quinta-feira, 8 de junho de 2017

LEANDRO KARNAL ESCREVE SOBRE O EGO DO PROFESSOR E A TENSÃO NOS DIAS DE AVALIAÇÃO



ERRO 2: AGORA VOCÊS VÃO VER...

            Em São Paulo, dei aula numa escola de ensino médio que tinha algumas dificuldades. Uma delas era estar começando e formada, por consequência, por dezenas de alunos com origens distintas. Era um espaço desafiador, mas muito difícil.
            O começo de tudo lá foi um caos. Não havia filosofia ou linha clara de ação e todos pareciam muito perdidos. A liberdade concedida aos alunos era digerida com leituras muito diversas, muitas ruins.
            Após dois meses de luta intensa com tudo, inclusive a disciplina, chegamos ao período das provas bimestrais. Elaborei provas particularmente difíceis. Estava claro para mim que eu queria mostrar um padrão alto e chamar a atenção deles para a seriedade do trabalho. O resultado era a “crônica de uma morte anunciada”. A prova foi um desastre quanto aos resultados.
            Consegui o que queria. Chamei a atenção. Imediatamente, após alguma revolta, eu tinha muito mais atenção dos alunos do que antes. Eu era um professor de quem era preciso assistir a todas as aulas. O respeito tinha sido estabelecido.
            Nunca duvidei de que as provas devem ser as mais pensadas possíveis. (...) Mas, olhando aquela primeira prova bimestral naquela escola, percebi que ao lado do respeito estava meu ego. Meu objetivo não era, de forma líquida e clara, o aprendizado ou sua medida. Meu objetivo estava em mim. Nessa e tantas ocasiões, percebi que eu tinha agido mal porque não tinha mirado no meu objeto.
            Ao contrário de alguns colegas, nunca fui de ameaçar alunos. Minha ameaça existia, mas não era enunciada dessa forma. Era colocada devolvendo as provas bem corrigidas, cheias de observações. O trabalho era sério, muito sério. Mas suponho, cada vez mais, que era um trabalho de me valorizar.
            Eu entrava tenso em dia de prova. Separava bem todos os alunos, elaborava muitos modelos de provas. Tornava todos semelhantes. Dezenas de alunos colaram de provas erradas comigo a vida inteira. Andava pela sala e dava viradas rápidas. Ficava atrás deles esperando se algum me buscava com olhar, sinal claro de intenção criminal... Dentro de mim a ideia: agora vocês vão ver...

            Somos seres portadores de uma habilidade terrível. Raramente enunciamos nossos medos e maldades sem revesti-los de uma cândida camada de boas intenções. Nossa tradição moral e religiosa causa estranhamento com ações claramente egoístas. Preferimos dizer: “Eu vou denunciar isto, mas é pelo bem desta pessoa.” Travestimos covardias com elaborações morais belíssimas.
            A questão mais difícil para trabalhar como professor já estava enunciada antes, no problema n.º 1. Meu eu fala mais algo do que qualquer outra coisa. O exercício do professor, do médico, do psicólogo é sempre estar sensível ao outro e não a si. Não é algo superficial nem um detalhe.

            Ghandi dizia que só as formas pacíficas elaboram coisas duradouras. Significa que a violência pode, perfeitamente, construir coisas. Aliás, suponho até que as formas violentas construam de modo mais rápido do que qualquer outro recurso. Mas não é duradouro.
            O dia da prova é um dia de tensão. Tudo que estiver ao meu alcance deve ser feito para diminuir essa tensão. Não se trata de pedagogia do coitadinho. Não estou defendendo que nunca devemos provocar nenhuma tensão ou que os alunos ficam traumatizados por qualquer coisa. Defendo que o ambiente seja o mais tranquilo possível para que cada aluno possa colocar a maior quantidade de informações e processos mentais que ele acumulou. Defendo a tranquilidade para que eu possa dar zero ou dez, sabendo que o zero ou o dez correspondem, dentro do possível, ao que meu aluno aprendeu, e não a sua pane na hora da prova.

            Volto ao nosso hábito de durar a pílula. Haverá colegas que dirão: é preciso treinar o aluno para a tensão da vida e a prova é parte dessa tensão. Fazem o que eu sempre fiz: disfarçam algo que mira em outro vetor.
            Muito curioso o magistério. Se um médico consegue curar todos os pacientes de um hospital e todos retornam as suas casas com saúde integral, ele é saudado como um gênio habilidoso e louvado universalmente. Se eu conseguir dar nota máxima ou alta a todos os meus alunos porque genuinamente aprenderam, eu, os colegas e todo o sistema vamos desconfiar de que há algo errado.

            Aqui se revela o eu. Nosso eu é forte ao dar aula. As provas fazem parte desse processo. Não acho que a avaliação deva ser um exercício lúdico sempre. Mas, se a injeção já é ardida por natureza, enfiá-la de uma só vez e aos gritos de que será terrível não melhora em nada a eficácia do medicamento, pelo contrário.
            Percebo, hoje, que se aposta numa natureza essencialmente má do ser humano. Apostando numa “natureza má”, acreditamos que ele só fará coisas quando for coagido. Estas são dúvidas clássicas dos professores: Por que eles estudarão? Porque a prova é difícil. Por que eles ficarão em silêncio? Porque eles sabem que tudo o que eu disser é importante para a avaliação. Os meios são errados e o fim também. Mas a força é mais rápida que a sedução.

            Quando jovens – já disse e direi de novo – ensinamos mais do que sabemos e queremos ser importantes para nossos alunos. Quando mais velhos, por vezes, ensinamos menos do que sabemos e deixamos de querer ser importantes. Nos dois casos, o eu do professor é o objetivo de tudo: querendo atenção ou sendo indiferente a ela.
LEANDRO KARNAL (Conversas com um Jovem Professor, Editora Contexto, 2012, pp.33-35)
                

2 comentários:

  1. Sensacional! Vou agora mesmo procurar o livro inteiro! Sou professor e estou organizando umas ideias sobre o tema em um livrinho. Grato!

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