domingo, 9 de julho de 2017

LEANDRO KARNAL E AS QUATRO LINHAS DE FORÇA: 2.ª O CONTEÚDO


Leandro Karnal, em seu livro Conversas com um Jovem Professor nos sugere que o profissional da educação deve pensar em quatro linhas de força que devem cruzar quando falamos de uma boa aula, vamos verificar cada uma delas no Blog do Maffei, mas uma por dia:


         A segunda linha de força é o conteúdo em si. Existem programas, livros, apostilas, coordenadores, vestibulares e muitas variáveis que nos fazem, permanentemente, parecer atrasados com o conteúdo. Não importa o quanto você corra: na última etapa, com frequência a mais interessante, você está defasado. Para piorar: tudo e todos retardam o avanço do conteúdo. Avisos da direção, indisciplina, feriados e um mundo infinito de coisas que acontecem na sua aula e que impedem de falar ou de ensinar.



         Planeje a quantidade de conteúdo que permita uma aula produtiva. Dar demais ou de menos atrapalha o ritmo dos alunos. Se sua aula tem 45 minutos, digamos, pense que quase 15 (geralmente mais) serão perdidos nos bueiros da chamada, indisciplina, avisos, mãos que se levantam para ir ao banheiro etc. Então, imaginando que todo o conteúdo deve fazer link com o que você deu na aula anterior naquela turma (lembre-se de que o aluno  acabou de sair de uma aula sobre Tabela Periódica e está entrando numa sobre Império Bizantino), que este link demore uns cinco minutos e que você precisa reservar uns cinco minutos para fechar o conteúdo retomando conceitos centrais e reforçando o que foi dado restam... vinte minutos de aula. Evite começar lento e começar a correr quando o tempo se esgota. A técnica não pode ser superior ao conteúdo: você não pode passar mais tempo escrevendo do que explicando, mais tempo montando data-show do que analisando e mais tempo removendo cadeiras para um debate do que realizando o evento.

sábado, 8 de julho de 2017

SCHOPENHAUER NOS DÁ UMA DICA DE COMO PROCEDER COM NOSSA LEITURA


Sobre livros e leitura
Arthur Schopenhauer

A ignorância só degrada a pessoa quando é acompanhada de riqueza. O pobre é limitado por sua pobreza e por suas necessidades; no seu caso o trabalho substitui o saber e ocupa seus pensamentos. Por outro lado, os ricos que são ignorantes vivem apenas para seus prazeres e se parecem ao gado, como podemos notar diariamente. Isto é ainda mais censurável porque não usaram a riqueza e o ócio para aquilo que lhes empresta o mais alto valor.

Quando lemos, outra pessoa pensa por nós: só repetimos seu processo mental. Trata-se de um caso semelhante ao do aluno que, ao aprender a escrever, traça com a pena as linhas que o professor fez com o lápis. Portanto, o trabalho de pensar nos é, em grande parte, negado quando lemos. Daí o alívio que sentimos quando passamos da ocupação com nossos próprios pensamentos à leitura. Durante a leitura nossa cabeça é apenas o campo de batalha de pensamentos alheios. Quando estes, finalmente, se retiram, que resta? Daí se segue que aquele que lê muito e quase o dia inteiro, e que nos intervalos se entretém com passatempos triviais, perde, paulatinamente, a capacidade de pensar por conta própria, como quem sempre anda a cavalo acaba esquecendo como se anda a pé. Este, no entanto, é o caso de muitos eruditos: leram até ficar estúpidos. Porque a leitura contínua, retomada a todo instante, paralisa o espírito ainda mais que um trabalho manual contínuo, já que neste ainda é possível estar absorto nos próprios pensamentos. Assim como uma mola acaba perdendo sua elasticidade pelo peso contínuo de um corpo estranho, o mesmo acontece com o espírito pela imposição ininterrupta de pensamentos alheios. E assim como o estômago se estraga pelo excesso de alimentação e, desta maneira prejudica o corpo todo, do mesmo modo pode-se também, por excesso de alimentação do espírito, abarrotá-lo e sufocá-lo. Porque quanto mais lemos menos rastro deixa no espírito o que lemos: é como um quadro negro, no qual muitas coisas foram escritas umas sobre as outras. Assim, não se chega à ruminação: e só com ela é que nos apropriamos do que lemos, da mesma forma que a comida não nos nutre pelo comer, mas pela digestão. Se lemos continuamente sem pensar depois no que foi lido, a coisa não se enraíza e a maioria se perde. Em geral não acontece com a alimentação do espírito outra coisa que com a do corpo: nem a quinquagésima parte do que se come é assimilado, o resto desaparece pela evaporação, pela respiração ou de outro modo.

