domingo, 21 de maio de 2017

A IGREJA CATÓLICA PASSA POR MAUS BOCADOS DURANTE A REVOLUÇÃO FRANCESA

A Revolução Francesa e a Religião Católica


A Revolução Francesa marcou para Igreja Católica um dos períodos mais difíceis de sua história. Isto porque a Revolução não só propagou os ideais iluministas que incluíam um sentimento anticlerical e antirreligioso, como também exerceu na prática esses ideais, muitas vezes de forma violenta.
A França sempre teve uma posição de destaque na cristandade, desde os séculos medievais, da conversão dos francos ao catolicismo até a época em que a cidade francesa de Avignon abrigou a sede do papado. Foi também a França um dos maiores pontos de conflito entre católicos e protestantes. Tais fatos levaram a França a ser considerada por muitos papas como a “filha predileta da Igreja”. Às vésperas da Revolução, o país mostrava um quadro onde o catolicismo vivia o seu auge: a população participava dos ritos religiosos e o clero paroquial cuidava da vida religiosa da sociedade. Exercia grande influência na vida política, pois o poder absoluto do rei era garantido pelo direito divino, e o próprio clero possuía status de Estado. A religião católica influenciava também o tempo, com o calendário gregoriano que possuía festas e feriados cristãos. Por fim, era papel do clero presidir as atividades civis como os casamentos e os registros de nascimento e óbito. Era esse quadro que a revolução viria a mudar radicalmente.
A Revolução Francesa, em sua tentativa de acabar com as estruturas feudais ainda vigentes, colocou a Igreja Católica em uma difícil situação. Desde os primeiros passos da Assembleia Constituinte até a Constituição Civil do Clero, foram tomadas medidas capazes de levantar suspeitas de que a revolução era hostil ao clero. Uma das primeiras medidas dos revolucionários foi a supressão do dizimo e o confisco dos bens do clero, para saldar o déficit nacional. Essas medidas, a princípio, não causaram um conflito direto entre a Igreja e a Revolução.
O conflito só viria com a Constituição Civil do Clero e o juramento dos padres. Tal medida dividiu o clero francês: o clero constitucional, fiel à constituição, e o clero refratário, fiel ao papa. Este repudiava cada medida dos revolucionários, pois, além de perder o controle sobre o clero francês também perdeu suas possessões territoriais francesas na cidade de Avignon.
É possível afirmar que a Constituição Civil do Clero foi o divisor de águas nas relações entre a Religião Católica e o Estado revolucionário francês. Foi o juramento dos padres que estimulou a contrarrevolução na Vendéia e a guerrilha camponesa dos Chouans – a Chouannerie, da qual participaram o clero refratário e a aristocracia. Foi também a questão do juramento que desencadeou um movimento violento de ataques aos padres e aos templos. Além disso, subordinava o clero ao Estado rompendo os seus vínculos com o papa.
A Igreja ainda viria a perder suas áreas de influência na vida política e social. O rei Luís XVI, antes de ser decapitado, é obrigado a renunciar o seu “poder divino”, tornando-se um cidadão como outro qualquer. O clero deixa de presidir as atividades da vida civil como o casamento e os registros de certidões de nascimento e de óbito. É importante ressaltar que na tentativa de enterrar de vez a influência católica, o governo aboliu o calendário gregoriano acabando com os dias da semana, e consequentemente, eliminando as festas e feriados religiosos, inclusive o domingo, conhecido como “Dia do Senhor”. Para substituí-lo criou um novo calendário, conhecido como Calendário Republicano Francês, que marcaria o início da nova era da República Francesa dando uma nova nomenclatura aos meses e semanas de acordo com as estações do ano.
O período do Terror marca o início do movimento violento que se deu contra a Igreja Católica. Igrejas são apedrejadas, padres são forçados a abdicar, imagens religiosas são destruídas e o culto religioso passa a ser proibido. Podemos ainda citar as tentativas de substituir o culto religioso por um culto revolucionário, como o culto à razão e ao Ser Supremo. Esses cultos exaltavam a vitória da razão e da consciência sobre a dominação da Igreja. Sobre o culto ao Ser Supremo, Robespierre aparece como pontífice da religião do Estado na tentativa promover a união entre o sentimento revolucionário e o sentimento religioso.
Passado o período violento do Terror, com a queda de Robespierre, seguiu-se uma fase confusa para a religião. Os homens que o derrubaram eram anticlericais que participaram dessas perseguições. Contudo, a política da Convenção Termidoriana seguia a lógica do retorno da liberdade que o período do Terror havia negligenciado. A essa lógica de liberdade estava ligada à questão da liberdade de culto. No período que vai de 1795 a 1799, as Assembleias do Diretório agiam ora permitindo o retorno ao culto, ora regressando a uma política de perseguição.
Esse quadro só seria resolvido com Napoleão Bonaparte. No período do Consulado, Napoleão e o Papa Pio VI assinam uma Concordata que redefine as relações entre a Igreja e o Estado. Por essa Concordata a Igreja Católica era reconhecida na sua unidade e estatuto, a liberdade de culto era garantida e o catolicismo era aceito como a religião da maioria dos franceses. Contudo a Igreja ficava subordinada ao Estado, uma vez que a nomeação de bispos era feita pelo Consulado. Os territórios da Igreja, como Avignon, e seus bens também não são restituídos.
O último pilar do movimento de ataque a religião católica, o Calendário Republicano, foi extinto por Napoleão no Império, em 1805.
Cronologia:
·         04/08/1789 – Abolição dos direitos feudais e supressão do dizimo.
·         02/11/1789 – Confisco dos bens do clero para saldar déficit nacional.
·         12/07/1790 – Aprovada a Constituição Civil do Clero.
·         26/11/1790 – Decreto fixando o prazo de dois meses para o juramento dos padres em exercício à Constituição.
·         03/1793 à 03/1796 – Revolta da Vendéia e guerrilha camponesa dos Chouans
·         07/11/1793 (17 de Brumário do ano II) – Abjuração do bispo de Paris, marca o início da descristianização.
·         21/11/1793 (1 de Frimário do ano II) – Intervenção de Robespierre, refreando a descristianização violenta.
·         24/11/1793 (4 de Frimário do ano II) – Convenção Nacional adota o Calendário Republicano, determinando a data de 22/09/1792 como início do ano I da Republica.
·         07/05/1794 (18 de Floreal do ano II) – Relatório da Convenção que define as relações entre Estado e Igreja.
·         27/07/1794 (09 de Termidor do ano II) – Queda de Robespierre, sucedido por anticlericais que haviam participado da descristianização violenta.
·         18/08/1797 à 17/09/1797 (Frutidor do ano V) – Inicio da política de perseguição religiosa.
·         07/1801 – Concordata assinada entre Napoleão e o Papa Pio VI.
·         31/12/1805 – Abolição do Calendário Republicano por Napoleão.



