RUMO À CIDADE
À
medida que o riacho irregular do comércio se transformava em corrente
caudalosa, todo pequeno broto da vida comercial agrícola e industrial recebia
sustento, e florescia todos efeitos mais importantes do aumento no comércio foi
o crescimento das cidades. Sem dúvida, havia certo tipo de cidades antes desse
aumento no comércio, os centros militares e judiciais do país, onde se
realizavam os julgamentos e onde havia bastante movimento. Eram realmente
cidades rurais, sem privilégios especiais ou governo que as diferenciassem. Mas
as novas cidades que se desenvolveram com a intensificação do comércio, ou as
antigas cidades que adotaram uma vida nova sob tal estímulo, adquiriram um
aspecto diferente.
Se
é de fato que as cidades crescem em regiões onde o comércio tem uma expansão
rápida, na Idade Média temos de procurar cidades em crescimento na Itália e
Holanda. E é exatamente onde elas surgiram primeiro. À medida que o comércio
continuava a se expandir, surgiam cidades nos locais em que duas estradas se
encontravam, ou na embocadura de um rio, ou ainda onde a terra apresentava um
declive adequado. Tais eram os lugares que os mercadores procuravam. Neles,
além disso, havia geralmente uma igreja, ou uma zona fortificada chamada "burgo"
que assegurava proteção em caso de ataque. Mercadores errantes descansando nos
intervalos de suas longas viagens, esperando o degelo de um rio congelado, ou
que uma estrada lamacenta se tornasse transitável outra vez, naturalmente se
deteriam próximo aos muros de uma fortaleza, ou à sombra da catedral. E como um
número cada vez maior de mercadores se reunia nesses locais, criou-se um
"fauburg" ou "burgo extramural". E não demorou muito para
que o arrabalde se tornasse mais importante do que o próprio burgo antigo.
Logo, os mercadores dessa povoação, em seu desejo de proteção construíram à
volta de sua cidade muros protetores que provavelmente se assemelhavam às
paliçadas dos colonos americanos. Em conseqüência, os muros mais velhos se
tornaram desnecessários e ruíram aos pedaços. O burgo mais antigo não se
expandiu exteriormente, mas se viu absorvido pela povoação mais nova, onde os
fatos se sucediam. O povo começou a deixar suas velhas cidades feudais para
iniciar vida nova nessas ativas cidades em progresso. A expansão do comércio
significava trabalho para maior número de pessoas e estas afluíam à cidade, a
fim de obtê-lo. Atente bem o leitor, porém, que não sabemos se o relato acima é
verdadeiro. Trata-se apenas de conjeturas de certos historiadores, em particular
Henri Pirenne, cujo levantamento de indícios para demonstrar o modo pelo qual
as cidades da Idade Media se devenvolveram é tão fascinante como qualquer
história de detetive. Uma de suas provas de que o mercador e o habitante da
cidade constituíam uma única e mesma pessoa é o fato de que, logo no início do
século XII, a palavra "mercator", significando mercador, e
"burgensis", significando aquele que vive na cidade, eram usadas
alternadamente.
Ora,
se recapitularmos o estabelecimento da sociedade feudal, veremos que a expansão
do comércio, trazendo em conseqüência o crescimento das cidades, habitadas
sobretudo por uma classe de mercadores que surgia, logicamente conduziria a um
conflito. Toda a atmosfera do feudalismo era a da prisão, ao passo que a
atmosfera total da atividade comercial na cidade era a da liberdade. As terras
da cidade pertenciam aos senhores feudais, bispos, nobres, reis. Esses senhores
feudais, a princípio, não viam diferença entre suas terras na cidade e as
outras terras que possuíam. Esperavam arrecadar impostos, desfrutar os
monopólios, criar taxas e serviços, e dirigir os tribunais de justiça, tal como
faziam em suas propriedades feudais. Mas isso não poderia acontecer nas
cidades. Todas essas práticas eram feudais, baseadas na propriedade do solo, e
tinham de ser modificadas, no que se relacionasse às cidades. As leis e a
justiça feudais se achavam fixadas pelo costume e eram difíceis de alterar. Mas
o comércio, por sua própria natureza, é dinâmico, mutável e resistente às barreiras.
Não se podia ajustar à estrutura feudal. A vida na cidade era diferente da vida
no feudo e novos padrões tinham que ser criados.
