Mas entre ser chamado de historiador e mentiroso, é inegável que a volumosa obra de Heródoto, batizada de Histórias, é considerada para alguns como o primeiro trabalho histórico ou pseudo-histórico, pois em seu tempo o próprio Heródoto não descartava o fato de que suas Histórias fosse uma "literatura diferente", no entanto, embora pensasse dessa forma, sua obra fora fonte de inspiração para historiadores de seu período e até de séculos posteriores.
Halicarnasso
Heródoto, embora tenha sido um grego, ele não nasceu na península balcânica e nem nas ilhas gregas, mas nasceu nos territórios coloniais gregos, chamados de Colônias Gregas na Ásia Menor. A cidade de Halicarnasso ficava localizada na Cária, defronte ao Mar Egeu, sendo hoje a atual cidade de Bodrum na Turquia. Mas, no início fora uma colônia grega fundada por Argos e Trezena, inicialmente compreendia a ilha de Zefiria no golfo de Cós. Posteriormente a cidade cresceu e mudou-se para o continente, vindo vários anos depois a se tornar uma das cidades mais importantes da região da Cária, até se tornar capital desta. Quando Heródoto nasceu, a Cária estava sob o governo persa há várias décadas, pois os persas haviam conquistado a Ásia Menor (hoje corresponde ao território da Turquia). No tempo que ele nasceu e viveu, reinava o rei persa Xerxes I. Embora, tal região estivesse ligada ao Império Persa, seus habitantes falavam grego ou jônio e preferiam manter a cultura grega do que adotar a cultura persa.
A cidade de Halicarnasso é principalmente lembrada na História por ter sido o lar de dois importantes historiadores como Heródoto e Dionísio de Halicarnasso (século I a.C). Lar do poeta Paniasis, da rainha Artemísia I de Cária a qual se unira ao exército do rei persa Xerxes I e combateu os gregos na Batalha de Artemísio (480 a.C) e na Batalha de Salamina (480 a.C), durante a chamada Segunda Guerra Médica ou Guerras Greco-persas.
Todavia, Halicarnasso também é conhecida por ter possuído uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo, o chamado Mausoléu de Halicarnasso, construído pela rainha Artemísia II para sepultar o corpo de seu falecido marido o sátrapa (governador persa) Mausolo (? -353 a.C). A imponente tumba fora considerada por longos anos uma maravilha arquitetônica. Hoje em dia apenas algumas ruínas são visíveis.
Família e formação
Paniasis |
Larcher fora um dos primeiros a traduzir o livro Histórias de Heródoto na modernidade e a estudar sua vida, daí ser considerado uma fonte de pesquisa acerca da vida deste historiador. Embora que hoje alguns de seus argumentos perderam validade. Paniasis embora não seja famoso hoje em dia, na Antiguidade fora considerado por gregos e romanos tendo sido um grande poeta, equiparável a Homero, Hesíodo e Antímaco. Seus únicos trabalhos que sobreviveram ao tempo, são a Herácleia ou Heracleiade, poema épico em homenagem ao herói Héracles (Hércules em latim), composto por nove mil versos, dividido em 14 livros. E o poema Os Iônicos ou Os Jônicos, o qual narrava através de sete mil versos (hoje apenas fragmentos destes são conhecidos) a história deste povo que colonizou a Jônia (antiga região na Ásia Menor, hoje território turco) e fora um dos povos formadores dos gregos.
Acerca da formação de Heródoto, pelo fato de ter pertencido a uma família abastada, é bem provável que recebera uma educação de qualidade e comum aos membros da sua classe. Logo, o mesmo na escola teria aprendido a ler, escrever, contar; teria tido aulas de educação física (parte importante do currículo escolar grego antigo), e possivelmente aulas sobre geografia, história, política, oratória, filosofia, etc. No entanto, não se conhece nenhum de seus professores, mas, Larcher sugere que Heródoto nessa fase teria lido ou pelo menos ouvido falar em alguns livros de história da época.
