sábado, 23 de abril de 2022

CORTIÇOS OU FAVELAS? QUAL DOS MALES O MENOR?

 

       Ao reler “O Cortiço” de Aluísio Azevedo, veio-me a seguinte questão, o que é (era – será) melhor, morar num Cortiço ou numa Favela (já que tinha lido também Carolina Maria de Jesus – Quarto de Despejo – O Diário de uma Favelada)?

       Ao fazer uma rápida pesquisa encontrei um site denominado “Caos Planejado”, cujo artigo de Anthony Ling, me aclarou razoavelmente a questão.

       É óbvio que o ideal seria que todos os brasileiros tivessem sua moradia condignamente, e esta deve ser a utopia buscada com urgência.

       A utopia nos serve de orientação para o caminho a ser tomado, caminho este, que passa pelo conhecimento da realidade, e isso que vamos fazer agora.

 

Cortiços eram Melhores que as Favelas?!?

No imaginário popular, cortiços eram o que existia de pior como moradia nas cidades brasileiras. Como poderiam então ser melhores que as nossas favelas? (Anthony Ling).

       No imaginário popular, cortiços eram o que existia de pior como moradia nas cidades brasileiras. Enraizado na nossa cultura e registrado no clássico de Aluísio Azevedo, cortiços eram moradias insalubres e dilapidadas, onde doenças se proliferavam, onde habitava a escória da sociedade e de onde proprietários exploravam os moradores com aluguéis abusivos.

     Tão forte é esta noção que, historicamente, a solução simplista, de São Paulo a Recife, foi a proibição e a destruição dos cortiços como medida de “saúde pública”. No seu lugar, vias largas atravessaram os cortiços como na Reforma Passos[1], no Rio de Janeiro, abrindo caminho para uma cidade mais “arejada”, noção importante na saúde pública no passado, que acreditava que a aglomeração e os “ares ruins” do “miasma[2]” ajudavam a proliferar doenças.

 

Acesso à moradia

       Embora de má qualidade, cortiços providenciaram um primeiro passo no acesso à moradia em uma sociedade brasileira que ainda era muito pobre e mais desigual que hoje. Como relata o urbanista Nabil Bonduki, migrantes que chegavam a São Paulo no início do século XX tinham acesso a um mercado onde:

“Uma espécie de ‘rentiers[3] urbanos’ pôde produzir uma ampla diversidade de soluções habitacionais de aluguel para os diferentes segmentos sociais e faixas de renda, dando origem a uma gama variada de tipologias que marcaram a paisagem da cidade nas primeiras décadas do século, quando a moradia operária se localizava próxima à uma zona industrial”.

“Surgem, assim, inúmeras soluções habitacionais, a maior parte buscando economizar terrenos e materiais através da geminação e da inexistência de recuos laterais ou frontais, cada qual destinado a uma capacidade de pagamento de aluguel”.

“Do cortiço, moradia operária por excelência, sequência de pequenas moradias ou cômodos insalubres ao longo de um corredor, sem instalações hidráulicas, aos palacetes padronizados produzidos para uma classe média que enriquecia, passando por soluções pobres, mas decentes, de casas geminadas em vilas ou ruas particulares, que perfuravam quarteirões, para aumentar o aproveitamento de um solo caro e disputado pela especulação imobiliária.

“Superada a aguda carência de moradias que ocorreu no início da República (lembrar que São Paulo multiplicou por seis num espaço de catorze anos!), a produção de casa e cortiços atendeu, do ponto de vista quantitativo, às necessidades da população, com exceção dos períodos críticos da Primeira Guerra Mundial e da revolução de 1924. Este relativo equilíbrio entre oferta e procura de habitação, no entanto, era proporcionado graças à produção ou adaptação para moradia popular de pequenas células insalubres, da área reduzida e precárias condições habitacionais, genericamente denominadas ‘cortiços’, consideradas o inimigo número um da saúde pública”.

       O relato histórico de Bonduki mostra que o mercado habitacional, apesar de uma forma precária, conseguia atender a demanda por moradia, deixando claras as inegáveis más condições dos cortiços. Mas é preciso fazer uma análise considerando a perspectiva da época em contraponto com nossa situação de hoje. Como os insalubres cortiços poderiam ser melhores que as nossas favelas e porque compará-los? 