Acrescente-se a tudo isso que os pensamentos postos no papel nada mais são que pegadas de um caminhante na areia: vemos o caminho que percorreu, mas para sabermos o que ele viu nesse caminho, precisamos usar nossos próprios olhos.
Nenhuma qualidade literária como, por exemplo, força de persuasão, riqueza de imagens, dom de comparação, audácia, ou amargor, ou brevidade, ou graça, ou leveza de expressão, ou ainda agudeza, contrastes surpreendentes, laconismo, ingenuidade etc., podemos adquirir lendo autores que as possuam. O que podemos é, através deles, despertar em nós tais qualidades no caso de já as possuirmos como inclinação, quer dizer em potentia, trazê-las à consciência, podemos ver tudo o que se pode fazer com elas, podemos ser fortalecidos nessa inclinação, na coragem de usá-las, podemos julgar o funcionamento de seu uso pelos exemplos e, assim, podemos aprender seu uso correto; em todo caso é só depois disto que as possuímos também em actu. Esta é a única maneira de a leitura educar-nos para escrever, na medida em que nos ensina o uso que podemos fazer de nossos dons naturais; sempre na suposição de que esses dons existam. Sem eles, no entanto, não aprendemos com a leitura nada além de um maneirismo frio, morto, e nos tornamos imitadores superficiais.
Os inspetores de saúde pública deveriam, no interesse de nossos olhos, cuidar de que houvesse um mínimo fixo, a não ser desobedecido, para o tamanho das letras impressas. (Quando eu estava em Veneza em 1818, na época em que ainda se fabricavam as verdadeiras correntes venezianas, um ourives me disse que aqueles que faziam a catena fina ficavam cegos aos 30 anos.).
Assim como as camadas de terra conservam em filas os seres vivos de épocas passadas, as prateleiras das bibliotecas também conservam em filas os erros do passado e suas explicações que, como aqueles no seu tempo, eram muito vivos e faziam muito barulho, mas hoje estão ali rígidos e petrificados, e só o paleontólogo literário os contempla.
Xerxes, segundo Heródoto, chorou ao mirar seu inumerável exército porque pensou que de todos aqueles homens nenhum estaria vivo cem anos depois: assim, quem não choraria ao ver um grosso catálogo de feira de livro, ao pensar que de todos esses livros nenhum estará vivo em menos de dez anos?
O que acontece na literatura não é diferente do que acontece na vida: para onde quer que nos dirijamos, imediatamente encontramos a incorrigível plebe da humanidade, que existe em toda parte como uma legião, que ocupa tudo e suja tudo, como moscas no verão. Daí a imensidão de livros ruins, essa erva daninha da literatura que se alastra, que retira a nutrição do trigo e o sufoca.
Assim, eles usurpam o tempo, o dinheiro e a atenção do público a que, por lei, pertencem os bons livros e seus nobres objetivos, enquanto os livros ruins foram escritos com a única finalidade de gerar dinheiro ou propiciar emprego. Não são, portanto, apenas inúteis, mas positivamente daninhos. Nove décimos de toda nossa literatura atual não tem outra finalidade a não ser o de tirar alguns centavos do bolso do público: com este objetivo conspiram decididamente o autor, o editor e o crítico.
É um golpe baixo e mal intencionado, mas lucrativo, que os literatos, os autores que escrevem para ganhar o pão e os polígrafos, conseguiram dar contra o bom gosto e a verdadeira educação do século, levando o mundo elegante pela coleira, adestrando-o para ler a tempo, ou seja, todos sempre a mesma coisa, o mais recente, para ter em seus círculos sobre o que conversar: para cumprir este objetivo servem os romances ruins e outras produções do tipo de penas outrora famosas como as de Spindler, Bulwer, Eugène Sue e outros. O que pode ser mais miserável do que o destino de tal público literário que se acha obrigado a ler, a todo momento, as últimas publicações de cabeças absolutamente ordinárias, que escrevem apenas por dinheiro e que, por esta razão, existem sempre em grande número e conhecem apenas de nome as obras dos raros e superiores espíritos de todos os tempos e de todos os países! – Os jornais de literatura diários são, em especial, um meio habilmente inventado para roubar do público estético o tempo que este deveria dedicar às verdadeiras produções adequadas à sua formação e fazer com que este dedique seu tempo às improvisações cotidianas de cabeças ordinárias.
Como as pessoas leem sempre em vez do melhor de todos os tempos, o mais recente, os autores permanecem na esfera estreita das ideias circulantes, e o século se enterra cada vez mais profundamente nos seus próprios excrementos.
É por isso que, no que se refere a nossas leituras, a arte de não ler é sumamente importante. Esta arte consiste em nem sequer folhear o que ocupa o grande público, o tempo todo, como panfletos políticos ou literários, romances, poemas, etc., que fazem tanto barulho durante algum tempo, atingindo mesmo várias edições no seu primeiro e último ano de vida: deve-se pensar, ao contrário, que quem escreve para palhaços sempre encontra um grande público e consagre-se o tempo sempre muito reduzido de leitura unicamente às obras dos grandes espíritos de todos os tempos e de todos os países, que se destacam do resto da humanidade e que a voz da fama identifica. Só eles educam e ensinam realmente.
Os ruins nunca lemos de menos e os bons nunca relemos demais. Os livros ruins são veneno intelectual: eles estragam o espírito.

Para ler o bom uma condição é não ler o ruim: porque a vida é curta e o tempo e a energia escassos.

segunda-feira, 3 de julho de 2017

LEANDRO KARNAL E AS QUATRO LINHAS DE FORÇA: 1.ª O PROFESSOR

Leandro Karnal, em seu livro Conversas com um Jovem Professor nos sugere que o profissional da educação deve pensar em quatro linhas de força que devem cruzar quando falamos de uma boa aula, vamos verificar cada uma delas no Blog do Maffei, mas uma por dia:


A  AULA
Do ponto de vista prático, uma boa aula é um cruzamento de quatro linhas de força. A primeira diz respeito a você. A segunda é o conteúdo em si. A terceira está nas condições externas (ambiente, barulho externo, iluminação, calor, conforto da sala etc.). A quarta e mais importante diz respeito aos alunos.