"A descrição da Ásia por Decideu, a história de Lídia, de Xantus, as da Pérsia de Helanicos de Lesbos e Charon de Lampsaco, gozavam então a mais alta reputação. Estas obras agradáveis, interessantes, foram sem dúvidas devoradas por Heródoto nesta idade em que se é ávido por conhecimentos, e lhe inspiraram o vívido desejo de percorrer os países cujas descrições o haviam encantado. Não era, contudo uma vaga curiosidade que o levava a viajar; ele se propunha uma finalidade mais nobre, a de escrever história. O sucesso dos historiadores que o haviam precedido não o amedrontou; pelo contrário, serviu para inflamá-lo; e embora Helano de Lesbos e Charon de Lampsaco tivessem tratado em parte do mesmo assunto, longe de ser desencorajado, ele ousou lutar contra eles, e não se esforçou em vão em superá-los". (LARCHER, 2006, p. 9).
A narrativa histórica antes de Heródoto
"Assim, desde seus princípios, a
História Oral esteve marcadamente envolvida com as questões da memória
humana, tanto coletiva quanto individual. E, nesse sentido, passou a ser
um relevante meio de valorização das identidades de grupos sem
escrita, por meio da coleta de seus depoimentos e da análise de sua
memória, de sua versão do mundo e dos acontecimentos". (Maria
Aparecida de Oliveira Silva, Histórias, Livro I, Clio, 2009).
A história oral fora a forma que prevaleceu antes do surgimento da escrita e até mesmo com esta tendo sido criada e desenvolvida, nem todos os povos tiveram acesso a escrita ao longo de milênios, assim a história oral prevaleceu nas chamadas sociedades ágrafas (sem escrita). Mas o que interessa sabermos aqui é que a história oral por bastante tempo era a forma de que as pessoas tinham como saber de acontecimentos internos e externos aos seus grupos, comunidades, vilas e cidades. Com a inexistência de meios de comunicação, as informações, as notícias eram transferidas verbalmente, pois mesmo se existe-se escrita entre aquele povo, a maioria da população era analfabeta, pois o ato de ler e escrever era de interesse do Governo e de certas classes.
Nas comunidades ágrafas os contadores de histórias, eram as pessoas mais velhas, as quais narravam a história de seu povo e seus saberes. Todavia, havia também os contadores de histórias itinerantes, homens que viajavam de cidade em cidade, de país em país, geralmente trabalhando como cantor, músico poeta, etc., o qual aproveitava para contar histórias que ouviu, viu e inventou. Tais homens se especializavam neste trabalho, pois como fora dito, geralmente eles contavam ou cantavam as histórias ao som de música ou a declamava em poesia.
Por esta época, a história oral possuía o papel de apenas informar e em muitos casos aqueles que informavam e recebiam a informação não se importavam em confirmar a veracidade das fontes. Fatos, boatos, mentiras, equívocos, etc., se mesclavam na narrativa oral compartilhada diariamente no mundo. A partir da década de 70 do século XX, a história oral passou a ser reinterpretada e reavaliada.
A realidade em parte mudou após o surgimento da escrita e quando esta surgiu entre outros povos. À medida que alguns Estados se tornavam maiores, mais poderosos e complexos, passou-se a ter a necessidade de melhorar a administração destes Estados, aí entrara o papel da escrita e dos relatórios.
Na ausência de historiadores propriamente falando, a História era escrita por funcionários do governo como forma de relatórios sobre as províncias ou territórios, abordando aspectos políticos (guerras, revoltas, etc.), sociais, econômicos, naturais (como ocorrência de secas, pragas, inundações, etc.); informações que seriam úteis para o soberano e seus funcionários.
Além disso, por muito tempo, a História se fundamentou a relatar a vida e o governo dos soberanos e dos ditos "grandes homens". Figuras importantes para uma dada sociedade ou povo, que foram consideradas relevantes para terem seus feitos contados e preservados para o futuro. Na Bíblia existe o chamado Livro dos Reis no Antigo Testamento, o qual narra a vida de alguns dos reis de Israel, começando com Davi e terminando com Joaquim, após esse ser libertado do Cativeiro da Babilônia em 538 a.C pelo rei persa Ciro II, o Grande.