Pelo
menos, os mercadores assim julgaram. E o pensamento, com esses comerciantes
audazes, foi logo traduzido em ação. Eles aprenderam a lição de que a união faz
a força. Quando viajavam pelas estadas, juntavam-se para se proteger contra os
salteadores; quando viajavam por mar, associavam-se para se proteger contra os
piratas; quando comerciavam rios mercados e feiras. aliavam-se para concluir
melhores negócios com seus recursos aumentados. Agora, face a face com as
restrições feudais que os asfixiavam, mais uma vez se uniram, em associações
chamadas "corporações" ou "ligas", a fim de conquistar para
suas cidades a liberdade necessária a expansão contínua. Quando conseguiam o
que queriam, sem luta, contentavam-se; quando tinham que lutar para alcançar o
que desejavam, lutavam.
O
que desejavam eles, especificamente? Quais as exigências desses mercadores
nessas cidades em crescimento? Em que aspectos seu mundo em alteração se
chocava frontalmente com o mundo feudal mais antigo?
A
população das cidades queria liberdade. Queria ir e vir quando lhe aprouvesse.
Um velho provérbio alemão, aplicável a toda a Europa ocidental, Stadtlujt macht
frei ("O ar da cidade torna um homem livre"), prova que obtiveram o
que almejavam. Tão real era esse provérbio que muitas constituições de cidades,
dos séculos XII e XIII, continham uma cláusula, semelhante à que se segue,
conferida à cidade de Lorris pelo Rei Luís VII, em 1155: "Quem residir um
ano e um dia na paróquia de Lorris, sem que qualquer reclamação tenha sido
feita contra ele, e sem que se tenha recusado a nos submeter sua causa, ou a
nossa preboste, pode aí permanecer livremente e sem ser molestado." Se
Lorris e as demais cidades possuíssem a técnica de anúncios de beira de estrada
do século XX, poderiam ter usado um letreiro como este: Venha a Lorris e seja
LIVRE.
As
populações das cidades desejavam algo mais que a liberdade: desejavam a
liberdade da terra. O hábito feudal de "arrendar" a terra de Fulano
que, por sua vez, a arrendava de Beltrano, não era de seu agrado. O homem da
cidade via a terra e a habitação sob um prisma diferente do senhor feudal. O
homem da cidade poderia, de repente, precisar de algum dinheiro para inverter
em negócios, e gostava de pensar que podia hipotecar ou vender sua propriedade
para obtê-lo, sem pedir permissão a uma série de proprietários. A própria
escritura pública de Lorris tratava do assunto, nestes termos: "Qualquer
cidadão que desejar vender sua propriedade terá o privilégio de fazê-lo."
Basta recordar o sistema de administração da terra descrito no primeiro
capítulo para verificar quantas modificações se produziram com o comércio e as
cidades.
As populações
urbanas desejavam proceder a seus próprios julgamentos, em seus próprios
tribunais. Eram contrárias às cortes feudais vagarosas, que se destinavam a
tratar dos casos de uma comunidade estática, e totalmente inadequadas aos novos
problemas que surgiam numa cidade comercial dinâmica. Que sabia, por exemplo,
um senhor feudal sobre hipotecas, letras de crédito, ou jurisprudência de
negócios em geral. Absolutamente nada. E, de qualquer modo, se soubesse tudo
isso, é mais que certo que se utilizaria de seus conhecimentos e posição em
benefício próprio, não em favor do homem da cidade. As populações urbanas
queriam estabelecer seus próprios tribunais, devidamente capacitados a tratar
de seus problemas, em seu Interesse. Queriam, também, elaborar sua própria
legislação criminal.
Manter
a paz nas pequenas aldeias feudais não se comparava ao problema de manter a paz
na cidade em desenvolvimento, com maiores riquezas e população móvel. A
população urbana conhecia o problema como o senhor feudal não conhecia. Queria
sua própria "paz da cidade".