Textos de época:
 “A lei considera o casamento como sendo um contrato civil”. (Artigo 7 do Título II da Constituição Francesa de 1791).
A lei não reconhece os votos religiosos, nem qualquer outro compromisso que seja contrário aos direitos naturais, ou à Constituição”. (Constituição Francesa de 1791).
O novo calendário assim como suas instruções serão enviadas aos corpos administrativos, as municipalidades, aos tribunais, aos juizes de paz e a todos os oficiais públicos, aos mestres de todas as instituições e as sociedades populares. O conselho executivo provisório fará passar aos ministros, cônsules e outros agentes da França nos países estrangeiros”. (Artigo 13 do Decreto da Convenção Nacional sobre a instituição do Calendário Republicano).

Referências Bibliográficas:
·         Burke, Edmund. Reflexões sobre a Revolução Francesa, UNB, Brasília, 1969.
·         Furet, François. Pensando a Revolução Francesa, Paz e Terra, São Paulo, 1989 (2. ª edição).
·         Furet, François e Ozuf, Mona (orgs.). Dicionário Crítico da Revolução Francesa, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989.
·         Hobsbawn, Eric. Ecos da Marselhesa: dois séculos revêem a Revolução Francesa, Companhia das Letras, São Paulo, 1996.
·         Lefebvre, Georges. 1789, O Surgimento da Revolução Francesa, Paz e Terra, São Paulo, 1989.
·         Michelet, Jules. História da Revolução Francesa, São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
·         Soboul, Albert. A Revolução Francesa, Difel, Rio de Janeiro, 2003 (8. ª edição).
·         Vovelle, Michel. A revolução francesa contra a Igreja: da razão ao ser supremo, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1989.


Filmes:
Danton – O Processo da Revolução (1982), dirigido por Andrzej Wajda.
Sinopse: Na primavera de 1794, Danton (Gérard Depardieu) retorna a Paris e constata que o Comitê de Segurança, sob a incitação de Robespierre (Wojciech Pszoniak), inicia várias execuções em massa. O povo, que já passava fome, agora vive um medo constante, pois qualquer coisa que desagrade o poder é considerado um ato contrarrevolucionário. Nem mesmo Danton, um dos líderes da Revolução Francesa, deixa de ser acusado. Os mesmos revolucionários que promulgaram a Declaração de Direitos do Homem implantaram agora um regime onde o terror impera. Confiando no apoio popular, Danton entra em choque com Robespierre, seu antigo aliado, que detém o poder. O resultado deste confronto é que Danton acaba sendo levado a julgamento, onde a liberdade, a igualdade e a fraternidade foram facilmente esquecidas.

Casanova e a Revolução (La Nuit de Varennes) (1982), dirigido por Ettore Scola.
Sinopse: No início de outubro o rei Luís XVI é obrigado a viver em Paris. Os líderes da revolução julgam que no Palácio de Paris o rei estará sob maior vigilância; temem as ações contrarrevolucionárias. Depois de mais de um ano de reclusão, em junho de 1791, a família real foge de Paris em direção da Áustria, com a intenção de apoiar e fortalecer as ações austríacas contra a Revolução. O rei seria desculpado pela Assembleia Constituinte no mês seguinte e condenado somente um ano e meio depois, em janeiro de 1793.



Do Nucleo de Estudos Contemporâneo da UFF.

sábado, 20 de maio de 2017

A REVOLUÇÃO BURGUESA NA FRANÇA (1789 -1799)




            Você poderia imaginar hoje no Brasil o povo se organizando para ir à Brasília e ao chegar invadir e destruir o Congresso Nacional? E para piorar a situação o povo ir até o Palácio do Planalto que é ao lado do Congresso e aprisionar e depois cortar a cabeça do presidente Temer?

            Mesmo que grande parte dos brasileiros, neste momento, estejam loucos de vontade de fazer isso, ainda assim é Inimaginável não é?

            Mas isso, guardando as devidas proporções sociais e temporais, aconteceu na França entre 1789 e 1793.

            O contexto histórico era o do Absolutismo Monárquico, onde o rei detinha todo o poder político centralizado em suas mãos e a economia era um misto de relações de produção feudais, onde grande parte da população era camponesa e uma insurgente e vigorosa classe burguesa, cheia de capital e ávida para tomar o poder das mãos do rei.

            As classes superiores eram o Clero (1.º Estado) e a Nobreza (2.º Estado) que não abriam mãos dos seus privilégios, o melhor deles era não ter que pagar impostos ao Estado, que neste caso, era o Rei.

            Foi aí, na França, que em 1789, após o rei ter chamado os Estados Gerais, para discutir e aprovar leis para taxar ainda mais os pobres, que explodiu a revolução burguesa que levou o povo a avançar sobre a prisão política mantida pela realeza.

            Este evento que aconteceu em 14 de julho de 1789 tornou-se conhecido como Tomada da Bastilha e marcou a revolta popular canalizada pela burguesia contra o que eles acreditavam ser o maior símbolo da intolerância e do autoritarismo real.

            Depois disto não demorou muito para o rei da época o Luís XVI perder seu gordo pescoço. Isso se deu em 1792, quando os jacobinos estavam no poder e descobriram que o rei conspirava para que outros países que ainda possuíam realeza atacassem a França junto como uma horda de emigrados que tinham fugido da Revolução Francesa.

            Pensar que o rei era uma autoridade constituída, segundo as classes dominantes, por Deus foi uma ousadia muito grande cometida pelo povo francês, imbuído, os lideres desta plebe, dos ideais do iluminismo e do liberalismo que a burguesia tanto apoiava: Liberdade, Fraternidade e Igualdade.

             Porém o final dessa história toda acontece dez anos depois em 1799 quando Napoleão dá o golpe do 18 Brumário e torna-se a grande liderança da França, imbuído do mais nobres ideais revolucionários burguês de levar o liberalismo para toda a Europa e se possível para a Rússia e para a África também.