PRIMEIRA LINHA: VOCÊ, O PROFESSOR

Digamos o óbvio: você é, como todo o ser humano um elemento variável. Há dias bons e ruins. Há biorritmos: tenho colegas que adoram dar aula à noite e eu amo sempre dar aula no primeiro momento da manhã. Há problemas pessoais que interferem na sua atuação profissional. Com o tempo, você perceberá que há infecções específicas do magistério, como a “outubrite”, mal que acomete educadores quando o ano está no fim. Não tem jeito. Não somos robôs. Tenha sempre presente: você varia muito e seu aluno ainda mais. Entenda um pouco esse ritmo. Mas há um recurso para enfrentar essas oscilações. Antes de começar a jornada de trabalho pense: como estou hoje? Estou bem? Ótimo. Estou ansioso ou angustiado com a conta de luz que não consegui pagar? Tente afastar esse pensamento de forma prática: depois da aula, eu verei isso. Estou com um pouco de dor de cabeça? Posso resolver uma indisposição com algum remédio? Essas perguntas são importantes porque a consciência de um mal-estar ou de uma aflição costuma diminuir o controle que essa angústia tem sobre mim. Aprenda a se conhecer. O sintoma mais normal (e ruim) de quem não se conhece bem é a reação excessiva a coisas pequenas. Um aluno não abriu o livro na página certa e você teve vontade de matá-lo? Isso é um sintoma. É muito sábio ter um pouco de consciência sobre seu estado de ânimo para ser, no mínimo, justo com os alunos e, no máximo, eficiente como profissional.


domingo, 2 de julho de 2017

ARTHUR SCHOPENHAUER DISSERTA SOBRE A DOR DA EXISTÊNCIA

A Dor
A Vida é Dor. Quem deseja, sofre; quem vive, deseja; a vida é dor. Quanto mais elevado é o espírito do homem, mais sofre.
A vida não é mais do que uma luta pela existência com a certeza de sermos vencidos. A vida é uma incessante e cruel caçada onde, às vezes como caçadores, outras como caça, disputamos em horrível carnificina os restos da presa.
A vida é uma história da dor, que se resume assim: sem motivo queremos sofrer e lutar sempre, morrer logo, e assim consecutivamente durante séculos dos séculos, até que a Terra se desfaça.