As
populações das cidades desejavam fixar seus impostos, à sua maneira, e o
fizeram. Opunham-se à municipalidade dos impostos feudais, pagamentos, ajudas e
multas, que eram irritantes, e num mundo em evolução apenas servia para
aborrecer. Desejavam empreender negócios e, assim, empenharam-se em abolir as
taxas, de qualquer tipo, que as tolhessem. Se porém, falharam no objetivo de
suprimir, totalmente, esses direitos, alcançaram o maior êxito em modificá-los,
de uma forma ou de outra, para que se tornassem mais aceitáveis. A liberdade
das cidades não era, normalmente, concedida de uma só vez, mas pouco a pouco. A
princípio, o senhor vendia parte de seus direitos aos cidadãos, depois vendia
mais uma parcela e assim sucessivamente, até que a cidade acabava por ficar
praticamente independente de seu domínio. Isto, ao que parece, ocorreu na
cidade alemã de Dortmund. Em 1241, o Conde de Dortmund vendeu aos cidadãos
alguns de seus direitos feudais na cidade: "Eu, Conrad. Conde de Dortmund,
e minha esposa, Giseltrude, e nossos legítimos herdeiros vendemos... ...aos
cidadãos e cidade de Dortmund, nossa casa, situada ao lado da praça do
mercado... ...que lhes deixamos completamente em perpetuidade, juntamente com
os direitos, que conservamos do Sagrado Império Romano, de matadouros e
oficinas de sapateiros remendões, de padaria e da casa sobre o tribunal, pelo
preço de dois dinares pelo matadouro, e também dois dinares pelas oficinas dos
sapateiros remendões e, pela casa do forno e casa sobre o tribunal, uma libra
de pimenta, que serão pagos anualmente." Oitenta anos mais tarde outro
Conde Conrad cedeu, por aluguel anual, "ao conselho e cidadãos de
Dortmund, para seu poder exclusivo, metade do condado de Dortmund", que
incluía os tribunais, direitos de portagem, impostos e rendimentos, e tudo
dentro dos muros da cidade, à exceção da própria casa do conde, seus escravos
pessoais e a Capela de São Martinho.
É
de supor que os bispos e senhores feudais tenham percebido que ocorriam mudanças
sociais de grande importância. É de supor que alguns tenham reconhecido ser
impossível barrar o caminho dessas forças históricas. Alguns deles o fizeram,
outros não. Alguns bastante espertos para sentir o que ocorria, procuraram
tirar o melhor partido da situação e saíram-se bem. Isso porém nem sempre se
fez praticamente. Parece fato, através da história, que os donos do poder, os
abastados, se utilizarão sempre de quaisquer meios para manter o que possuem. O
cão luta por seu osso. E, em muitos casos, os senhores feudais e bispos
(particularmente os bispos) ferravam os dentes em seus ossos e não os largavam
até que se vissem a isso forçados, pela violência das populações das cidades.
Para alguns, não se tratava apenas de se agarrar a seus antigos privilégios,
unicamente pelas vantagens que usufruíam. Como ocorre com freqüência na
história, muitas dessas pessoas abastadas imaginavam sinceramente que, se as
coisas não permanecessem como estavam, loco o sistema social desmoronaria. E
como as populações das cidades não acreditavam nisso, muitas cidades só
conquistaram sua liberdade depois que a violência irrompeu. Esse fato parece
provar a veracidade da afirmação de Oliver Wendell Holmes, de que "quando
as divergências são de grande alcance preferimos tentar matar o outro homem a
deixá-lo praticar suas idéias". Na verdade, as populações das cidades em
luta, dirigidas pelas associações de mercadores organizados, não eram
revolucionárias, no sentido que emprestamos à palavra. Não lutavam para
derrubar seus senhores, mas apenas para fazê-los abandonar algum as das
práticas feudais já gastas pelo uso, que constituíram um estorvo decisivo à
expansão do comércio. Não teriam escrito, como os revolucionários americanos,
que "todos os homens foram criados livres e iguais". Nada disso.
"A liberdade pessoal, por si só, não era exigida como direito natural. Era
desejada apenas pelas vantagens que proporcionava. E tanto isso é verdade que
em Arrás, por exemplo, os mercadores tentaram enquadrar-se na classe dos servos
do Mosteiro de St. Vast, a fim de gozar da isenção das taxas de pedágio nos
mercados, que havia sido concedida àqueles." As cidades desejavam
libertar-se das interferências à sua expansão, e depois de alguns séculos o
conseguiram. O grau de liberdade variava consideravelmente, de forma que é tão
difícil apresentar um quadro geral dos direitos, liberdades e organização da
cidade medieval quanto do feudo. Havia cidades totalmente independentes, como
as cidades- repúblicas da Itália e Flandres; havia comunas livres com graus
diversos de independência; e havia cidades que apenas superficialmente
conseguiram arrebatar uns poucos privilégios de seus senhores feudais, mas na
realidade permaneciam sob seu controle. Mas, fossem quais fossem os direitos da
cidade, seus habitantes tinham o cuidado de obter uma carta que os confirmasse.