CEMITÉRIO, UM CONTO DO GRANDE LIMA BARRETO



O Cemitério
de Lima Barreto

Pelas ruas de túmulos, fomos calados. Eu olhava vagamente aquela multidão de sepulturas, que trepavam,tocavam-se, lutavam por espaço, na estreiteza da vaga e nas encostas das colinas aos lados. Algumas pareciam se olhar com afeto,
roçando-se amigavelmente; em outras, transparecia a repugnância de estarem juntas. Havia solicitações incompreensíveis e também repulsões e antipatias; havia túmulos arrogantes, imponentes, vaidosos e pobres e humildes; e, em todos, ressumava o esforço extraordinário para escapar ao nivelamento da morte, ao apagamento que ela traz às condições e às fortunas.
Amontoavam-se esculturas de mármore, vasos, cruzes e inscrições; iam além; erguiam pirâmides de pedra tosca, faziam caramanchéis extravagantes, imaginavam complicações de matos e plantas — coisas brancas e delirantes, de um mau gosto que irritava. As inscrições exuberavam; longas, cheias de nomes, sobrenomes e datas, não nos traziam à lembrança nem um nome ilustre sequer; em vão procurei ler nelas celebridades, notabilidades mortas; não as encontrei. E de tal modo a nossa sociedade nos marca um tão profundo ponto, que até ali, naquele campo de mortos, mudo laboratório de decomposição, tive uma imagem dela, feita inconscientemente de um propósito, firmemente desenhadas por aquele acesso de túmulos pobres e ricos, grotescos e nobres, de mármore e pedra, cobrindo vulgaridades iguais umas às outras por força estranha às suas vontades, a lutar...
Fomos indo. A carreta, empunhada pelas mãos profissionais dos empregados, ia dobrando as alamedas, tomando ruas, até que chegou à boca do soturno buraco, por onde se via fugir, para sempre do nosso olhar, a humildade e a tristeza do contínuo da Secretaria dos Cultos.
Antes que lá chegássemos, porém, detive-me um pouco num túmulo de límpidos mármores, ajeitados em capela gótica, com anjos e cruzes que a rematavam pretensiosamente.
Nos cantos da lápide, vasos com flores de biscuit e, debaixo de um vidro, à nívea altura da base da capelinha, em meio corpo, o retrato da morta que o túmulo engolira. Como se estivesse na Rua do Ouvidor, não pude suster um pensamento mau e quase exclamei:
— Bela mulher!
Estive a ver a fotografia e logo em seguida me veio à mente que aqueles olhos, que aquela boca provocadora de beijos, que aqueles seios túmidos, tentadores de longos contatos carnais, estariam àquela hora reduzidos a uma pasta fedorenta, debaixo de uma porção de terra embebida de gordura.
Que resultados teve a sua beleza na terra? Que coisas eternas criaram os homens que ela inspirou? Nada, ou talvez outros homens, para morrer e sofrer. Não passou disso, tudo mais se perdeu; tudo mais não teve existência, nem mesmo para ela e para os seus amados; foi breve, instantâneo, e fugaz.
Abalei-me! Eu que dizia a todo o mundo que amava a vida, eu que afirmava a minha admiração pelas coisas da sociedade — eu meditar como um cientista profeta hebraico!
Era estranho! Remanescente de noções que se me infiltraram e cuja entrada em mim mesmo eu não percebera! Quem pode fugir a elas?
Continuando a andar, adivinhei as mãos da mulher, diáfanas e de dedos longos; compus o seu busto ereto e cheio, a cintura, os quadris, o pescoço, esguio e modelado, as espáduas brancas, o rosto sereno e iluminado por um par de olhos indefinidos de tristeza e desejos...
Já não era mais o retrato da mulher do túmulo; era de uma, viva, que me falava. Com que surpresa, verifiquei isso. Pois eu, que vivia desde os dezesseis anos, despreocupadamente, passando pelos meus olhos, na Rua do Ouvidor, todos os figurinos dos jornais de modas, eu me impressionar por aquela menina do cemitério! Era curioso. E, por mais que procurasse explicar, não pude.

Fim


ADÃO E EVA NUM CONTO DE MACHADO DE ASSIS:

Adão e Eva
de Machado de Assis
Uma senhora de engenho, na Bahia, pelos anos de mil setecentos e tantos, tendo algumas pessoas íntimas à mesa, anunciou a um dos convivas, grande lambareiro, um certo doce particular. Ele quis logo saber o que era; a dona da casa chamou-lhe curioso. Não foi preciso mais; daí a pouco estavam todos discutindo a curiosidade, se era masculina ou feminina, e se a responsabilidade da perda do paraíso devia caber a Eva ou a Adão. As senhoras diziam que a Adão, os homens que a Eva, menos o juiz-de-fora, que não dizia nada, e Frei Bento, carmelita, que interrogado pela dona da casa, D. Leonor:
— Eu, senhora minha, toco viola, respondeu sorrindo; e não mentia, porque era insigne na viola e na harpa, não menos que na teologia. 
Consultado, o juiz-de-fora respondeu que não havia matéria para opinião; porque as cousas no paraíso terrestre passaram-se de modo diferente do que está contado no primeiro livro do Pentateuco, que é apócrifo. Espanto geral, riso do carmelita que conhecia o juiz-de-fora como um dos mais piedosos sujeitos da cidade, e sabia que era também jovial e inventivo, e até amigo da pulha, uma vez que fosse curial e delicada; nas cousas graves, era gravíssimo.
— Frei Bento, disse-lhe D. Leonor, faça calar o Sr. Veloso.
— Não o faço calar, acudiu o frade, porque sei que de sua boca há de sair tudo com boa significação.
— Mas a Escritura... ia dizendo o mestre-de-campo João Barbosa.
— Deixemos em paz a Escritura, interrompeu o carmelita. Naturalmente, o Sr. Veloso conhece outros livros...
— Conheço o autêntico, insistiu o juiz-de-fora, recebendo o prato de doce que D. Leonor lhe oferecia, e estou pronto a dizer o que sei, se não mandam o contrário.
— Vá lá, diga.
— Aqui está como as cousas se passaram. Em primeiro lugar, não foi Deus que criou o mundo, foi o Diabo...
— Cruz! exclamaram as senhoras.
— Não diga esse nome, pediu D. Leonor.
— Sim, parece que... ia intervindo frei Bento.
— Seja o Tinhoso. Foi o Tinhoso que criou o mundo; mas Deus, que lhe leu no pensamento, deixou-lhe as mãos livres, cuidando somente de corrigir ou atenuar a obra, a fim de que ao próprio mal não ficasse a desesperança da salvação ou do benefício. E a ação divina mostrou-se logo porque, tendo o Tinhoso criado as trevas, Deus criou a luz, e assim se fez o primeiro dia. No segundo dia, em que foram criadas as águas, nasceram as tempestades e os furacões; mas as brisas da tarde baixaram do pensamento divino. No terceiro dia foi feita a terra, e brotaram dela os vegetais, mas só os vegetais sem fruto nem flor, os espinhosos, as ervas que matam
como a cicuta; Deus, porém, criou as árvores frutíferas e os vegetais que nutrem ou encantam. E tendo o Tinhoso cavado abismos e cavernas na terra, Deus fez o sol, a lua e as estrelas; tal foi a obra do quarto dia. No quinto foram criados os animais da terra, da água e do ar. Chegamos ao sexto dia, e aqui peço que redobrem de atenção.
Não era preciso pedi-lo; toda a mesa olhava para ele, curiosa.
Veloso continuou dizendo que no sexto dia foi criado o homem, e logo depois a mulher; ambos belos, mas sem alma, que o Tinhoso não podia dar, e só com ruins instintos. Deus infundiu-lhes a alma, com um sopro, e com outro os sentimentos nobres, puros e grandes. Nem parou nisso a misericórdia divina; fez brotar um jardim de delícias, e para ali os conduziu, investindo-os na posse de tudo. Um e outro caíram aos pés do Senhor, derramando lágrimas de gratidão. "Vivereis aqui", disse-lhe o Senhor, "e comereis de todos os frutos, menos o desta árvore, que é a da ciência do Bem e do Mal."
Adão e Eva ouviram submissos; e ficando sós, olharam um para o outro, admirados; não pareciam os mesmos. Eva, antes que Deus lhe infundisse os bons sentimentos, cogitava de armar um laço a Adão, e Adão tinha ímpetos de espancá-la.
Agora, porém, embebiam-se na contemplação um do outro, ou na vista da natureza, que era esplêndida. Nunca até então viram ares tão puros, nem águas tão frescas, nem flores tão lindas e cheirosas, nem o sol tinha para nenhuma outra parte as mesmas torrentes de claridade. E dando as mãos percorreram tudo, a rir muito, nos primeiros dias, porque até então não sabiam rir. Não tinham a sensação do tempo. Não sentiam o peso da ociosidade; viviam da contemplação. De tarde iam ver morrer o sol e nascer a lua, e contar as estrelas, e raramente chegavam a mil, dava-lhes o sono e dormiam como dous anjos.
Naturalmente, o Tinhoso ficou danado quando soube do caso. Não podia ir ao paraíso, onde tudo lhe era avesso, nem chegaria a lutar com o Senhor; mas ouvindo um rumor no chão entre folhas secas, olhou e viu que era a serpente. Chamou-a alvoroçado.
— Vem cá, serpe, fel rasteiro, peçonha das peçonhas, queres tu ser a embaixatriz de teu pai, para reaver as obras de teu pai?
A serpente fez com a cauda um gesto vago, que parecia afirmativo; mas o Tinhoso deu-lhe a fala, e ela respondeu que sim, que iria onde ele a mandasse, — às estrelas, se lhe desse as asas da águia — ao mar, se lhe confiasse o segredo de respirar na água — ao fundo da terra, se lhe ensinasse o talento da formiga. E falava a maligna, falava à toa, sem parar, contente e pródiga da língua; mas o diabo interrompeu-a:
— Nada disso, nem ao ar, nem ao mar, nem à terra, mas tão-somente ao jardim de delícias, onde estão vivendo Adão e Eva.
— Adão e Eva?
— Sim, Adão e Eva.
— Duas belas criaturas que vimos andar há tempos, altas e direitas como palmeiras?
— Justamente.
— Oh! detesto-os. Adão e Eva? Não, não, manda-me a outro lugar. Detesto-os! Só a vista deles faz-me padecer muito. Não hás de querer que lhes faça mal...
— É justamente para isso.
— Deveras? Então vou; farei tudo o que quiseres, meu senhor e pai. Anda, dize depressa o que queres que faça. Que morda o calcanhar de Eva? Morderei...
— Não, interrompeu o Tinhoso. Quero justamente o contrário. Há no jardim uma árvore, que é a da ciência do Bem e do Mal; eles não devem tocar nela, nem comer-lhe os frutos. Vai, entra, enrosca-te na árvore, e quando um deles ali passar, chama-o de mansinho, tira uma fruta e oferece-lhe, dizendo que é a mais saborosa fruta do mundo; se te responder que não, tu insistirás, dizendo que é bastante comê-la para conhecer o próprio segredo da vida. Vai, vai...
— Vou; mas não falarei a Adão, falarei a Eva. Vou, vou. Que é o próprio segredo da vida, não?
— Sim, o próprio segredo da vida. Vai, serpe das minhas entranhas, flor do mal, e se te saíres bem, juro que terás a melhor parte na criação, que é a parte humana, porque terás muito calcanhar de Eva que morder, muito sangue de Adão em que deitar o vírus do mal... Vai, vai, não te esqueças...
Esquecer? Já levava tudo de cor. Foi, penetrou no paraíso, rastejou até a árvore do Bem e do Mal, enroscou-se e esperou. Eva apareceu daí a pouco, caminhando sozinha, esbelta, com a segurança de uma rainha que sabe que ninguém lhe arrancará a coroa. A serpente, mordida de inveja, ia chamar a peçonha à língua, mas advertiu que estava ali às ordens do Tinhoso, e, com a voz de mel, chamou-a. Eva estremeceu.
— Quem me chama?
— Sou eu, estou comendo desta fruta...
— Desgraçada, é a árvore do Bem e do Mal!
— Justamente. Conheço agora tudo, a origem das coisas e o enigma da vida. Anda, come e terás um grande poder na terra.
— Não, pérfida!
— Néscia! Para que recusas o resplendor dos tempos? Escuta-me, faze o que te digo, e serás legião, fundarás cidades, e chamar-te-ás Cleópatra, Dido, Semíramis; darás heróis do teu ventre, e serás Cornélia; ouvirás a voz do céu, e serás Débora; cantarás e serás Safo. E um dia, se Deus quiser descer à terra, escolherá as tuas entranhas, e chamar-te-ás Maria de Nazaré. Que mais queres tu?
Realeza, poesia, divindade, tudo trocas por uma estulta obediência. Nem será só isso. Toda a natureza te fará bela e mais bela. Cores das folhas verdes, cores do céu azul, vivas ou pálidas, cores da noite, hão de refletir nos teus olhos. A mesma noite, de porfia com o sol, virá brincar nos teus cabelos. Os filhos do teu seio tecerão para ti as melhores vestiduras, comporão os mais finos aromas, e as aves te darão as suas plumas, e a terra as suas flores, tudo, tudo, tudo...
Eva escutava impassível; Adão chegou, ouviu-os e confirmou a resposta de Eva; nada valia a perda do paraíso, nem a ciência, nem o poder, nenhuma outra ilusão da terra. Dizendo isto, deram as mãos um ao outro, e deixaram a serpente, que saiu pressurosa para dar conta ao Tinhoso.
Deus, que ouvira tudo, disse a Gabriel:
— Vai, arcanjo meu, desce ao paraíso terrestre, onde vivem Adão e Eva, e traze-os para a eterna bem-aventurança, que mereceram pela repulsa às instigações do Tinhoso. E logo o arcanjo, pondo na cabeça o elmo de diamante, que rutila como um milhar de sóis, rasgou instantaneamente os ares, chegou a Adão e Eva, e disselhes:
— Salve, Adão e Eva. Vinde comigo para o paraíso, que merecestes pela repulsa às instigações do Tinhoso.
Um e outro, atônitos e confusos, curvaram o colo em sinal de obediência; então Gabriel deu as mãos a ambos, e os três subiram até à estância eterna, onde miríades de anjos os esperavam, cantando:
— Entrai, entrai. A terra que deixastes, fica entregue às obras do Tinhoso, aos animais ferozes e maléficos, às plantas daninhas e peçonhentas, ao ar impuro, à vida dos pântanos. Reinará nela a serpente que rasteja, babuja e morde, nenhuma criatura igual a vós porá entre tanta abominação a nota da esperança e da piedade.
E foi assim que Adão e Eva entraram no céu, ao som de todas as cítaras, que uniam as suas notas em um hino aos dous egressos da criação...
... Tendo acabado de falar, o juiz-de-fora estendeu o prato a D. Leonor para que lhe desse mais doce, enquanto os outros convivas olhavam uns para os outros, embasbacados; em vez de explicação, ouviam uma narração enigmática, ou, pelo menos, sem sentido aparente. D. Leonor foi a primeira que falou:
— Bem dizia eu que o Sr. Veloso estava logrando a gente. Não foi isso que lhe pedimos, nem nada disso aconteceu, não é, frei Bento?
— Lá o saberá o Sr. juiz, respondeu o carmelita sorrindo.
E o juiz-de-fora, levando à boca uma colher de doce:
— Pensando bem, creio que nada disso aconteceu; mas também, D. Leonor, se tivesse acontecido, não estaríamos aqui saboreando este doce, que está, na verdade, uma cousa primorosa. É ainda aquela sua antiga doceira de Itapagipe?
FIM