Cortiços

       Em primeiro lugar, é difícil apontar um único tipo ou qualidade de cortiço. Como diz o próprio relato de Bonduki, os tipos de cortiços eram vários e, comparando com o que vemos hoje, não existia uma distância gigantesca entre o que hoje chamamos de cidade formal e informal. Existiam várias opções de moradia para diferentes faixas de renda, sem o degrau praticamente inatingível para ascensão de qualidade como é a realidade de hoje. De qualquer forma, em grande parte, cortiços eram construções em alvenaria e, embora mal acabadas, resistiam às intempéries de forma superior aos barracos autoconstruídos, em sua maioria em madeira, que marcaram o surgimento das favelas e que ainda caracterizam muitas favelas de hoje. Ou seja, a função básica da construção de proteger o habitante de chuvas fortes, incêndios ou até deslizamentos estava mais bem assegurada. Esta diferença de qualidade é exacerbada quando comparamos uma tecnologia construtiva de cem anos atrás, quando os cortiços surgiam no Brasil, com as tecnologias construtivas de hoje. Provavelmente um “cortiço” considerando tecnologias atuais teria sido verticalizado, aproveitando melhor o espaço aumentando o tamanho da edificação ao invés de diminuir o tamanho dos cômodos. Este foi o resultado da evolução da moradia em Shenzhen[4] onde tais restrições não foram efetivadas da mesma forma.

       É importante destacar que, mesmo sendo um problema, o tamanho dos cômodos e a “falta de espaços arejados” não era questão principal na salubridade dos cortiços como se acreditava e como ainda se difunde até hoje. No Brasil, até o início do século XX, se acreditava que cortiços eram focos de “miasma” e que, na ausência de espaços arejados, poderiam levar à proliferação de doenças, inclusive da febre amarela. Mesmo após a desmistificação da teoria miasmática e da descoberta de que a febre amarela era transmitida através do mosquito Aedes, este pretexto continuou sendo usado para as políticas higienistas de destruição de regiões pobres das cidades, enraizando-se na percepção popular dos cortiços até hoje.

       A questão mais relevante para a salubridade é que cortiços recebiam menos investimentos na sua infraestrutura que áreas mais ricas da cidade. Assim, com um saneamento comprometido, tornava-se foco de proliferação de doenças através das redes de água e esgoto contaminadas e, potencialmente, até mesmo a geração de focos propícios para o mosquito Aedes e, então, da febre amarela. Considerando o conhecimento científico atual, é difícil argumentar que a construção privada do cortiço propriamente dito era, em si, um grande agressor à saúde pública ou até mesmo dos seus habitantes. Existem exemplos atuais em cidades desenvolvidas como Hong Kong ou Paris, onde é comum, habitantes morarem em cômodos de até 9 metros quadrados, com janelas pequenas ou inexistentes. Alguns estudos mostram possíveis relações de tamanhos habitacionais reduzidos com o aumento do stress, mas o impacto não é claro, e certamente muito menos exagerados das alegações do início do século XX.

       Cortiços, embora precários, também faziam parte de um mercado imobiliário formal, embora em fase prematura. Seus moradores eram pobres, mas não estavam às margens da lei no quesito moradia, o que é a regra em favelas. Assim, em teoria, haveria um incentivo maior à segurança jurídica e legal da sua habitação, eliminando a justificativa de derrubar suas casas por serem invasores ou moradores ilegais.

 

Demolições dos Cortiços e Surgimento das Favelas


  No entanto, infelizmente a história mostrou o contrário, e os cortiços sofreram demolições em massa por todo o Brasil. A reforma do prefeito Passos no Rio de Janeiro (considerado o “Haussman à la carioca” - Georges-Eugène Haussmann, prefeito de Paris entre 1853 e 1870), na transição entre o século XIX e XX, exemplifica o movimento de destruição dos cortiços e o surgimento das primeiras favelas no Brasil. Do livro “Evolução Urbana do Rio de Janeiro” de Maurício de A. Abreu (onde os comentários entre a colchetes são do autor Anthony Ling).