Isso ajudava a evitar disputas, se alguma vez o senhor ou seus representantes
por acaso se esquecessem desses direitos. Eis aqui o início de uma carta dada
pelo Conde de Ponthieu à cidade de Abbeville, em 1184. Logo na primeira linha,
o próprio conde apresenta uma, das razões por que os habitantes das cidades
tanto prezavam as cartas e as guardavam cuidadosamente a sete chaves - por
vezes chegando mesmo a transcrevê-las em letras de ouro, nos muros da cidade ou
da igreja. "Como o que se deixa escrito fica mais bem guardado na memória
humana, eu, Jean, Conde de Ponthieu, faço saber a todos os presentes, e aos que
virão, que meu avô, Conde Guillaume Talvas, tendo vendido à cidade de Abbeville
o direito de manter uma comuna, e não tendo a cidade uma cópia autenticada
desse contrato de venda, concedeu-lhe... o direito de manter uma comuna e
perpetuamente”.
Cento
e oitenta e seis anos depois em 1370 os cidadãos de Abbeville passaram a ter um
novo senhor, o próprio rei de França. Decerto, o movimento em prol da liberdade
da cidade progredira rapidamente durante esse período, porque o rei, em ordem
dada a seus funcionários, fora longe com suas promessas: "Concedemos e
transmitimos certos privilégios, pelos quais fica patente, inter alia [entre
outras coisas], que nunca, por qualquer motivo, ou ocasião que seja, fixaremos,
manteremos, multaremos ou imporemos, nem seremos causa ou toleraremos que sejam
fixados, mantidos, estabelecidos ou impostos na referida cidade de Abbeville,
ou nas demais cidades do condado de Ponthieu, quaisquer imposições, ajudas, ou
outros subsídios de qualquer natureza, se não se destinarem à renda das
mencionadas cidades e a seu pedido... razão pela qual nós, considerando o amor
e obediência sinceros a nós devotados pelos ditos suplicantes, ordenamos que
permita a todos os burgueses, habitantes da referida cidade, comerciar, vender
e comprar, e transportar através das cidades, países e limites do referido
condado, sal e outras mercadorias de qualquer espécie, sem coagi-los a
pagar-nos, ou a nossos homens ou empregados, quaisquer impostos de sal,
reclamações, exigências imposições ou subsídios..." Essa isenção dos
impostos concedida pelo rei de França no documento acima era apenas um dos privilégios
pelos quais os mercadores se batiam. Na luta pela conquista da liberdade da
cidade, os mercadores assumiram a liderança. Constituíam o grupo mais poderoso
e lograram para suas associações e sociedades todos os tipos e privilégios. As
associações de mercadores, com freqüência. exerciam um monopólio sobre o
comércio por atacado das cidades. Quem não era um membro da liga de mercadores
não fazia bons negócios. Em 1280, por exemplo, na cidade de Newcastle, na
Inglaterra um homem chamado Richard queixou-se ao rei de que 10 tosquias de lã
lhe foram tomadas por alguns mercadores. Queria sua lã de volta. O rei mandou
chamar os tais mercadores e perguntou-lhes por que haviam tomado a lã de
Richard. Estes alegaram em sua defesa, que o Rei Henrique III lhes concedera
que "os cidadãos da referida cidade poderiam ter uma corporação de Mercadores no dito burgo com todos os
privilégios e isenções habituais. Indagados acerca dos privilégios que
reivindicam como pertencentes à Corporação citada, declararam que ninguém, a
menos que gozasse das imunidades da Corporação poderia cortar as peças de
fazenda para vender na cidade, nem carne ou peixe nem comprar couros frescos,
nem adquirir lã pela tosquia”... Richard, decerto, não era membro da sociedade,
que desfrutava o direito exclusivo de comerciar com lã.
