e a sensatez de meu pai e de minha mãe a decidir
por mim. Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia
vai se construindo na experiência. Ninguém é sujeito da autonomia de
ninguém. Por outro lado, ninguém amadurece de repente. A gente vai
amadurecendo todo dia, ou não. A autonomia é um processo, não ocorre
em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de
estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da
responsabilidade, ou seja, que respeitam a liberdade. Ensinar exige
tomada consciente de decisões Voltemos à questão central desta parte do
texto - a educação, especificidade humana, como um ato de intervenção
no mundo.
Quando falo em educação como intervenção me refiro tanto a que aspira
a mudanças radicais na sociedade, no campo da economia, das relações
humanas, da propriedade, do direito ao trabalho, à terra, à educação,
à saúde, quanto a que, reacionariamente, pretende imobilizar a
História e manter a ordem injusta. E que dizer de educadores que se
dizem progressistas, mas de prática pedagógica-política eminentemente
autoritária? A raiz mais profunda da politicidade da educação se acha
na educabilidade do ser humano, que se funda em sua natureza inacabada
e da qual se tornou consciente. Inacabado e consciente
disso, necessariamente o ser humano se faria um ser ético, um ser de
opção, de decisão. Um ser ligado a interesses e em relação aos quais
tanto pode manter-se fiel à ética quanto pode transgredi-la. Se a
educação não pode tudo, pode alguma coisa fundamental. Se a educação
não é a chave das mudanças, não é também simplesmente reprodutora da
ideologia dominante.
O que quero dizer é que a educação nem é uma força imbatível a serviço
da transformação da sociedade nem tampouco é a perpetuação do status
quo.
Ensinar exige saber escutar
Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é
falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos os
portadores da Verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a
escutar, mas é escutando que aprendemos & falar com eles.Os sistemas
de avaliação pedagógica de alunos e de professores vêm se assumindo
cada vez mais como discursos verticais, de cima para baixo, mas
insistindo em passar por democráticos. A questão que se coloca a nós é
lutar em favor da compreensão e da prática da avaliação, enquanto
instrumento de apreciação do que fazer, de sujeitos críticos a
serviço, por isso mesmo, da libertação e não da domesticação.
Avaliação em que se estimule o falar a como caminho para o falar com.
Quem tem o que dizer, tem igualmente o direito e o dever de dizê-lo. É
preciso, porém, que o sujeito saiba não ser o único a ter algo a
dizer. Mais ainda, que esse algo, por mais importante que seja, não é
a verdade alvissareira por todos esperada.
Por isso é que acrescento, quem tem o que dizer deve assumir o dever
de motivar, de desafiar quem escuta, para que este diga, fale,
responda. É preciso enfatizar - ensinar não é transferir a
inteligência do objeto ao educando, mas instigá-lo no sentido de que,
como sujeito cognoscente, torne-se capaz de inteligir e comunicar o
inteligido. É neste sentido que se impõe a mim escutar o educando em
suas dúvidas, em seus receios, em sua incompetência provisória. E ao
escutá-lo, aprendo a falar com ele. Aceitar e respeitar a diferença é
uma das virtudes sem a qual a escuta não pode acontecer. Tarefa
essencial da escola, como centro de produção sistemática de
conhecimento, é trabalhar criticamente a i das coisas e dos fatos e a
sua comunicabilidade. Ensinar exige reconhecer que a educação é
ideológica Saber igualmente fundamental à prática educativa do
professor é o que diz respeito à força, às vezes, maior do que
pensamos da ideologia. É o que nos adverte de suas manhas, das
armadilhas em que nos faz cair.
A ideologia tem a ver diretamente com a ocultação da verdade dos
fatos, com o uso da linguagem para penumbrar ou opacizar a realidade,
ao mesmo tempo em que nos torna míopes. No exercício crítico de minha
resistência ao poder da ideologia, vou gerando certas qualidades que
vão virando sabedoria indispensável à minha prática docente. A
necessidade desta resistência crítica, por exemplo, me predispõe, de
um lado, a uma atitude sempre aberta aos demais, aos dados da
realidade; de outro, a uma desconfiança metódica que me defende de
tornar-me absolutamente certo das certezas. Para me resguardar das
artimanhas da ideologia não posso nem devo me fechar aos outros, nem
tampouco me enclausurar no ciclo de minha verdade. Pelo contrário, o
melhor caminho para guardar viva e desperta a minha capacidade de
pensar certo, de ver com acuidade, de ouvir com respeito, por isso de
forma exigente, é me deixar exposto às diferenças, é recusar posições
dogmáticas, em que me admita como dono da verdade.
Ensinar exige disponibilidade para o diálogo Nas minhas relações com
os outros, que não fizeram necessariamente as mesmas opções que fiz,
no nível da política, da ética, da estética, da pedagogia, nem posso
partir do pressuposto que devo conquistá-los, não importa a que custo,
nem tampouco temer que pretendam conquistar-me. É no respeito às
diferenças entre mim e eles, na coerência entre o que faço e o que
digo, que me encontro com eles. O sujeito que se abre ao mundo e aos
outros inaugura, com seu gesto, a relação dialógica em que se confirma
como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente
movimento na história. Como ensinar, como formar sem estar aberto ao
contorno geográfico, social, dos educandos? Com relação a meus alunos,
diminuo a distância que me separa de suas condições negativas de vida
na medida em que os ajudo a aprender não importa que saber, o do
torneio ou do cirurgião, com vistas à mudança do mundo, à superação
das estruturas injustas, jamais com vistas à sua imobilização. Debater
o que se diz e o que se mostra e como se mostra na televisão me parece
algo cada vez mais importante.
Como educadores progressistas não apenas não podemos desconhecer a
televisão, mas devemos usá-la, sobretudo, discuti-la. Não podemos nos
pôr diante de um aparelho de televisão entregues ou disponíveis ao que
vier. Ensinar exige querer bem aos educandos O que dizer e o que
esperar de mim, se, como professor, não me acho tomado por este outro
saber, o de que preciso estar aberto ao gosto de querer bem, às vezes,
à coragem de querer bem aos educandos e à própria prática educativa de
que participo. Na verdade, preciso descartar como falsa a separação
radical entre seriedade docente e afetividade. A afetividade não se
acha excluída da cognoscibilidade.
O que não posso, obviamente, permitir é que minha afetividade
interfira no cumprimento ético de meu dever de professor no exercício
de minha autoridade. Não posso condicionar a avaliação do trabalho
escolar de um aluno ao maior ou menor bem querer que tenha por ele. É
preciso, por outro lado, reinsistir em que não se pense que a prática
educativa vivida com afetividade e alegria prescinda da formação
científica séria e da clareza política dos educadores. Nunca idealizei
a prática educativa. Em tempo algum a vi como algo que, pelo menos,
parecesse com um que-fazer de anjos. Jamais foi fraca em mim a certeza
de que vale a pena lutar contra os descaminhos que nos obstaculizam de
ser mais.
Como prática estritamente humana, jamais pude entender a educação como
uma experiência fria, sem alma, em que os sentimentos e as emoções, os
desejos e os sonhos devessem ser reprimidos por uma espécie de
ditadura reacionalista. Jamais compreendi a prática educativa como uma
experiência a que faltasse o rigor em que se gera a necessária
disciplina intelectual. Estou convencido de que a rigorosidade, a
séria disciplina intelectual, o exercício da curiosidade
epistemológica não me fazem necessariamente um ser mal-amado,
arrogante, cheio de mim mesmo. Nem a arrogância é sinal de competência
nem a competência é causa de arrogância. Certos arrogantes, pela
simplicidade, se fariam gente melhor.