Hecateu de Mileto |
"Na
verdade, os significados da História estão em constante mutação e é
preciso que o professor leve a reflexão em torno dessa constante mudança
para a sala de aula, fornecendo instrumentos para que seus estudantes
possam compreender a complexidade da História e a dificuldade de se
responder à pergunta “O que é História?” Essa pergunta não é nova, e cada
corrente de pensamento procura dar sua própria resposta. Por isso, não é
possível oferecer uma definição fechada para esse conceito. O mais
importante é estabelecer as linhas gerais do debate em torno da natureza
da História".
Logo, a narrativa histórica é bem mais antiga que o próprio Heródoto e fora praticada em vários locais, seja por viés oral ou escrito.
Mas porque Heródoto é chamado de "Pai da História"?
Um viajante em busca das maravilhas do mundo
Não se sabe ao certo quando Heródoto iniciou suas viagens que lhe serviriam de base para escrever seu livro As Histórias e por quanto tempo ele viajou, pois é provável que ele tenha realizado várias viagens em distintos períodos de sua vida. Outro fato que marca esse seu período de viajante é que existem dúvidas se realmente ele teria visitado todos os importantes locais que menciona em sua obra, como a Babilônia, a Pérsia (neste caso refere-se a região de mesmo nome e não no sentido de império) e Cartago.
O Egito fora um dos locais que mais maravilhou Heródoto, pois como Hartog [1999] diz: uma das ideias de Heródoto sobre viajar e escrever a história era poder vê e falar sobre as "maravilhas" (thôma). Hartog também sugere que thôma possa ser entendido também no sentido de "curiosidades". Heródoto dizia que existiam "maravilhas" naturais e construídas pelos homens que valiam apena serem conhecidas. As pirâmides de Gizé foram uma destas maravilhas que encantaram Heródoto. O mesmo dedicou um bom tempo a viajar pelo Egito, percorrendo o Nilo, visitando cidades como Mênfis, Tebas e Heliópolis, importantes cidades da época.
"Com
relação a maravilhas, o território da Lídia não tem mesmo nada que mereça ser
escrito, como há em outras regiões, a não ser as palhetas de ouro que descem do
Tmolo...". (HARTOG, 1999, p. 245 apud HERÓDOTO).
Na citação acima, dá-se para ver como François Hartog mostrara, que de fato Heródoto demonstrava interesse nestas "maravilhas" e nos monumentos (érgas), pois para ele tais obras eram uma expressão da beleza da arte humana e da influência divina, pois alguns destes monumentos eram dedicados aos deuses. Para Larcher as descrições sobre a Líbia (não confundir com a Lídia) e Cirenaica, concedem a confirmação que Heródoto teria passado por este países vizinho ao Egito, e talvez seguido para Cartago no oeste.
"Suas
excursões na Líbia e na Cirenaica precedem a viagem a Tiro. A descrição
exata da Líbia, desde as fronteiras do Egito até o promontório Soloeis,
hoje cabo Spartel, conforma-se em tudo ao que nos dizem os viajantes
mais estimados, e o doutor Shaw em particular, não permitindo dúvida
de que tenha visto este país por si mesmo. Somos ainda tentados a crer que
tenha estado em Cartago; seus encontros com um grande número de
cartaginenses autorizam esta opinião. Ele voltou sem dúvida pela mesma
rota ao Egito, e daí enfim passou a Tiro". (LARCHER, 2006, p. 12).
Na ilha de Tiro (hoje no Líbano), ele visitou um templo dedicado ao herói Héracles, e de lá teria percorrido o atual território palestino em Israel e teria seguido para a Babilônia (hoje no Iraque) e a Pérsia (hoje o Irã). Todavia, embora Larcher afirme que o historiador esteve na Babilônia, existem alguns que discordam disso, mas não entrarei nesta questão. Entretanto, Larcher conta que da Babilônia ele teria seguido para a Ásia Menor, por onde visitou também a Lídia e talvez a Cítia.