Em
Southampton, ao que parece, os não-membros podiam adquirir mercadorias - mas à
sociedade de mercadores cabiam os primeiros negócios e "nenhum habitante
ou estrangeiro trocará ou comprará qualquer espécie de mercadoria que chegue à
cidade, antes dos membros da Corporação dos Mercadores, e enquanto um membro da
sociedade estiver presente e deseje trocá-la ou comprá-la; e se alguém o fizer
e for considerado culpado, aquilo que comprar será confiscado pelo rei."
E exatamente
como as associações de mercadores tentaram manter a distância os não-membros,
foram igualmente bem sucedidas em conservar fora de seu comércio de província
os mercadores estrangeiros. Seu objetivo único era possuir o controle total do
mercado. Quaisquer mercadorias que entrassem ou saíssem da cidade tinham que
passar por suas mãos. Devia ser eliminada a concorrência de fora. Os preços das
mercadorias deviam ser determinados pelas associações. Em todas as fases do
jogo, eram elas que desempenhariam o papel principal. O controle do mercado
teria que ser seu monopólio exclusivo.
Claro
está que, para exercer tal poder, a fim de conquistar esse monopólio do
comércio nas diversas cidades, as associações de mercadores deviam ser
influentes junto às autoridades. E eram. Como constituíam o grupo mais
importante da cidade, os mercadores opinavam na escolha dos funcionários da
cidade. Em algumas regiões, os funcionários estavam sob sua influência; em
outras, eles próprios tornavam-se os funcionários; e ainda em umas poucas, a
lei estipulava, expressamente, que apenas os membros das corporações podiam
ocupar postos no governo da cidade. Era um caso raro, mas acontecia, como a
prova o regulamento da cidade de Preston, na Inglaterra, redigido em 1328:
"... nenhum dos cidadãos, feitos cidadãos por registro nos tribunais e
fora da Corporação dos Mercadores, nunca será Alcaide, avalista ou funcionário,
mas apenas os cidadãos cujos nomes estejam incluídos na Corporação dos
Mercadores; porque o rei concede a liberdade aos cidadãos que integram a
Corporação e a nenhum outro." As associações de mercadores, tão ávidas em
obter privilégios monopolistas e tão observadoras de seus direitos, mantinham
seus membros numa linha de conduta determinada por uma série de regulamentos
que todos tinham de cumprir. O integrante da sociedade gozava de certas
vantagens, mas só podia permanecer como membro se seguisse à risca as regras da
associação. Estas eram muitas e rígidas. Rompê-las podia significar a expulsão
total ou outras formas de punição. Um método particularmente interessante é o
que adotava uma corporação em Chester, Inglaterra, há mais de 300 anos. Em 1614, a Companhia de
Negociantes de Fazendas e Forrageiros, de Chester, ao descobrir que T.
Aldersley violara suas normas, ordenou-lhe que fechasse a loja. Ele recusou.
"Assim, todos os dias, dois outros [da companhia] caminhavam o dia todo
diante da mencionada loja e impediam todos quantos se dirigiam à loja de aí
comprar seus artigos e detinham os que iam comprar mercadorias." É lícito
supor que o Senhor Aldersley não podia pôr termo a esses piquetes, obtendo um
mandado contra eles, no estilo do século XX, porque a corporação era por demais
poderosa. De fato, o poder das associações de mercadores não se limitava às
suas próprias localidades, mas alcançava regiões distantes. A famosa Liga
Hanseática da Alemanha é o exemplo vivo de uma aliança de sociedades numa
poderosa organização. Possuía postos de comércio, que eram fortalezas, bem como
armazéns, espalhados da Holanda à Rússia. Tão poderosa era essa liga que, no
ápice do poder, contava com cerca de 100 cidades, que praticamente
monopolizavam o comércio do Norte da Europa com o resto do mundo. Constituía um
Estado em si, no qual estabelecia tratados comerciais, protegia sua frota mercante
com navios de guerra próprios, limpava de piratas os mares do Norte e tinha
suas assembléias de governo, que elaboravam suas próprias leis.
Os
direitos que mercadores e cidades conquistaram refletem a importância crescente
do comércio como fonte de riqueza. E a posição dos mercadores na cidade reflete
a importância crescente da riqueza em capital em contraste com a riqueza em
terras.