Deus, Criador. Se é certo que um Deus fez este mundo, não queria eu ser esse Deus: as dores do mundo dilacerariam meu coração. Se imaginássemos um demônio criador, ter-se-ia o direito de lhe censurar, mostrando-lhe a sua obra: “Como te atreves a perturbar o sagrado repouso do nada, para criares este mundo de angústia e de dores?”
Nosso Inferno. O inferno de nossa vida supera o de Dante no ponto de que cada um de nós é o demônio do seu vizinho. Há também um arquidemônio, a quem os outros obedecem: é o conquistador, que dispõe os homens uns em frente dos outros e lhes grita: “Vosso destino é sofrer e morrer; portanto, matem-se mutuamente”. E assim procedem os homens.
O Melhor dos Mundos. Se mostrássemos aos homens as horríveis dores e os atrozes tormentos a que está constantemente exposta sua existência, tremeriam de espanto; e se ao mais convencido otimista fizéssemos visitar os hospitais, os lazaretos, as salas de tortura dos cirurgiões, as prisões, os campos de batalha, os tribunais de justiça, os sombrios refúgios da miséria, e se por último, o fizéssemos contemplar a torre de Ugolino(1), acabaria por reconhecer de que modo é este “o melhor dos mundos possíveis”.
Nosso Mundo; Modelo de Horrores. Se considerarmos a dificuldade que teve Dante em descobrir o céu e suas alegrias, logo se verá que classe de mundo é o nosso. Por quê? Porque o nosso mundo nada apresenta de análogo. E para descrever o Paraíso viu-se o poeta obrigado a dar parte das notícias que lhe deram os seus antepassados, sua Beatriz e vários santos. Sem dúvida, Dante descobriu muito bem o Inferno. Por quê? Porque achou o assunto e o modelo na realidade do nosso mundo.
A Tragicomédia de Nossa Vida. Vista e examinada minuciosamente de alto e de longe, a vida de cada homem tem o aspecto de uma comédia; em sua total consideração ou em seus aspectos mais dignos de apreço, se apresentará como uma contemplação trágica. O afã e o trabalho de cada dia, os desejos e receios cotidianos, as desgraças de cada hora, os acasos da sorte sempre disposta a nos enganar são outras tantas cenas da comédia. As aspirações iludidas, as ilusões desfeitas, os esforços baldados, os erros que completam nossa vida, as dores que se acumulam até terminar na morte, o último ato, eis a tragédia. Parece que o destino quis juntar o escárnio ao desespero, e, fazendo de nossa vida uma tragédia, não nos permite conservar a dignidade de uma personagem trágica. Por isso é que em todos os atos da vida representamos o lamentável papel de cômicos.
Da Dor ao Aborrecimento. A dor e o aborrecimento são os dois últimos elementos entre os quais oscila a vida do homem. Os homens exprimiram esta oscilação de modo curioso; depois de haverem feito do inferno o lugar de todos os tormentos e dores, que deixaram para o céu? Justamente o aborrecimento.
Rio Abaixo. A vida é um mar cheio de escolhos e turbilhões que o homem evita à força de prudência e cuidados, sem embora desconhecer que, à medida que avança sem poder retardar a marcha, corre para o definitivo e inevitável naufrágio, a morte, fim fatal de sua acidentada navegação, é parte ele muito mais perigoso que todos os turbilhões e escolhos de que conseguiu escapar.
Disfarces da Dor. Nossos esforços para banir a dor de nossa vida não conseguem outro resultado senão o de fazê-la mudar de forma. Em sua origem tomam o aspecto da necessidade, cuidado, para atender as coisas materiais da vida, e quando, após um trabalho incessante e penoso, conseguimos afastar a horrível máscara da dor neste determinado aspecto, adquire outros mil disfarces, segundo a idade e as circunstâncias: o instinto sexual, o amor apaixonado, a inveja, o rancor, os ciúmes, a ambição, a avareza, o temor, a enfermidade, etc.
Toma o aspecto triste e desolado do tédio, da sociedade, quando não encontra outro modo de se apresentar. E se com novas armas conseguimos afastá-la novamente, recuperará sua antiga máscara, e a dança recomeça.
Condenados à Morte. Na primeira mocidade, colocamo-nos perante o destino, como as crianças, que, em frente ao pano de um teatro, impacientes e alegres, esperam as maravilhas que virão surgir em cena. É uma felicidade não podermos saber nada de antemão.
Para quem sabe o que realmente vai se passar, as crianças são inocentes condenados não à morte, mas à vida, e que desconhecem ainda a sua sentença.
Todos Desterrados. Se não fosse a dor, poderíamos dizer que a nossa existência no mundo não teria nenhuma razão de ser. É um absurdo pensar que a dor, que nasce da vida e enche o mundo, seja apenas um acidente, e não o próprio fim. Cada desgraça pessoal apresenta-se com uma exceção, mas, como somos todos desgraçados, a desgraça geral é a regra.
Vivemos Combatendo. Na desgraça, pensar em outros que são mais desgraçados, é o nosso maior consolo: é este o remédio eficaz ao alcance de todos. Porém, como os carneiros, que saltam no prado, enquanto o carniceiro faz a sua escolha no meio do rebanho, assim, em nossas horas felizes, não sabemos que desastre nos prepara o destino, justamente nesse momento: enfermidade, ruína, loucura, perseguições, etc. Tudo que defendemos, resiste-nos, tudo tem uma vontade hostil que é preciso vencer. A história nos diz que a vida dos povos é uma sucessão de guerras e revoltas; os anos de paz não passam de curtos entreatos. O mesmo acontece com a vida do homem, em constante luta contra as penas ou o aborrecimento, males abstratos, e contra seus semelhantes. Em todas, as partes e ocasiões temos que travar combate com um adversário. A vida é uma guerra sem quartel, e a morte nos encontra com as armas na mão.
O Tempo. Mais um Tormento. A rapidez do tempo, que se conserva atrás de nós como um vigia dos forçados, é mais um tormento da existência, que nos faz viver apressadamente sem sossego e sem deixar-nos respirar. São poupados somente aqueles que o tempo condenou ao aborrecimento.
Necessidade da Dor. Todos nós necessitamos sofrer certo número de preocupações, de penas e misérias, da mesma maneira que um barco tem necessidade de lastro para conservar seu equilíbrio. Se assim não fosse, se súbito nos libertássemos do peso da dor e das contrariedades, o orgulho do homem o faria em bocados ou pelo menos ele seria levado às maiores irregularidades e até à loucura furiosa, do mesmo modo que o nosso corpo rebentaria se repentinamente deixasse de sentir a pressão atmosférica. O quinhão de quase todos os homens durante sua vida resume-se em pesares, trabalho e miséria, porém, se todas as aspirações humanas se realizassem, como que se preencheria o tempo? O que preencheria sua vida? Se os homens vivessem no país das fadas, onde nada exigisse esforço e onde as perdizes voassem já assadas e recheadas ao alcance da mão, num país, onde cada um pudesse obter a sua amada sem dificuldade alguma, eles morreriam de tédio ou se enforcariam, outros despedaçar-se-iam entre si, causando-se maiores males que os impostos pela natureza. E isto demonstra que para nós não há melhor cenário que aquele que ocupamos, nem melhor existência do que a atual. Se pensamos (e só é possível ter-se uma ideia aproximada) na dor, nos tormentos de todas as espécies que o sol ilumina no seu curso, sentimo-nos propensos a desejar que a sua luz perca o poder criador da vida, como acontece com a Lua, e que a superfície do nosso planeta se faça tão gelada e estéril como a do astro da noite.
A Grande Mentira da Vida. Nossa vida é um episódio que perturba, sem nenhuma utilidade, a serenidade do nada. Mesmo aquele que não considera a existência como uma carga, à medida que passam os anos tem a consciência clara do que a vida é, em todos os seus aspectos, uma imensa mistificação, para não dizer uma formidável zombaria.
O Espectador se Aborrece. O homem que sobrevive a duas ou três gerações pode ser comparado ao espectador de um circo, que assiste às mesmas farsas duas ou três vezes seguidas. Como a farsa estava calculada para uma única representação sua repetição não causa efeito no ânimo do espectador, o qual se aborrece por estarem dissipadas a ilusão e a novidade.
Uma Bela Expressão. A vida é uma carga enfadonha e aborrecida, uma tarefa que devemos desempenhar com tanto trabalho, que involuntariamente pensamos no descanso: e neste sentido a palavra defunctus é uma bela expressão.
Vítimas e Algozes. Povoado por almas torturadas e por diabos que torturam, o mundo é um imenso inferno.
A Filosofia não é o Catecismo. Ainda ouvirei dizer que a minha filosofia entristece tudo, isto porque digo a verdade àqueles que só gostariam que eu lhes dissesse: “Deus, Nosso Senhor fez tudo muito bem”. Ide à igreja, e deixai os filósofos em paz, ou, pelo menos, não lhes exijam que ajustem as suas doutrinas ao vosso catecismo. Recorrei aos filosofastros e encomendai-lhes teorias ao vosso gosto.
Não há nada que dê mais prazer ou que seja mais fácil do que perturbar o otimismo dos que ensinam filosofia.
A Dor de Viver. Se o ato da geração fosse somente obra de razão e reflexão, em vez de ser uma necessidade ou uma voluptuosidade, subsistiria a espécie humana? Não sentiríamos piedade pela geração futura, para lhe poupar a dor de viver, ou, ao menos, não hesitaríamos em impor-lhe a sangue frio tão pesada carga?
Inveja e Compaixão. Não há uma só pessoa que seja verdadeiramente digna de inveja; e quantas são dignas de compaixão.
Pranto, Dor e Aborrecimento. Nossa razão se obscurece ao considerarmos que as inúmeras estrelas fixas, que brilham no céu, não têm outro fim senão o de iluminar mundos onde reinam o pranto, a dor, e onde, no melhor dos casos, só vinga o aborrecimento; pelo menos a julgar pela amostra que conhecemos.
O Mundo; Lugar de Expiação. Brama criou o mundo por uma espécie de pecado ou desvario, e permanece nele para expiar sua falta. – Muito bem! – Segundo o budismo, uma perturbação inexplicável criou o mundo, produzindo-se depois um longo repouso na beatitude serena, chamada Nirvana, que será conquistada pela penitência. Perfeitamente. Para os gregos o mundo e os deuses eram a obra de uma necessidade insondável, explicação admissível, porque nos satisfaz provisoriamente. Ormuzd combate com Ariman: isto podemos admitir. Mas um Deus como esse Jeová, que animi causa, por seu bel-prazer, criou este mundo de lágrimas e dores, e que ainda se alegra e se aplaude de o haver criado, achando-o bom, isso já é demasiado forte. Sob este ponto de vista, podemos considerar a doutrina dos judeus como a última entre todas as que professam os povos civilizados, sobretudo, sendo que tomemos em consideração de ser ela a única que não possui qualquer vestígio de imortalidade. Ainda que a teoria de Leibnitz fosse verdadeira, embora se admitisse que entre os mundos possíveis este é o melhor, essa demonstração não nos daria nenhuma teodiceia, porque o Criador não se limitou a criar o mundo, mas também a possibilidade de sua criação: por isso deveria ter criado um mundo melhor. A dor que enche o mundo protesta irada contra a hipótese de uma obra perfeita devida a um ser infinitamente bom e sábio, e também todo poderoso. E, por outra parte, é bem evidente a notória imperfeição, a burlesca caricatura que é o homem, obra acabada da criação. Não é possível explicar essa dissonância. Quando consideramos o mundo como obra de nossa própria culpa, e, portanto, como alguma coisa que não pode ser melhor, as dores e miséria da humanidade são provas em apoio desta tese. Se o mundo é obra de um criador, as dores voltam-se contra ele dando lugar a cruéis sarcasmos; mas se é obra nossa, a acusação é contra o nosso ser e a nossa vontade. Isto nos faz pensar que viemos ao mundo já viciados, como os filhos de pais gastos pelos desregramentos, e que se a nossa existência é tão miserável, e tem por desfecho a morte, é porque assim merecemos, para expiar nossa culpa.