"A Cólcida foi o último país da Ásia
que percorreu. Queria assegurar-se pessoalmente se os Cólcidos eram
de origem egípcia, como lhe tinham dito no Egito, e se
eram descendentes de uma parte do exército de Sesostris que tinha
se estabelecido neste país. Da Cólcida passou pelos Citas e os Getos,
daí à Trácia, da Trácia à Macedônia; e enfim voltou à Grécia pelo Épiro.
Se não tivesse conhecido tão bem todos estes diferentes países, como
poderia ter dado uma descrição exata, falar com clareza da expedição de
Dario entre os Citas, e da de Xerxes à Grécia?". (LARCHER, 2006, p.
13).
De qualquer forma sabe-se que em 444 a.C, Heródoto voltou a ler outros trechos de sua obra, agora em Atenas, no festival das Panatenéias. Segundo alguns autores, Heródoto teria chegado à Atenas entre 446 e 445 a.C, possivelmente teria conhecido ou pelo menos avistado o famoso dramaturgo Sófocles (497-405 a.C) e o famoso general e político Péricles (495/492-429 a.C). Acredito que se Tucídides ouviu e conheceu Heródoto deve ter sido por esta época, pois ambos estavam morando em Atenas. Além disso, não se sabe se ambos teriam ido a Olímpia na ocasião para assistir os jogos.
Em Túrio
Sabe-se também que Heródoto fora um dos colonos que partira para a cidade de Túrio (Sibaris) na Itália, pelo ano de 444 a.C, como atestaram Larcher, Eusébio, Diilo, Aristóteles, Estrabão,Plutarco e outros. Não se tem certeza se o mesmo viveu o resto da vida em Túrio, mas sabe-se que permaneceu ali por muito tempo, pois em alguns casos ao invés de chamá-lo de Heródoto de Halicarnasso o chamavam de Heródoto de Túrio.
"Há muita aparência que ele passou o resto de seus dias nesta cidade, e parece certo que foi por esta razão que se lhe dá às vezes o sobrenome de Heródoto de Túrio. Estrabrão o diz positivamente. Eis como se exprime este sábio geógrafo ao falar da cidade de Halicarnasso: ‘O historiador Heródoto era desta cidade. Chamaram-no depois Turiano, porque estava entre os que foram enviados em colônia a Túrio.’ O imperador Juliano não o chama de outra forma no fragmento de uma carta que Suidas nos conservou: Se o Turiano parece a qualquer um digno de fé, etc. A coisa foi mesmo levada tão longe, que Heródoto tendo começado sua História com estas palavras: Publicando suas pesquisas, Heródoto de Halicarnasso, etc.; Aristóteles, que cita este começo, mudou esta expressão pela de Heródoto de Túrio. Este sábio não é o único a fazê-lo; porque Plutarco observa que muitas pessoas haviam feito a mesma mudança". (LARCHER, 2006, p. 18-19).
Assim como outros fatos de sua vida, sua estadia em Túrio também é pouco conhecida. Heródoto quando se mudou para a cidade, contava com seus quarenta anos de idade, no entanto, não se sabe se ele era casado e tinha filhos por esta época, ou se casou em Túrio e teve outros filhos. Além disso, também não se possui informações sobre suas atividades; embora fosse um historiador, o mesmo só passou a ser chamado assim após anos depois de sua morte, logo, em vida, ele não recebera salário por ser um historiador. Teria ele trabalhando em algum cargo público ou na política? Teria tido propriedades rurais que lhe dessem sustento? Teria sido um professor e tutor? Essas são perguntas que não temos respostas ainda, pois mesmos aqueles que escreveram sobre sua vida na Antiguidade possuem poucas informações sobre essa.
Contudo, sabe-se que o tempo em que vivera em Túrio dedicou-se a escrever e concluir sua vasta obra. Heródoto faleceu entre 425 e 420 a.C (em alguns livros mais antigos sugerem que ele teria morrido em 430 ou 428 a.C). Larcher [2006] alegava que Heródoto teria morrido com mais de 77 anos. Porém, hoje se acredita que o historiador teria morrido na casa dos 60 anos.