Nos
primórdios do feudalismo, a terra, sozinha, constituía a medida da riqueza do
homem. Com a expansão do comércio, surgiu um novo tipo de riqueza - a riqueza
em dinheiro. No início da era feudal, o dinheiro era inativo, fixo, móvel;
agora tornara-se ativo, vivo, fluido. No início da era feudal, os sacerdotes e
guerreiros, proprietários de terras, se achavam num dos extremos da escala
social, vivendo do trabalho dos servos, que se encontravam no outro extremo.
Agora, um novo grupo surgia a classe média, vivendo de uma forma nova, da
compra e da venda. No período feudal, a posse da terra, a única fonte de
riqueza, implicava o poder de governar para o clero e a nobreza. Agora, a posse
do dinheiro, uma nova fonte de riqueza, trouxera consigo a partilha no governo,
para a nascente classe média.
A
maioria dos negócios é hoje realizada com dinheiro emprestado, sobre o qual pagam
juros. Se a United States Steel Company quiser comprar outra empresa de aço que
lhe estiver fazendo concorrência, provavelmente tomará emprestado o dinheiro.
Poderá conseguir isso emitindo ações que são simplesmente promessa de devolver,
com juros, qualquer soma de dinheiro que o comprador de ações empreste. Quando
o dono da loja da esquina pretende adquirir coisas novas para seu negócio, vai
ao banco tomar emprestado o dinheiro. O banco empresta determinada importância,
cobrando juros. O fazendeiro que quiser comprar uma terra adjacente à sua
fazenda pode hipotecar sua propriedade para conseguir o dinheiro. A hipoteca é
simplesmente um empréstimo ao fazendeiro sob juros anuais. Estamos tão
acostumados a esse pagamento de juros pelo dinheiro emprestado que tendemos a
considerá-lo "natural", como coisa que tenha existido sempre.
Mas
não existiu. Houve época em que se considerava crime grave cobrar juros pelo
uso do dinheiro. No principio da Idade Média o empréstimo de dinheiro a. juros
era proibido por uma Potência, cuja palavra constituía a lei para toda a
Cristandade. Essa potência era a Igreja. Emprestar a juros, dizia ela, era
usura, e a usura era PECADO. A palavra vai em letras maiúsculas porque assim
era considerado qualquer pronunciamento da Igreja naquela época. E um
pronunciamento que ameaçasse com a danação eterna aqueles que o violavam, tinha
particular importância. Na época feudal, a influência da Igreja sobre o
espírito do povo era muito maior do que hoje. Mas não era apenas a Igreja que
condenava a usura. Os governos municipais e mais tarde os governos dos Estados
baixaram leis contra ela. Uma "lei contra a usura"' aprovada na
Inglaterra dizia: "Sendo a usura pela palavra de Deus estritamente
proibida, como vicio dos mais odiosos e detestáveis proibição essa que nenhum
ensinamento ou persuasão pode fazer penetrar no coração de pessoas ambiciosas,
sem caridade e avarentas deste Reino fica determinado que nenhuma pessoa ou
pessoas de qualquer classe, estado, qualidade ou condição, por qualquer meio
corrupto, artificioso ou disfarçado, ou outro, emprestem, dêem, entreguem ou
passem qualquer soma ou somas de dinheiro para qualquer forma de usura,
aumento, lucro, ganho ou juro a ser tido, recebido ou esperado, acima da soma
ou somas dessa forma emprestadas sob pena de confisco da soma ou somas
emprestadas bem como da usura e ainda da punição de prisão." Essa lei era
um reflexo do que a maioria das pessoas na Idade Média pensava sobre a usura.
Concordavam em que era um mal. Mas, por quê? Como surgira essa atitude para com
o juro? Devemos procurar nas relações da sociedade feudal a resposta.
Naquela
sociedade, onde o comércio era pequeno e a possibilidade de investir dinheiro
com lucro praticamente não existia, se alguém desejava um empréstimo, certamente
não tinha por objetivo o enriquecimento, mas precisava dele para viver. Tomava
o empréstimo simplesmente porque alguma desgraça lhe ocorrera. Talvez lhe
morresse a vaca, ou a seca lhe tivesse arruinado as colheitas. Estava em má
situação e necessitava de ajuda. De acordo com o sentimento medieval, a pessoa
que, nessas circunstâncias, o ajudasse, não deveria lucrar com sua desventura.