Generalizando, nada é mais certo: a culpa do mundo é que causa os sofrimentos, e entendemos esta relação no sentido metafórico, e não no físico e empírico. Por isso, a história do pecado original reconcilia-me com o Antigo Testamento; para mim é a única verdade metafísica que o livro contém – expressa em forma alegórica. A nada se assemelha tanto nosso destino como à consequência de uma falta, de um desejo culpado. Para ter orientação na vida, e considerar a vida em seu verdadeiro aspecto, basta habituarmo-nos ao pensamento de que este mundo é um vale de lágrimas, em lugar de penitência; a penal colony, como a definiram os mais antigos filósofos, e alguns padres da Igreja. Não é mister que eu diga o que vale a sociedade de nossos semelhantes; aquele estão conscientes que mereciam outra melhor, assim como se sabe que não é a menor pena do presidiário a sociedade em que ele se encontra.
Um espírito elevado, uma alma delicada, um gênio pode sentir a mesma necessidade de isolamento que um nobre prisioneiro que se encontra na cadeia rodeado de criminosos vulgares. Se sempre nos lembrássemos de que viemos ao mundo para expiar uma culpa, acolheríamos sem surpresa e sem indignação as imperfeições de nossos semelhantes, os tormentos que aqui sofremos, cuja miserável constituição intelectual e moral se revela até no rosto. A certeza de que o mundo e o homem não podem mudar nos encheria de dó pelo próximo. Com efeito, que podemos esperar de tais seres? Penso, às vezes, que a melhor maneira dos homens se cumprimentarem em vez de ser “Cavalheiro, Senhor, Sir”, poderiam ser, “companheiro de sofrimentos, soci malorum, my fellow-sufferer”… Por mais irritante que pareça esta expressão, tem mais fundamento que as usuais, e recorda-nos a paciência, indulgência e amor ao próximo, e, usada por todos, beneficiaria a cada um.
A Dor é a Única Positiva. Do mesmo modo que o rio corre manso e sereno, enquanto não encontra obstáculos que se oponham à sua marcha, assim corre a vida do homem quando nada se lhe opõe à vontade. Vivemos inconscientes e desatentos: nossa atenção desperta no mesmo instante em que nossa vontade encontra um obstáculo e choca-se contra ele. Sentimos ato contínuo tudo o que se ergue contra a nossa vontade, tudo o que a contraria ou lhe resiste: ou o que é mesmo, tudo o que nos é penoso e desagradável. No entanto, não prestamos atenção à saúde geral do nosso corpo, mas percebemos ligeiramente aonde o sapato nos molesta; não pensamos nos negócios e só nos importamos com uma ninharia que nos incomoda. Isto quer dizer que o bem-estar e a felicidade são valores negativos, e só a dor é positiva. É um absurdo acreditar o contrário; que o mal é negativo. Ele é positivo, porque se faz sentir. Toda a felicidade, todo o bem é negativo, e toda a satisfação também o é, porque suprime um desejo ou termina um pesar. Acrescentamos a isto que, em geral, nunca sentimos uma alegria maior que a que sonhávamos, e que a dor sempre a excede. Se quereis certeza das diferenças entre o prazer e a dor, comparem a impressão do animal que devora outro, com a impressão do devorado.
Bolhas de Sabão. O homem só vive no presente, que se converte no passado, e afunda-se na morte. Exceto as consequências que podem influir no presente, e que são filhas de sua vontade, ou de seus atos, a sua vida passada já não existe. Devia portanto ser-lhe indiferente que esse passado fosse de prazeres ou tristezas. O presente foge-lhes das mãos, transformando-se no passado. O futuro é incerto. Fisicamente, o andar não é mais do que uma queda evitada a cada instante; da mesma maneira a existência é a morte suspensa, adiada, e a atividade de nosso espírito não é mais que uma luta constante contra o tédio. É pois fatal que a morte alcance a vitória. Por haver nascido lhe pertencemos, e durante nossa vida não faz senão brincar com a presa antes de a devorar. E assim como quem faz bolhas de sabão, e apesar da segurança de que acabará por rebentar, se entretém em fazê-la aumentar de volume, assim seguimos o curso de nossa existência, prodigalizando-lhe cuidados e atenções.
A Felicidade Não Pode Viver no Presente. A vida é uma constante mentira, quer nas coisas pequenas como nas grandes. Quando nos faz uma promessa, não a cumpre, a não ser para mostrar-nos que era pouco desejável o nosso desejo. Da mesma maneira nos engana a esperança quando não se realiza o que esperávamos. E se a vida cumpre o que nos prometeu, é só para nos tornar a tirar. A beleza do paraíso, que à distância admiramos, desaparece logo que nos deixamos seduzir. A felicidade está no futuro, ou no passado; o presente é uma pequena nuvem escura que o vento impele sobre a planície cheia de sol. Diante e atrás dela, tudo é luminoso; só a nuvem é que projeta uma sombra.
A Vida na Paz e na Guerra, e Sua Finalidade. A vida nunca se apresenta como um mimo que nos é dado gozar, mas sim como uma tarefa que tem de se cumprir à força de trabalho; disto nasce e toma origem uma concorrência sem tréguas, uma luta sem fim, uma miséria geral, uma agitação em que tomam parte todas as forças do espírito e do corpo. Milhões de homens, reunidos em nações, trabalham para o bem público, trabalhando assim cada um em seu próprio interesse, porém, as vítimas deste trabalho morrem aos milhares. Às vezes, por preconceitos absurdos, outras, por uma política sutil, as nações se aniquilam numa guerra. É preciso que o sangue do povo corra em abundância para expiar a culpa de alguns, ou para realizar os caprichos de outros. Enquanto reina a paz no mundo, a indústria e o comércio prosperam, as invenções se multiplicam, os navios sulcam os mares, transportando para toda parte produtos do mundo, as ondas tragam milhares de homens. O tumulto é imenso, enquanto uns se agitam e movem, outros meditam. Mas qual é a suprema finalidade de tantos esforços? Manter, no caso mais favorável, a vida de seres efêmeros em uma miséria suportável, e uma ausência relativa de dor que o tédio aceita constantemente, e ademais a reprodução desses seres, e a renovação de seus esforços.
Indefesa do Homem. De todos os seres, o homem é o mais necessitado: só tem vontades e desejos, um conjunto de centenas de necessidades. Abandonando a si próprio, vive na terra sem segurança nenhuma a não ser sua miséria. A luta pela vida, cada dia renovada, a necessidade que o constrange, e as imperiosas exigências materiais, preenchem a sua existência. Ao mesmo tempo, outro instinto o atormenta; o de perpetuar a sua raça.
Ameaçado por todos os lados pelos perigos que o rodeiam, usa de sua prudência sempre vigilante para poder escapar. Com passo inquieto, lançando em volta olhares angustiosos, segue o seu caminho em luta constante com os casos e com seus inúmeros inimigos. O homem não se sente seguro entre os da sua raça e nem nos maislongínquos desertos. Qualibus in tenebris vitae, quantisque periclis degitur hocc’aevi, quodcunque est! Lucr. 11,15.
Trabalhar ou Aborrecer-se. A necessidade imperiosa do homem é assegurar a existência, e feito isto, já sabe o que fazer. Portanto, depois disso, o homem se esforça para aliviar o peso da vida, torná-la agradável e menos sensível: “matar o tempo”, isto é, fugir ao aborrecimento. Livres da preocupação de assegurar a existência, e livres seus ombros de todo fardo moral ou material, eles mesmos constituem sua própria carga, e sentem-se felizes porque viveram uma hora desapercebida, embora isto significa que sua vida a qual se esforçam com tanto zelo para prolongá-la, ficou encurtada pelo mesmo espaço de tempo. O aborrecimento merece tê-lo em conta; ele se reflete na fisionomia. O aborrecimento é a origem do instinto social, porque faz com que os homens, que pouco se amam, se procurem e se relacionem. O Estado considerado como uma calamidade pública, e por prudência toma medidas para o combater. O aborrecimento como o seu extremo oposto, a fome, pode impelir o homem aos maiores desvarios; o povo precisa panem et circenses.
Fundado na solidão e na inatividade, o rude sistema penitenciário de Filadélfia faz do aborrecimento um instrumento de suplício tão terrível, que mais de um condenado tem-se suicidado para fugir a ele. A miséria é sofrimento pungente do povo; o desgosto é para os favorecidos. Na vida civil, o domingo significa o tédio, e os seis dias, o desgosto. A Felicidade é um Sonho. Sentimos a dor, mas não a ausência da dor; sentimos a inquietação mas não a ausência; o temor, mas não a tranquilidade. Sentimos o desejo e a aspiração, como sentimos a sede e a fome; mas, apenas satisfeitos, se acabam, como o bocado que, uma vez engolido, já não existe para o nosso paladar.
Enquanto possuamos os três maiores bens da vida, saúde, mocidade e liberdade, não temos consciência deles, e só com a perda deles é que os apreciamos, porque são bens negativos. Somente os dias de tristeza é que nos fazem recordar as horas felizes da vida passada. À medida que os prazeres aumentam, nossa sensibilidade diminui; o hábito já não é um prazer. As horas passam lentamente quando estamos tristes; correm rapidamente quando são agradáveis; porque a dor é positiva e faz sentir sua presença. O aborrecimento nos dá a noção do tempo e a distração nos faz esquecer. Isto prova que a nossa existência é mais feliz quando menos a sentimos: de onde se deduz que mais feliz seríamos se nos livrássemos dela. Uma grande alegria, assim não a julgaríamos se ela não viesse atrás de uma grande dor. Não podemos atingir um estado de alegria serena e duradoura. Esta é a razão porque os poetas são obrigados a rodear seus protagonistas de tristes ou perigosas circunstâncias, para no fim os livrar delas. No drama e na poesia épica, o herói sofre mil torturas: nos romances os heróis lutam pondo em relevo os tormentos do coração humano. “A felicidade não passa de um sonho – dizia Voltaire, tão favorecido pelo destino? – a única realidade é a dor”. E acrescenta: “Há oitenta anos que a experimento e nada faço senão resignar-me e dizer a mim mesmo que as moscas nasceram para serem comidas pelas aranhas, e os homens para serem devorados pelos desgostos”.