NOTA DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE NOS 50 ANOS DO GOLPE DE ESTADO DE 1964

Nota pública da Comissão Nacional da Verdade nos 50 anos do golpe de Estado de 1964 



Há cinquenta anos um golpe de estado militar destituiu o governo constitucional do presidente João Goulart. Instaurou por longo tempo no país um regime autoritário que desrespeitava os direitos humanos; no qual os direitos sociais de muitos eram ignorados; em que os opositores e dissidentes foram rotineiramente perseguidos com a perda dos direitos políticos, a detenção arbitrária, a prisão e o exílio; onde a tortura, os assassinatos, os desaparecimentos forçados e a eliminação física foram sistematicamente utilizados contra aqueles que se insurgiam. Neste cinquentenário, a Comissão Nacional da Verdade quer homenagear essas vítimas e reafirmar sua determinação em ajudar a construir um Brasil cada vez mais democrático e mais justo. A Comissão Nacional da Verdade nasceu com o objetivo de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período. Baseia-se na convicção de que a verdade histórica tem como objetivo não somente a afirmação da justiça, mas também preparar a reconciliação nacional, como vem assentado no seu mandato legal. Esteia-se na certeza de que o esclarecimento circunstanciado dos casos de tortura, morte, desaparecimento forçado, ocultação de cadáver e sua autoria, a identificação de locais, instituições e circunstâncias relacionados à prática de violações graves de direitos humanos, constituem dever elementar da solidariedade social e imperativo da decência, reclamados pela dignidade de nosso país. Não deveria haver brasileiro algum ou instituição nacional alguma que deles se furtassem sob qualquer pretexto. No ano passado comemoramos os vinte cinco anos da promulgação da Constituição Brasileira de 1988. Oitenta e dois milhões de brasileiros nasceram sob o regime democrático. Mais de oitenta por cento da população brasileira nasceu depois do golpe militar. O Brasil que se confronta com o trágico legado de 64, passados cinquenta anos, é literalmente outro. O país se renovou, progrediu e busca redefinir o seu lugar no concerto das nações democráticas. Não há por que hesitar em incorporar a esta marcha para adiante a revisão de seu passado e a reparação das injustiças cometidas. Pensamos ser este o desejo da maioria. É certamente o sentido do trabalho da Comissão Nacional da Verdade. 
Brasília, 30 de março de 2014. 
Comissão Nacional da Verdade


COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE E AS VERDADES SOBRE A DITADURA MILITAR BRASILEIRA


Em nome da verdade
“Quem é essa mulher. Que canta sempre esse estribilho? Só queria embalar meu filho. Que mora na escuridão do mar. Quem é essa mulher que canta sempre este lamento. Queria lembrar o tormento, que fez o meu filho suspirar”. É improvável que a jornalista Hildegard Angel consiga descobrir onde estão os restos de seu irmão, Stuart Angel Jones, dirigente do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), preso em maio de 1971, torturado, morto e desaparecido. Ele tinha 25 anos de idade. A busca desesperada e incansável da mãe deles, a estilista Zuleika Angel Jones, conhecida como Zuzu Angel, marcou para sempre a vida de Hildegard. Zuzu perambulava por gabinetes, enviava cartas, chegou a pedir ajuda ao então secretário de Estado americano Henry Kissinger. Sua dor comoveu, entre muitos outros, o cantor e compositor Chico Buarque. Ele e Miltinho, do MPB-4, são os autores da canção “Angélica”. A história de uma mulher cujo único desejo era saber onde estava seu filho ou o corpo do menino que ela queria embalar.
No dia 10 de dezembro, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) entregará à presidente Dilma Rousseff, no Palácio do Planalto, o relatório com as conclusões dos dois anos e meio de trabalho. Pela primeira vez na história das investigações que apuraram os crimes cometidos durante a ditadura militar, o documento recomendará que seja responsabilizada toda a cadeia de comando das Forças Armadas, desde o golpe de 1964. Entre os responsáveis vão figurar todos os presidentes do regime (de Castello Branco, o primeiro, a João Baptista Figueiredo, o último) e seus ministros ligados aos aparatos de segurança, como o Serviço Nacional de Informações (SNI). “Os ex-presidentes já morreram, mas isso não impede a responsabilização”, assim como a de muitos outros, “a exemplo dos generais da reserva, ambos ex-comandantes do DOI-Codi do Rio de Janeiro, Leonidas Pires Gonçalves e José Antônio Nogueira Belham”, relata o coordenador da CNV, Pedro Dallari (leia entrevista).
Nas últimas semanas, a CNV concentrou a maior parte do tempo à discussão do que fazer com a Lei da Anistia, que perdoou os crimes da ditadura e também as ações armadas dos opositores. Por cinco dos seis votos (o único contrário foi de José Paulo Cavalcanti), decidiu-se que será recomendada também a responsabilização criminal, civil e administrativa de todos os agentes envolvidos nos crimes. A responsabilização só poderá ocorrer se a Lei da Anistia for revista. Mas não cabe à CNV fazer esse tipo de recomendação. “Faremos o relato, identificaremos os responsáveis e caberá, então, ao Ministério Público, à Justiça ou mesmo ao Legislativo decidir o que será feito”, explica Dallari.