O bom cristão ajudava o vizinho sem pensar em lucro. Se emprestava a alguém um
saco de farinha, esperava receber de volta apenas um saco de farinha, e nada
mais. Se recebesse mais, estaria explorando o companheiro - o que não se
considerava
justo. O justo era receber apenas o que se
emprestara, e nada mais nem menos. A Igreja ensinava que havia o certo e o
errado em todas as atividades do homem. O padrão do que era certo ou errado na
atividade religiosa não diferia das demais atividades sociais ou, mais
importante ainda, do padrão das atividades econômicas.
As
regras da Igreja sobre o bem e o mal aplicavam-se a todos os setores,
igualmente.
Hoje
em dia, é possível fazer,. num negócio comercial, a um estranho, o que não
faríamos a um amigo ou vizinho. Temos padrões diferentes para os negócios, e
que não se aplicam a outras atividades. Assim, o industrial fará tudo ao seu
alcance para esmagar um concorrente. Venderá com prejuízo, se empenhará numa
guerra comercial, conseguirá descontos especiais, tentará todos os recursos
possíveis para encurralar seu rival. Essas atividades arruinarão o competidor.
O industrial ou comerciante sabe disso, mas não obstante continua a
realizá-las, porque "negócio é negócio". No entanto essa mesma pessoa
não permitiria, nem pois um minuto, que um amigo ou vizinho passasse fome. Essa
existência de um padrão para a atividade econômica e outra pura a atividade
não-econômica era contrária aos ensinamentos da Igreja na Idade Média. E a
maioria das pessoas acreditava geralmente nos ensinamentos da Igreja.
A
Igreja ensinava que, se o lucro do bolso representava a ruína da alma, o
bem-estar espiritual é que estava em primeiro lugar. "Que lucro terá o
homem, se ganhar todo o mundo e perder sua alma?" Se alguém obtivesse numa
transação mais do que o devido, estaria prejudicando a outrem, e isso estava
errado. Santo Tomás de Aquino, o maior pensador religioso da Idade Média,
condenou a "ambição do ganho". Embora se admitisse, com relutância,
que o comércio era útil, os comerciantes não tinham o direito de obter numa
transação mais do que o justo pelo seu trabalho.
Os
homens da Igreja na Idade Média teriam condenado fortemente o intermediário
que, alguns séculos mais tarde, se tornara, segundo a definição de Disraeli,
"um homem que trapaceia de um lado e saqueia do outro". A moderna
noção de que qualquer transação comercial é lícita desde que seja possível realizá-la
não fazia parte do pensamento medieval. O homem de negócios bem sucedido de
hoje, que compra pelo mínimo e vende pelo máximo, teria sido duas vezes
excomungado na Idade Média. O comerciante, porque exercia um serviço público
necessário, tinha direito a uma boa recompensa e a nada mais do que isso.
Também
não se considerava ético acumular mais dinheiro do que o necessário para a
manutenção própria. A Bíblia era clara quanto a isso: "Ë mais fácil um
camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos
Céus." Um autor da época assim se manifestou: "Quem tem o bastante
para satisfazer suas necessidades, e não obstante trabalha incessantemente para
adquirir riquezas, seja para conseguir uma posição social melhor, seja para
viver mais tarde sem trabalhar, ou. para que seus filhos se tornem homens de
riqueza e importância - todos esses estão dominados por uma avareza,
sensualidade ou orgulho condenáveis." Os que estavam habituados aos
padrões de uma economia natural simplesmente aplicaram tais padrões à nova
economia monetária em que se viram. Assim, se alguém emprestava a outro cem
libras, julgava-se que tinha o direito moral de exigir de volta apenas cem
libras. Quem cobrasse juros pelo uso do dinheiro estaria vendendo tempo, e
tempo não pertence a ninguém, para que possa ser vendido. O tempo pertence a
Deus, e ninguém tinha o direito de vendê-lo.
Além
disso, emprestar dinheiro e receber de volta não apenas o total emprestado, mas
também um juro fixo, significava a possibilidade de viver sem trabalhar - o que
estava errado. (Pelo pensamento medieval, os sacerdotes e guerreiros estavam
"trabalhando" nas ocupações para as quais estavam habituados. Alegar
que o dinheiro é quem trabalhava para seu dono seria apenas irritar os homens
da Igreja. Teriam respondido que o dinheiro era estéril, não podia produzir
nada. Cobrar juros era totalmente errado - dizia a Igreja).