“(...) em nome da higiene e da estética, [Passos] declarou guerra aos quiosques da cidade e proibiu a venda de vários produtos por ambulantes, atingindo, por conseguinte, as fontes de renda de grande número de pessoas. Proibiu ainda o exercício de mendicância e demoliu uma série de cortiços, que já haviam sido proibidos de sofrer reparos por lei municipal em 10 de fevereiro de 1903”.

“A Reforma Passos (...) representa também o primeiro exemplo de intervenção estatal maciça sobre o urbano, reorganizado agora sob novas bases econômicas e ideológicas, que não mais condiziam com a presença de pobres na área mais valorizada da cidade. De fato, o alargamento das ruas centrais e abertura de novas artérias, que atravessaram preferencialmente as velhas freguesias artesanais e industriais, ‘destruiu quarteirões de cortiços, habitados pelos proletários, e os armazéns e trapiches dos bairros marítimos, numa extensão de aproximadamente 13 hectares’. Grande parte da população foi, então, forçada a morar com outras famílias, a pagar aluguéis altos (devido à diminuição da oferta de habitações) ou a mudar-se para os subúrbios, já que pouquíssimas foram as habitações populares construídas pelo Estado em substituição às que foram destruídas”.

“É a partir daí que os morros situados no centro da cidade (Providência São Carlos, Santo Antônio e outros), até então pouco habitados, passam a ser rapidamente ocupados, dando origem a uma forma de habitação popular que marcaria profundamente a feição da cidade neste século [XX] – a favela”.

       Flávio Villaça, no texto “O que todo cidadão precisa saber sobre habitação”, desenvolve exemplos semelhantes para a cidade de São Paulo, que proibiram os cortiços em diversas instâncias:

“O Código de Posturas Municipais do Município de São Paulo de 1886, por exemplo, contém uma série de dispositivos regulamentando os cortiços. Não só número e dimensões de cômodos, instalações sanitárias, ventilação e insolação, mas também suas localizações. A construção de cortiços era proibida ‘no perímetro do comércio’ e quando seus terrenos fossem contíguos a ‘casa de habitação’ deveriam ter no mínimo 15 metros de frente”

       Ainda, em 1894 foi elaborado o Código Sanitário do Estado de São Paulo, proibindo a construção de cortiços e “convidando a administração municipal a providenciar a destruição dos existentes”.

       Villaça continua:

“Vê-se que estas regulamentações nada tinham a ver com o combate a epidemia nem com a proteção da saúde pública, mas sim com o afastamento dos cortiços das áreas onde as camadas de mais alta renda residiam, circulavam e tinha seus imóveis mais nobres. A proteção dos valores imobiliários viria a ser nas décadas subsequentes, até os dias de hoje, uma das razões inconfessas de muitas leis urbanísticas nos municípios brasileiros.”

“Nessa mesma época e utilizando o mesmo discurso, teve início a longa aliança entre os interesses imobiliários e a legislação urbanística. A necessidade de demolição dos cortiços insalubres era sistematicamente invocada para a proteção da saúde pública, porém eles somente eram demolidos nas áreas mais centrais da cidade, especialmente para dar lugar as grandes avenidas que viriam para “embelezar e modernizar” nossas cidades (como se alegava na época), ou seja, abrir espaços para a frutificação do capital imobiliário (...) a demolição dos cortiços era exigida e saudada, porém, somente se concretizava quando eles se constituíam em obstáculos à renovação urbana nas direções ‘nobres’ da cidade”.

       Processo semelhante ocorreu em Recife com a destruição dos mocambos, construções típicas habitadas majoritariamente por escravizados libertos que tinham uma percepção pública semelhante aos cortiços. Segundo o blog Recifaces:

“Os governos estadual e municipal começaram a atestar que as comunidades mocambas eram insalubres e foco de imoralidades sociais, como prostituição e ‘bandidagem’, e que não permitiam ao trabalhador uma condição de vida digna. Ao mesmo tempo, o mercado imobiliário começava a crescer na capital pernambucana e o seu interesse era grande sobre as áreas onde os mocambos estavam alocados. Diante dessa pressão do governo e do forte interesse do mercado imobiliário sobre essas áreas, se iniciou uma ação por toda a cidade para a derrubada dos mocambos e a retirada das famílias que os habitavam, essa ação ficou conhecida como a ‘Liga Social contra o Mocambo’”.