Provavelmente tenha morrido em Túrio, como sugere sua biografia no Suda ou Suidas, enciclopédia bizantina do século X. Outros relatos sugerem que ele teria morrido em Pella, capital da Macedônia, mas como Larcher [2006] mesmo comentara, tal relato é pouco confiável, pois não se sabe quem fora que disse isso, apenas consta em alguns registros tal possibilidade. Marcelino alega que Heródoto teria morrido em Atenas onde fora sepultado próximo as portas de Mélitides. No entanto, Larcher [2006] sugere que tal caso se tratasse de um cenotáfio (monumento em homenagem a algum falecido).
Estêvão de Bizâncio em seu dicionário Ethnica, escrito no século VI, quase quatro séculos antes do Suda, já contava que Heródoto havia morrido realmente em Túrio, e o mesmo até mencionara um epitáfio que teria sido gravado no túmulo do historiador:
"Esta terra encobre em seu seio
Heródoto, filho de Lixas, Dório de origem, e o mais ilustre
dos historiadores iônios. Ele se retirou para Thurium, que via como uma segunda pátria, a fim de se colocar a coberto das mordidas de
Momus". (LARCHER, 2006, p. 21).
O Pai da História
A história já era escrita antes de Heródoto, porque chamá-lo de o "Pai da História"? A primeira pessoa que teria dado esse epíteto a ele, fora o romano Marco Túlio Cícero (106-43 a.C) proeminente político, orador, advogado, filósofo e escritor. A menção a tal citação se encontra no livro Das Leis (De Legibus) escrito por Cícero por volta de 52 a.C. Posteriormente a obra de Cícero, outras pessoas também passaram a adotar o epíteto de "Pai da História" para Heródoto, embora que ao mesmo tempo também surgirá o epíteto de "Pai das Mentiras", mas sobre isso falarei mais adiante. Os motivos para considerar Heródoto como sendo o "Pai da História" não são claros, pois não sabemos quais foram às prerrogativas que Cícero usou para designar esta homenagem, no entanto, posso mencionar algumas que possam se referir o porquê desta homenagem.
A palavra história fora uma criação de Heródoto, ou seja, originalmente a palavra história fora um neologismo, derivado da palavra histor (ιστορ) que significava "investigar", "procurar". Heródoto criou a palavra história (no plural se diz historiai), que na época possuía um sentido de conhecer, pesquisar, procurar saber. Hoje seu sentido é bem mais complexo. Todavia, a invenção de Heródoto é tão marcante que o seu livro fora batizado com a palavra que ele criara: As Histórias (Ἰστορἴαι), embora não fora ele que dera este nome ao seu livro, como veremos adiante.
Porém, para alguns deve ter ficado a pergunta: se Heródoto criou a palavra história, como se chamava a história antes dele? Bom, neste caso cada povo possuía seus termos para designar tal palavra, e hoje quando traduzimos textos anteriores a época de Heródoto ou até mesmo posteriores, mas que não tiveram contato com sua palavra, é comum mesmo assim traduzir tal palavra como história, desde que tenha o significado aproximado, pois história pode-se referir tanto a fatos, ficção, lendas, mitos e mentiras.
A palavra história possui uma vasta abrangência, porém não confunda este sentido quando falamos da História (alguns historiadores não gostam de usar a palavra em maiúsculo e minúsculo para diferenciar, mas acredito que isso facilita o entendimento). No caso da História essa consiste na cadeia de fatos históricos analisadas, pesquisadas, criticadas e escritas ao longo do tempo, referentes a acontecimentos naturais e gerados pela humanidade. De fato a História é a disciplina ou a ciência humana como alguns falam. Isso serve para diferenciar do conceito normal de história.
Heródoto criou a palavra história, mas não o seu conceito, pois o conceito é mais antigo que ele mesmo, e quanto a palavra historiador, o termo que designa o profissional que trabalha com a História?
A palavra historiador é posterior a Heródoto, embora não se saiba com exatidão quando surgira. Em seu tempo, Heródoto não fora chamado de historiador, mas possivelmente de escritor, pois o sentido que ele pretendia dá a história ainda estava em desenvolvimento, daí alguns dizerem que ele escrevia um tipo "diferente de literatura". Hoje nós o chamamos de historiador e até Hecateu de Mileto também possa ser chamado de historiador, embora em seu tempo é provável que fosse chamado de filósofo, escritor e outros termos.