Isso
é o que ela dizia. O que dizia e o que fazia, porém, eram duas coisas
totalmente diferentes. Embora os bispos e reis combatessem e fizessem leis
contra os juros, estavam entre s primeiros a violar tais leis. Eles mesmos
tomavam empréstimos, ou os faziam, a juros - exatamente quando combatiam outros
usurários! Os judeus, que geralmente concediam pequenos empréstimos a juros enormes
porque corriam grande risco, eram odiados e perseguidos, desprezados em toda
parte como usurários. Os banqueiros italianos emprestavam dinheiro em grande
escala, fazendo negócios enormes - e freqüentemente, quando seus juros não eram
pagos, o próprio Papa ia cobrá-los, ameaçando com um castigo espiritual! Mas a
despeito do fato de ser um dos maiores pecadores, a Igreja continuava a gritar
contra os usurários.
Ë
fácil ver que a doutrina do pecado da usura iria limitar os processos do novo
grupo de comerciantes que desejava negociar numa Europa em expansão
comercialmente. Tornou-se na verdade um obstáculo quando o dinheiro começou a
ter um papel cada vez mais importante na vida econômica.
A
nascente classe média não guardava seu dinheiro em caixas-fortes. (Esse hábito
pertence ao período feudal, quando eram limitadas as oportunidades de
investimento.) O novo grupo de mercadores podia empregar todo o dinheiro de que
dispusesse e mais ainda. Para manter seu negócio, para ampliar o campo de suas
operações e aumentar os lucros, o comerciante precisava de mais dinheiro. Onde
obtê-lo? Podia recorrer aos que emprestavam, aos judeus, como Antônio, o
Mercador de Veneza, recorreu a Shylock, o Judeu. Ou podia procurar comerciantes
maiores - alguns dos quais haviam deixado de comerciar com mercadorias para
comerciar com dinheiro - e que eram os grandes banqueiros do período. Não era
fácil, porém. Essa lei da Igreja barrava o caminho, proibindo aos banqueiros ou
usurários o empréstimo a juros.
Que
aconteceu então, quando a doutrina da Igreja, destinada a uma economia antiga,
chocou-se com a força histórica representada pelo aparecimento da classe de
comerciantes? Foi a doutrina quem cedeu. Não de uma só vez, evidentemente.
Lentamente, centímetro por centímetro, nas novas leis que diziam: "A usura
é um pecado - mas, sob certas circunstâncias”..., ou então: "Embora seja
pecado exercer a usura, não obstante em casos especiais”...
Os
casos especiais que neutralizavam a doutrina da usura são esclarecedores. Se o
banqueiro B emprestasse dinheiro ao comerciante M, não estava certo que
cobrasse juros pelo empréstimo. Mas, dizia a Igreja, como o comerciante M ia
usar o dinheiro que tomara emprestado do banqueiro B para uma aventura
comercial na qual toda a importância poderia ser perdida, era então justo que M
devolvesse a B não - só o que lhe tomara emprestado, mas também um pouquinho
mais para compensar B do risco que correra.
Ou
então, se o banqueiro B tivesse guardado o dinheiro, poderia tê-lo empregado
para obter lucro, sendo por isso justo que o comerciante M ao devolver o
empréstimo pagasse um pouco mais, para compensar ao banqueiro a não-utilização
do dinheiro.
Dessa
e de outras formas, a doutrina da usura foi medicada, para atender às novas
condições. É bastante significativo que Charles Dumoulin, advogado francês que
escreveu no século XVI, tenha alegado a "prática comercial diária como
justificativa para a legalização de uma "usura moderada e aceitável".
Eis aqui sua argumentação: "A prática comercial diária mostra que a
utilidade do uso de uma soma considerável de dinheiro não é pequena nem permite
dizer que o dinheiro por si não frutifica; pois nem mesmo os campos frutificam
sozinhos, sem gastos, trabalho e indústria dos homens; o dinheiro, da mesma
forma, mesmo quando deve ser devolvido dentro de um prazo, proporciona nesse
período um produto considerável, pela indústria do homem. E por vezes priva a
quem empresta de tudo aquilo que traz a quem o toma emprestado. Portanto, toda
a condenação, todo o ódio à usura, deve ser compreendido como aplicável à usura
excessiva e absurda, não à usura moderada e aceitável."“