O Eterno Estribilho. Vista exteriormente assombra a insignificância da vida da maioria dos homens, vista interiormente é sinistra e lúgubre. Formada por inúmeras dores e aspirações impossíveis, o homem passa sonhando pela meninice, mocidade, virilidade e velhice, rodeado de ideias banais. Os homens assemelham-se a relógios que não sabem porque andam: cada vez que um novo ser nasce, dá-se corda no relógio da vida humana para seguir repetindo o eterno e gasto estribilho de uma caixa de música, frase por frase, compasso por compasso, com pequenas variações.
Joguetes da Natureza. O homem, cada um dos homens, é um sonho a mais, um sonho fugaz criado pela tenaz e constante vontade de viver, imagem efêmera que o espírito infinito da natureza desenha na página do tempo e do espaço; impressa nela alguns instantes logo se desfaz para dar lugar a muitas outras. O mais triste, o ponto que nos deve fazer pensar profundamente, é que a vontade de viver há de pagar cada uma dessas imagens efêmeras e caprichosas com o preço de dores profundas e inúmeras, e da morte por longos anos. Eis porque nos tornamos repentinamente sérios perante um cadáver.
O Teatro e os Artistas. O mundo é um vasto campo de batalha onde os seres somente devorando-se uns aos outros conseguem conservar e defender a vida; onde todo animal carnívoro é o túmulo vivo de tantos outros; onde o viver significa sofrer longos tormentos; onde a capacidade para a dor aumenta na proporção da inteligência, e atinge, portanto, no homem o mais elevado grau. Os otimistas quiseram adaptar o mundo ao seu sistema, e apresentá-lo a prior como o melhor dos mundos possíveis. O absurdo é evidente. Dizem-me para abrir os olhos e contemplar a beleza do céu iluminado pelo sol, as montanhas, os vales, as torrentes, as plantas, os animais, que sei eu! Acaso será o mundo uma lanterna mágica? A contemplação é bela, confesso, mas aí representar, é coisa completamente diferente. Após o otimista surge o homem que nos fala das causas finais, e elogia as sábias leis que preservam os astros de se chocarem no seu percurso; que evitam o mar e a terra de se confundirem, e os mantém separados; que faz com que nem o frio nem o calor sejam eternos, e que, pela inclinação da eclíptica, não permite a primavera, ser eterna podendo assim amadurecer os frutos, etc. Mas tudo isso não são mais que simples “conditiones sine quibus non”. Porque se os planetas devem ter uma existência mais longa, embora seja o período que demora em chegar a eles a luz de uma estrela longínqua, e se não desaparecem após o nascimento, era preciso que as coisas estivessem mal arquitetadas, para que a base fundamental ameaçasse ruína. Chegamos aos resultados desta obra tão elogiada, e observamos os atores que se movimentam nesta, tão sábia e solidamente construída. Vemos que a dor aparece juntamente com a sensibilidade, e à medida que esta se torna inteligente, a dor e o desejo caminham par a par, e o primeiro chega a tal desenvolvimento que finalmente, a vida do homem nada mais é que um assunto trágico ou cômico. A sinceridade de certos homens não lhes permite a união ao coro dos otimistas, e com eles entonar a aleluia.