Há quase dois anos e meio, a CNV foi instalada pela presidente Dilma Rousseff com base na lei 12.528/2011, e instituída em 16 de maio de 2012. A CNV tem por finalidade apurar graves violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Para tanto, ouviu centenas de depoimentos, analisou um sem fim de documentos e confrontou versões.
Muita coisa ainda não foi esclarecida, mas, para Hildegard Angel, o trabalho da CNV e o desdobramento das investigações, por meio da Comissão Estadual da Verdade [do Rio de Janeiro] já ajudaram a esclarecer o que houve com seu irmão, Stuart, e com sua mãe, Zuzu. Stuart teria sido preso, torturado e morto nas dependências do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) em 14 de junho de 1971. Mesmo fim teve sua mulher, a também militante e guerrilheira Sônia Morais Jones, morta dois anos depois e igualmente dada como desaparecida. O acidente de carro em que Zuzu morreu também teria sido provocado por agentes da repressão. “As pessoas que cometeram esses crimes devem ser responsabilizadas. Não podemos justificar essas atrocidades. Precisamos saber onde estão esses assassinos. Preciso saber onde está o corpo do meu irmão”, diz Hildegard, com a voz embargada. Durante muitos anos, a versão existente era de que o corpo de Stuart Jones teria sido lançado ao mar. Agora, também em depoimentos à Comissão, existe uma nova pista: a de que seus restos estariam na cabeceira da pista da Base Aérea de Santa Cruz, na zona Oeste do Rio.

Versões falaciosas
Em palestra proferida há poucos dias (“Golpe de 64 e seus reflexos”), em uma conferência de advogados, Dallari avaliou como positivos os dois anos de investigações. Citou como exemplo o sucesso das sete diligências realizadas nas bases militares listadas no relatório preliminar da CNV sobre tortura em instalações das Forças Armadas, publicado em fevereiro deste ano. Destacou a última, realizada no dia 21, na base naval de Ilha das Flores, em São Gonçalo (RJ).
Diante das recusas das Forças Armadas de entregar documentos do período da ditadura que poderiam esclarecer casos de tortura, desaparecimentos e mortes, a CNV adotou, por sugestão de Dallari, a tática de vistoriar as instalações militares. As visitas quase sempre eram acompanhadas por ex-militantes da esquerda que haviam sido presos, torturados ou mesmo presenciado abusos cometidos contra companheiros. “Essa visita à base naval foi terrível”, recordou Paulo Sérgio Pinheiro, integrante da CNV, em entrevista ao Valor, no mês passado. Nessa ocasião, dez ex-presos políticos e um ex-soldado do corpo de fuzileiros navais identificam as casas – já abandonadas e bastante deterioradas – onde ocorriam as torturas.
As visitas quase sempre seguiram o mesmo roteiro. Os integrantes da CNV chegavam ao local, eram recebidos pelos oficiais comandantes e iniciavam o trabalho. “São momentos de constrangimento extremo. Estão ali vítimas do regime, descrevendo atos de violência para jovens que não foram seus algozes. Muitos sequer haviam nascido nessa época. Mas estão ali, cumprindo ordens”, disse Pinheiro.
Apesar dos avanços, o coordenador da CNV afirmar que, para completar o pilar de memória, verdade e reconciliação, previsto na lei que criou a CNV, é necessário fazer que as Forças Armadas reconheçam as graves violações de direitos humanos e a utilização de quartéis e instalações militares como centros de tortura após o golpe de 1964.