Outro aspecto que pode ter levado Cícero a considerar Heródoto como o "Pai da História", diz respeito a sua obra. E para isso precisamos analisar um pouco de sua obra, para entender o porquê da possibilidade de haver diferenças na escrita da história de Heródoto em relação a outros homens que o precederam.
As Histórias
As Musas eram filhas de Zeus e da titânide Mnemósine, a deusa da Memória. Segundo o mito, elas habitavam o Monte Parnaso. As Musas costumavam receber a visita do seu irmão Apolo, o qual além de ser o deus do sol era o deus associado as artes, como a poesia e a música; e também recebiam a visita de sua irmã, a deusa Atena. Neste caso, Atena além de deusa da guerra era a deusa da sabedoria, e como as Musas estavam associadas ao conhecimento, daí a relação com Atena.
O primeiro livro, este escrito pela década de 450 a.C., fora batizado de Clio em referência a Musa da História. Os demais livros se chamam respectivamente: Euterpe, Tália Melpône, Terpsícore, Erato, Polímnia, Urânia e Calíope.
"Seu desejo de expor suas pesquisas (historié) para impedir que os feitos dos gregos e bárbaros se
apagassem da memória, principalmente as razões de terem entrado em conflito.
Estão aí presentes, por tanto, as noções de memória, identidade, sequência
de acontecimentos e confrontação entre opostos como apresentadas pela
tradição mítica". (QUEIROZ; IOKOI, 1999, p. 17).
"Heródoto
trabalhou com um material diverso e enorme. Com fontes orais ao interrogar
pessoas com quem se encontrava, com as experiências visuais obtida nas viagens
ao observar, classificar e medir costumes, edifícios, santuários, esculturas,
monumentos, rios, mares, caminhos, etc - ver com os próprios olhos era então
considerado mais importante do que ouvir com os próprios ouvidos - e também com
textos e inscrições". (QUEIROZ; IOKOI, 1999, p. 17).
Outro aspecto da obra de Heródoto diz respeito a cronologia. Os livros não seguem uma cronologia contínua, em dados momentos existem interrupções e retornos ao passado. Por exemplo, ele começa a narrar a ascensão de Ciro, o Grande por volta de 539 a.C, isso no Livro I - Clio, porém, já no Livro II -Euterpe ele se põe a contar parte da história do Egito, e isso o faz remeter há séculos antes, para depois no Livro III - Tália, retornar ao século VI a.C com Cambises II e sua conquista do Egito. No entanto, em dados momentos de sua obra, o tempo parece que ficar indeterminado, pois o mesmo começa a relatar aspectos sociais e culturais de outros povos como visto no Livro IV - Melpômene.
"As Histórias podem ser consideradas seja como uma justaposição seja como
um encaixe de descrições e de histórias ou de quadros e de narrativas".
(HARTOG, 1999, p. 261).
O Pai das Mentiras
Possivelmente ele tenha traduzido ou transcrito nomes próprios de forma errada ou feito comparações impróprias. Neste caso temos o exemplo de quando Heródoto faz menção a alguns deuses persas e tenta compará-los aos deuses gregos. O problema é que determinadas divindades persas possuíam várias funções, logo compará-los aos deuses gregos onde alguns possuíam apenas uma ou duas funções era errôneo.
"Enfim,
o fazer-crer da narrativa levanta a questão do querer-crer - ou ainda, a
questão do ouvido do público. [..]. O fazer-crer do narrador enxerta-se, com
efeito, no querer-crer do público, do mesmo modo que em sua recusa de
crer". (HARTOG, 1999, p. 301).