A Vida é um Pesado Gracejo. Se considerarmos a vida objetivamente, é duvidoso que ela seja preferível ao nada. Atrever-me-ia até a dizer que se a reflexão e a experiência pudessem fazer um acordo, elevariam a voz em favor do nada. Se batêssemos nas pedras dos sepulcros e perguntássemos aos mortos se querem ressuscitar, moveriam negativamente a cabeça. É esta a opinião de Sócrates na Apologia de Platão. O alegre e feliz Voltaire dizia: “Amamos a vida, porém o nada não deixa de ter o seu lado bom”. Em outra parte dizia: “Ignoro o que seja a vida eterna, mas esta é um pesado gracejo”.
De Ontem a Hoje. A juventude é uma infatigável aspiração de felicidade; a velhice, pelo contrário, é dominada por um vago e persistente sentimento de dor, porque já estamos nos convencendo que a felicidade é uma ilusão, que só o sofrimento é real. Por isso, o homem sensato deseja mais sofrer que gozar. Em plena juventude, quando eu ouvia bater à porta, saltava de alegria, e pensava: “Bom! Alguma coisa sucede”. Mais tarde, experimentado pela vida, o mesmo ruído sobressaltava-me de angústia, e pensava: “Que sucederá, meu Deus?…”
A Dura Jornada. Na velhice ao perder os sonhos da sua juventude todo homem que estudou a história do passado e a da sua época, e recolheu o fruto da sua experiência e da alheia, se não estiver com o espírito perturbado por preconceitos muito arraigados, chegará à conclusão de que este mundo é o reino do acaso e do erro, que é governado a seu modo sem compaixão alguma, auxiliados pela maldade e pela loucura, que ao homem empolgam constantemente. Mil trabalhos e esforços é preciso para impor uma ideia nobre, porque dificilmente encontra uma oportunidade de apresentar-se, enquanto que a vulgaridade artística, os sofismas, a malícia e a astúcia reinam de geração em geração, aqui e alhures sem serem interrompidos.
 