O problema é que os militares não reconhecem a legitimidade da Comissão. Os da ativa, por causa da hierarquia, sequer podem tocar no assunto publicamente. “Tudo isso é um constrangimento para nós, que somos de uma nova geração. Devemos respeito aos nossos antecessores, ainda que, em alguns momentos, acabemos sendo criticados por atos que não conhecemos. Éramos crianças ou sequer tínhamos nascido”, observa um oficial do Exército. Filhos desses militares que seguem a carreira dos pais e estudam na Academia Militar das Agulhas Negras, sofrem com o mesmo dilema: o respeito a uma geração já há muito afastada dos quartéis, mesmo discordando dela.
As Forças Armadas veem a Comissão com desconfiança e mesmo rancor, desde que foi instaurada, em 2012, durante cerimônia que lotou o salão principal do Palácio do Planalto, à qual compareceram quatro ex-presidentes que antecederam Dilma desde a queda do regime militar – Fernando Collor, José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Na ocasião, a presidente Dilma Rousseff, ela mesma presa e torturada como integrante da organização clandestina VAR-Palmares, fez um discurso que levou às lágrimas muitos dos presentes e ela própria. “A ignorância sobre a história não pacifica. Pelo contrário, mantém latentes mágoas e rancores. A desinformação não ajuda a apaziguar. O Brasil merece a verdade, as novas gerações merecem a verdade, merecem a verdade factual também aqueles que perderam amigos e parentes. O Brasil não pode se furtar a conhecer a totalidade de sua história”, disse Dilma.
Também presentes ao ato, os três comandantes militares, brigadeiro Juniti Saito (Aeronáutica), general Enzo Peri (Exército) e almirante Julio Soares de Moura Neto (Marinha) desde então trataram os membros da CNV no limite da polidez. Entretanto, não atenderam aos pedidos para que pudessem examinar documentos da ditadura. Alegaram sempre que eles não existem mais. Foram destruídos, queimados ou simplesmente desapareceram. Ao mesmo tempo, baixaram uma ordem de silêncio que inclui negar todos os pedidos de entrevista sobre o assunto.
Por um tempo, oficiais da reserva estavam liberados para emitir opiniões. Depois da divulgação de um documento do Ministério da Defesa que supostamente admitiria a possibilidade de as Forças Armadas se desculparem pelos excessos cometidos, também esses militares foram calados. A última manifestação feita por generais de quatro estrelas negava o pedido de desculpas e dava o assunto por encerrado. Ainda assim, alguns oficiais, em conversas informais, deixam clara sua posição.
“O grande problema desse trabalho é que começa com uma grande mentira”, afirmou ao Valor um general da reserva. “Tenta reescrever a história a partir de uma luta entre o bem e o mal que não existe, nunca existiu. Essa comissão em nenhum momento teve o objetivo de esclarecer o que se passou. Não é um trabalho honesto. Todos sabemos que a guerrilha não lutava pela redemocratização do país. Lutava para fazer do Brasil um modelo comunista, como o de Cuba. Houve excessos? Houve, sim. De ambos os lados. Até por que, no lado das Forças Armadas, as investigações eram muito descentralizadas. Em alguns momentos, 200 mandados de interrogatórios eram expedidos. Como controlar isso?” Disse ainda: “O que nos assusta é que a Lei da Anistia foi uma lei de conciliação. Se começarmos a mexer nessa conciliação, vamos caminhar para uma crise e enfrentamento com as Forças Armadas.”
Talvez não seja preciso chegar a uma crise para sanar as lacunas do passado recente. Países do Cone Sul submetidos a ditaduras nas últimas décadas do século passado vêm cicatrizando suas feridas. “O pacto entre elites e militares no poder que sustentou as ditaduras se dissolveu de formas diferentes em cada um dos países do Cone Sul. De certo modo, isso nos ajuda a entender os motivos pelos quais algumas diferenças são perceptíveis, hoje, nos mecanismos utilizados em cada contexto para tratar a memória da repressão”, diz o cientista político da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Carlos Artur Gallo, que realizou pesquisa sobre o assunto. “Ao contrário do Brasil, onde uma Comissão da Verdade somente veio a ser constituída mais de 25 anos após o fim da ditadura, a Argentina, o Chile e o Uruguai assistiram aos trabalhos desses organismos pouco tempo após a transição para a democracia.”
Na Argentina, o saldo da repressão foi muito maior do que nos países vizinhos, e estima-se entre 10 e 30 mil o número de pessoas desaparecidas. No Chile, no Uruguai e no Brasil, o número de desaparecidos é menor. Aqui, as vítimas ficaram ao redor de 500. “Embora isso não seja motivo para que a democracia deixe de enfrentar o tema, é fato que a capacidade de mobilização em torno da questão é em alguma medida influenciada pela quantidade de pessoas que foram atingidas”, afirma Gallo.
Ainda que haja diferenças no que se relaciona ao modo como conduziram seus trabalhos, as comissões de investigação que funcionaram na Argentina, no Chile e no Uruguai “possibilitaram o reconhecimento público e oficial da existência da violência política, ajudaram a identificar os casos de mortes e desaparecimentos ocorridos em nome da doutrina de segurança nacional e estabeleceram pontos de partida para a elaboração de políticas públicas com vistas à reparação das famílias atingidas, mas, principalmente, de algum modo comprometidas com as demandas por memória, verdade e justiça”, diz o cientista.
Gallo observa que, a partir das investigações nesses países, foi possível obter avanços na elucidação dos crimes cometidos pela ditadura, levar repressores e ditadores para o banco dos réus e, ao trabalhar pública e coletivamente o tema, sedimentar as bases de uma cultura política na qual algo semelhante ao que se passou na vigência do autoritarismo não deverá se repetir.
Não se trata, afirma Gallo, de debater as diferenças entre crimes cometidos por agentes da repressão ou militantes de esquerda. O ponto central da discussão, em sua opinião, seria admitir que os possíveis crimes cometidos por militantes da luta armada “foram, em sua maioria, julgados por instituições a serviço do regime ditatorial, que, como foi amplamente noticiado na época, legitimavam o ideário anticomunista e reforçavam elementos de uma cultura do medo no Brasil. Assim, os crimes que até hoje não estão devidamente elucidados são as violações praticadas por agentes do Estado brasileiro que, a serviço de uma ideologia que considerava os próprios cidadãos inimigos públicos, torturaram, perseguiram, prenderam, julgaram, mataram e fizeram desaparecer centenas de pessoas. A Comissão Nacional da Verdade, portanto, tem o dever de completar a história do país, restabelecendo aspectos que durante décadas foram obscurecidos e/ou adulterados por versões oficiais elaboradas por agentes do aparato repressivo institucionalizado com o golpe de 1964”.
“Tanto para as vítimas, quanto para seus familiares, e para aqueles que estudam esse período da história do Brasil, a Comissão da Verdade não pode abrir mão de restabelecer aspectos que, por décadas, foram obscurecidos e adulterados por versões oficiais do aparato repressivo”, diz Gallo. “Ninguém consegue superar aquilo que não conhece, aquilo que não entende. Negar o passado ou impedir que se saiba o que aconteceu durante o período que vai de 1964 a 1985 colabora para que, coletivamente, a sociedade brasileira sinta os efeitos daquilo que, em psicologia, denomina-se ‘o passado que não passa’.”
Sem corpo
Superar esse passado, segundo a psicanalista e membro da Comissão da Verdade Maria Rita Kehl, implica obrigatoriamente dar fim a um trauma. “E quando esse trauma acaba? Ninguém pode saber. Quando acabará a dor de pais, mães, irmãos, avós que buscam notícias de seus entes queridos? Morreram, fugiram? Essa foi e é a suprema crueldade dos militares que participaram desse regime. Os militares dizem que manchamos a imagem deles com o trabalho da Comissão. A imagem já foi manchada há muito tempo. Os únicos que poderiam limpá-la seriam eles mesmos A política de Estado que permanece é a de não revelar o paradeiro dessas pessoas. É a de transferir para elas essa busca sem fim.”
No livro Você Vai Voltar para Mim e Outros Contos, Bernardo Kucinski conta uma história que talvez possa mostrar o que é “essa busca sem fim”. No conto chamado “O Velório”, Kucinski descreve com riqueza de detalhes um enterro. Tudo estava em seu lugar, como manda o protocolo dessas ocasiões. As velas, os ramos de flores, os familiares. Por fim, o caixão é levado à sepultura. Dentro não havia um corpo. Apenas uma roupa de Roberto, o filho de Antunes, desaparecido. Aos 90 anos, Antunes não queria morrer sem enterrar o filho cujo corpo nunca fora encontrado.
***
“Todos serão obrigados a reparar o mal”
A menos de 15 dias de entregar o relatório com as conclusões finais dos dois anos de trabalho da Comissão da Verdade, o coordenador dos trabalhos, Pedro Dallari, fala nesta entrevista sobre alguns dos pontos que farão parte do documento. O mais importante deles será a recomendação de que sejam responsabilizados todos os que fizeram parte da cadeia de comando das Forças Armadas que permitiram torturas e assassinatos em instituições militares. Segundo Dallari, essa decisão atingirá desde ex-presidentes da República, do regime militar, a todos os subordinados. “Sem exceção, todos foram responsáveis, mesmo aqueles que não mancharam suas mãos com sangue.”
Quais vão ser os pontos principais do relatório da Comissão da Verdade que vocês estão concluindo?
Pedro Dallari – Embora muitos venham dizendo que vamos pedir isso ou aquilo, determinar isso ou aquilo, o mandato de nossa comissão não prevê nada disso. Então, o que nós fizemos? Apuramos os fatos com o máximo de precisão e ouvimos todos os envolvidos na medida do possível. Nosso mandato permite fazer recomendações.
O que a comissão vai recomendar?
P.D.– Vamos recomendar a responsabilização criminal, civil e administrativa de todas as pessoas que fizeram parte da cadeia que permitiu a tortura, o assassinato e o desaparecimento de cidadãos brasileiros.
Mas, ao recomendarem essa responsabilização, a proposta não bate de frente com a Lei da Anistia?
P.D.– Não. Nós não temos poder ou competência para pedir que a Lei da Anistia seja revista. Mas ela não pode ser um empecilho para que se faça justiça. Só que não nos cabe pedir isso. A recomendação deverá ser seguida, ou não, pelo Legislativo e pelo Judiciário.
Como será essa responsabilização?
P.D.– Essas pessoas que comprovadamente participaram dessa violência serão obrigadas a reparar o mal que fizeram. Nossa constatação, depois de ouvir tantos depoimentos, é que os graves atentados contra os direitos humanos não foram fruto da ação isolada de alguns psicopatas. Isso foi uma política de Estado. O Estado brasileiro optou pela prática da tortura, morte e ocultação de cadáveres.
E quem serão essas pessoas responsabilizadas? O senhor pode falar de algumas?
P.D.– Serão desde os presidentes da República, todos a partir do golpe militar, e seguiremos a cadeia de comando. Os presidentes já estão mortos. Mas seus chefes superiores estão vivos. Chefes do Serviço Nacional de Informações, como o general da reserva Leônidas Pires Gonçalves, ministros militares, todos serão responsabilizados. O general José Antônio Nogueira Belham, comandante do DOI-Codi na época da prisão e do assassinato do deputado Rubens Paiva. Há ainda Sebastião Curió, o coronel Carlos Brilhante Ustra e muitos outros.
Carro acidentado de Zuzu Angel