Como fora visto, Tucídides fora o primeiro a questionar o trabalho de Heródoto, o chamando de contador de histórias. Por sua vez, sua má fama começou provavelmente com o persa Ctésias de Cnido no século IV a.C, o qual era médico na corte do rei Artaxerxes II (ca. 436 a.C - ca. 358 a.C), e decidiu com base nos registros persas em escrever a "verdadeira" história da Pérsia. Tal obra fora chamada de Persiká. A proposta de Ctésias além de escrever a história da Pérsia era desmentir o que Heródoto falara sobre os persas e seu império. Ou seja, era revelar as mentiras ditas por Heródoto. Porém, Ctésias não se saiu bem na sua tarefa: Luciano escreveu pesadas críticas sobre ele e o próprio Heródoto, chamando os dois de mentirosos.
"Isso
feito, Heródoto, durante muito tempo, aparecerá como mentiroso e essa imagem passará
a integrar, daí em diante, na esfera das coisas bem conhecidas, tornando a
denominação quase inevitável". (HARTOG, 1999, p. 305).
· Abade J.-B. Bonnaud (séc. XVIII) - Heródoto, Historiador do Povo Hebreu sem o Saber. O abade alegara que o livro Euterpe que fala sobre o Egito era uma cópia descarada e mal feita de livros e informações do Antigo Testamento. Para ele Heródoto era um mentiroso.
"Esse
tratado de Plutarco certamente representa um momento importa na construção e
difusão da figura de Heródoto como mentiroso, figura que, além da Idade Média,
atinge o Renascimento e os tempos modernos". (HARTOG, 1999, p. 306).
Heródoto e Tucídides
Heródoto e Tucídides Dois historiadores, duas obras chamadas História |
Mas, o que nos interessa aqui, é a visão distinta de Tucídides acerca da História e acerca do trabalho de Heródoto. Tucídides valoriza o tempo presente, para ele a História deveria narrar o tempo presente e não o passado, pois este estava longe e era inalcançável. A Literatura se encarregaria de contar o passado. Logo, ele desconsiderada as obras de Heródoto e de Hecateu, pois ambos procuraram tratar de aspectos antigos e que não testemunharam (Heródoto era criança quando Xerxes invadiu a Grécia), daí eles serem chamados de logógrafos por ele.
"Ao
contrário de Heródoto descarta totalmente a ideia de destino, de um curso da
História. Considera que os fatos ocorrem em virtude dos interesses e das
paixões dos homens. A moral guia a vida privada, não dos Estados; a vontade de
poder atua como força motriz do mundo. Ecos de Tucídides permeiam as obras de
Machiavel e Nietzsche". (QUEIROZ; IOKOI, 1999, p. 20).
"A
narrativa de Tucídides é totalmente analítica; ele preza particularmente a
cronologia precisa. Em tudo, inclui acontecimentos que outros
poderiam considerar insignificantes, pois seu propósito é registrar o que
aconteceu. Mas neste propósito assenta um desenvolvimento que volta e meia
salienta, de modo que a atenção do leitor está sempre, simultaneamente,
voltada para o geral. Os méritos de sua narrativa aumentam e diminuem com
os acontecimentos". (RANKE, 2011, p. 257).
"Num estilo denso e sóbrio, tenta revelar as razões e a psicologia das partes envolvidas no conflito entre atenienses e espartanos e, diante da documentação, pretende ser imparcial: no entanto, não consegue deixar de imprimir suas próprias ideias filosóficas e preferências políticas no decorrer da narrativa; de adorar alguns personagens, execrar outras. Usa discursos para expor opiniões contraditórias e antíteses como a do interesse e do direito". (QUEIROZ; IOKOI, 1999, p. 20).
Referências Bibliográficas:
HERÓDOTO. História. Traduzido por Pierre Henri Larcher. Rio de Janeiro, W. M. Jackson, 1950. (Clássicos da Jackson - vol. XXIII e XXIV). Obra digitalizada para a Editora eBooksBrasil em agosto de 2006.
HARTOG, François. O Espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte, Ed. da UFMG, 1999.
QUEIROZ, Tereza Aline Pereira; IOKOI, Zilda Márcia Gricoli. A história do historiador. São Paulo, Humanitas FFLCH/USP, 1999.
RANKE, Leopold von. Heródoto e Tucídides. Revista História da Historiografia, Rio de Janeiro, número 6, 2011, p. 252-259.
BLOCH, Marc. A Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002.