“Se o objetivo era extinguir os mocambos, através da Liga Social, por que eles foram apenas removidos do centro urbano e tolerados em áreas periféricas do Recife? Esse é o ponto. O governo não estava preocupado com as condições de vida da população pobre do Recife e sim em limpar o centro da cidade da ‘praga visual’ que eram os mocambos, diz Thiago Pereira Francisco, especialista em história da favelização no Recife. A população expulsa do centro de Recife migrou para essas áreas remotas da cidade, onde começaram a se instalar se o mínimo apoio do governo. Na medida em que as famílias eram proibidas de habitar o centro, elas começaram a migrar para áreas que não tinham intervenções do governo”.

       A história mostra que as políticas de destruição das formas populares de moradia tinham uma motivação elitista sob falsas bases científicas. Caso não tivéssemos seguido por esse caminho, poderíamos ter desenvolvido de forma gradual a tipologia da moradia popular, utilizando novas tecnologias para melhorar a sua qualidade e torná-la cada vez mais acessível. No entanto, o caminho que seguimos foi o de tentar “legislar a riqueza”, criando políticas públicas que basicamente proibiram que o mercado de moradias populares existisse, deixando uma parcela significativa da população sem alternativa além de construir o seu próprio barraco de forma irregular.

Ver sobre o livro "O Cortiço" de Aluísio Azevedo clicando AQUI.

Fonte: Site Caos Planejado. Disponível em: https://caosplanejado.com/corticos-eram-melhores-que-favelas/. Acesso em 23 de abr. de 2022.




[1] Reforma Passos – Pereira Passos foi um famoso engenheiro brasileiro que estudou na Europa, tornou-se empresário na área da construção civil e por volta de 1887 fundou a serraria que se tornaria uma das maiores fornecedoras de madeira para a construção de mansões e palacetes no Rio de Janeiro. No final de 1902, foi convidado pelo presidente Rodrigues Alves (1902 -1906), recém-empossado, para assumir a prefeitura do Rio de Janeiro com a missão explícita de “consertar os defeitos da capital que afetam e perturbam todo o desenvolvimento nacional”, como consta da mensagem presidencial enviada ao Congresso Nacional em maio de 1903. Assim, incentivado pelo presidente, Pereira Passos começou as reformas já em 1903. O presidente levantou os recursos e o prefeito pôde realizar as obras, a higienização ficou nas mãos do médico Oswaldo Cruz, diretor do Serviço de Saúde Pública. A reforma urbana carioca foi inspirada na reforma feita em Paris no século XIX, entre 1853 e 1870. Em sua gestão, Passos modernizou a Zona Portuária, criou a Avenida Central, hoje Rio Branco, a Avenida Beira-Mar e a Avenida Maracanã. A Reforma Pereira Passos buscou adaptar a cidade também para os automóveis. É nesse período que o Rio de Janeiro vê a chegada da energia elétrica e a reorganização do espaço urbano carioca. O prefeito proibiu ainda a atuação de ambulantes e a derrubada dos cortiços que levou ao surgimento das favelas. 


[2] Miasmasubstantivo masculino. História da Medicina: Emanação a que se atribuía, antes das descobertas da microbiologia, a contaminação das doenças infecciosas e epidêmicas. Exalação pútrida que emana de animais ou vegetais em decomposição.

 


[3] Rentiers – do francês, sujeito masculino, plural de rentier que significa possuidor de rendimentos, capitalista, proprietário que aluga para um inquilino.

 


[4] Shenzhen – local na China, onde ex-agricultores tiveram suas terras expropriadas e estatizadas com casas mantidas, decidindo espontaneamente e coletivamente reestruturar por inteiro a área com a construção de vários edifícios de até cinco andares entre ruas de dois a três metros de largura, mostrando claramente a preferência por mais área habitável em detrimento a ruas mais largas. O entorno dessas comunidades é servido com avenidas que têm infraestrutura urbana completa, não ficando muito longe do próprio centro da cidade. O resultado é um aluguel mais barato, que atrai aqueles cuja alternativa seria morar longe da cidade e sem acesso a oportunidades.

 

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