O senhor está satisfeito com o trabalho da comissão?
P.D.– Estou sim. Mas tenho duas frustrações: uma delas é o fato da falta de reconhecimento das Forças Armadas sobre nosso trabalho. Não se trata de perdão ou desculpas, mas de admitir o que aconteceu. A outra é a de não termos conseguido avançar na localização dos corpos dos desaparecidos. Sabemos a dor profunda que as famílias dessas pessoas carregam.
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Monica Gugliano, para o Valor Econômico

sexta-feira, 19 de maio de 2017

PADRE LANDELL: O BRASILEIRO QUE INVENTOU O RÁDIO ANTES DE MARCONI!


Roberto Landell de Moura (Porto Alegre, 21 de janeiro de 1861 – Porto Alegre, 30 de junho de 1928) foi um padre católico, cientista e inventor brasileiro.
Teve sólida formação cultural e científica, e formou-se sacerdote em Roma. Voltando ao Brasil, passou a desenvolver sua carreira eclesiástica, sendo indicado para diversas paróquias nos estados do Rio Grande do Sul e São Paulo, mas pouco se sabe deste aspecto de sua vida, que parece ter sido pouco expressivo. Embora fosse devotado ao sacerdócio, antes de radicar-se definitivamente no Rio Grande do Sul suas passagens pelas paróquias foram tipicamente breves, e mais de uma vez pediu exoneração voluntária. Sabe-se que sua devoção à ciência e suas ideias avançadas para seu tempo causaram algumas vezes o espanto e a revolta dos católicos, e isso pode ter sido um fator importante na sua incapacidade de desenvolver um trabalho pastoral estável, e ao mesmo tempo seus experimentos ocupavam muito de sua energia e atenção. Somente na fase final de sua vida religiosa, já tendo deixado a ciência em segundo plano, sua carreira na Igreja se consolidou, sendo designado sucessivamente vigário-geral da Arquidiocese de Porto Alegre, cônego e penitenciário do Cabido Metropolitano, monsenhor e arcediago, responsável também pela paróquia do Menino Deus e finalmente pela paróquia do Rosário, em cuja igreja hoje estão depositados seus despojos.
Landell de Moura, no entanto, é mais conhecido pelo seu pioneirismo na ciência da telecomunicação, tendo desenvolvido uma série de pesquisas e experimentos que o colocam como um dos primeiros a conseguir a transmissão de som e sinais telegráficos sem fio por meio de ondas eletromagnéticas, o que daria origem ao telefone e ao rádio, senão o primeiro de todos, o que ainda é motivo de polêmicas. Vários testemunhos afirmam que ele vinha realizando testes bem sucedidos em ambas as modalidades de transmissão desde 1893 ou 1894, mas a documentação sobre esses primeiros experimentos é pobre e a data é disputada. O seu primeiro registro inconteste, documentado publicamente, é de 3 de junho de 1900, testando com sucesso aparelhos que transmitiram sem fio sons e sinais telegráficos. No Brasil ele usualmente é considerado o pioneiro em nível mundial. Nos outros países sua realização permanece largamente ignorada, embora um crescente número de fontes estrangeiras estejam aceitando sua primazia. Também deixou projetos que apontam seu pioneirismo na transmissão de imagens sem fio, sendo considerado nacionalmente um precursor da televisão e das fibras ópticas, mas também nestes campos a documentação sobrevivente não é muito clara, e internacionalmente sua contribuição nesta área específica caiu num esquecimento quase total. Demonstrou paralelamente algum interesse pela homeopatia, pela psicologia e pelo espiritismo, abordados pelo viés da ciência.


Teve muitas dificuldades técnicas e financeiras para desenvolver suas pesquisas, trabalhou a maior parte do tempo sozinho e encontrou muita resistência e incredulidade por parte de autoridades e da população, o que impediu que seu reconhecimento em vida fosse mais amplo, mas em certas esferas sua estatura científica foi devidamente apreciada e sabe-se que rejeitou oportunidades de divulgar seus inventos. Assim, a ideia popular que se formou em torno dele como um perseguido, injustiçado e sofrido cientista enfrentando um mundo insensível e obscurantista, se tem uma parte de verdade, tem também seu lado de mito romântico. A sua biografia ainda tem muitas lacunas e do seu legado científico apenas parte foi estudado, havendo muita documentação autografa ainda por explorar. Seja como for, no Brasil já recebeu uma série de homenagens e reconhecimentos oficiais. É cidadão honorário da cidade de São Paulo, patrono da Ciência, da Tecnologia e da Inovação do município de Porto Alegre, patrono dos radioamadores brasileiros, e em 2012, por decreto presidencial, seu nome foi inscrito no Livro dos Heróis da Pátria.

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Quando falamos em escavar o solo em busca de vestígios do passado, muitas pessoas imediatamente pensam em fósseis de dinossauros e utensílio...

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