Nota:
(1)   Referência à obra “A Divina Comédia” (Inferno, canto XXXIII), 1. de Dante Alighieri, que viveu entre os anos 1265-1321. “Ugolino foi murado numa torre com os filhos. Quando o desespero lhe inspira um gesto equívoco – morder as próprias mãos –, os filhos lhe oferecem a própria carne para mitigar sua fome. Ugolino recusa. Morrem os filhos. E o pai acaba por lhes comer os cadáveres antes de por sua vez perecer”.
Autor: Arthur Schopenhauer

Fonte: A vontade de amar

A MORTE SEGUNDO ARTHUR SCHOPENHAUER


A Morte
O Grande Desengano. O laço formado com inconstância pela criação é desfeito pela morte, sendo a penosa aniquilação o principal erro do nosso ser; o grande desengano.
A Filosofia; Filha da Morte. Morte, gênio inspirador, a musa da filosofia. Sem a qual dificilmente se teria filosofado.
A Noite Eterna. Quão longa é a noite da eternidade comparada com o curto sonho da vida.
Não Sobreviver; Persistir. A indestrutibilidade que a duração infinita da matéria oferece, poderia consolar aquele que não pode conceber outra imortalidade.
“O quê?” – dir-se-á – “a persistência de uma matéria bruta, de um pouco de pó, seria a continuidade do nosso ser?”
Sim, um pouco de pó. Conhecem o que é esse pó? Aprendam a conhecê-lo antes de o desprezar. Essa matéria, pó e cinza, dentro em pouco dissolvida na água, brilhará no esplendor dos metais, projetará faíscas elétricas, manifestará o seu poder magnético, converter-se-á em animal e em planta, e no mistério de sua essência criará essa vida, cuja perda chora amargamente nosso espírito acanhado. Não será nada, então, persistir na indestrutível matéria?

Dogma da Imortalidade. A natureza nos ensina a doutrina da imortalidade, quando se observa, no Outono, o pequeno mundo dos insetos, e se nota que um prepara o leito para o longo sono do Inverno, que outro prepara o casulo onde se transforma em crisálida, para renascer na Primavera, e que, enfim, esses insetos se contentam, quando próximos da morte, em colocar os ovos em lugar favorável para renascerem um dia rejuvenescidos, num novo ser? A natureza nos expõe a esses exemplos com o intuito de demonstrar que não há diferença fundamental entre a morte e o sono; ambos, perigo algum constituem à existência. O cuidado com que o inseto prepara a célula, o buraco, o ninho e o alimento para a larva, que há de nascer na Primavera, e morre, uma vez isso feito, – assemelha-se muito ao cuidado com que o homem, à noite, arruma a roupa, prepara o almoço para o dia seguinte, indo depois dormir sossegadamente. E isto não sucederia se o inseto que morre no Outono não fosse exatamente igual ao que deve nascer na Primavera, assim como o homem que se deita, é o mesmo que se levanta no dia seguinte.
A Vida e a Morte. Nascimento e morte são condições da vida, e se equilibram, formando os dois polos, as duas extremidades da existência, e ao seu redor giram todas as suas manifestações. Um símbolo da mitologia hindu, a mais sábia de todas, dá como atributo a Shiva, o Deus da morte e da destruição, um colar de caveiras e o “lingam”, órgão e símbolo da geração, pois o amor é a compensação da morte, e um ao outro se neutralizam.


Para tornar mais evidente o contraste da morte do homem com a vida imortal da natureza, os gregos e os romanos adornavam os seus sarcófagos com baixos relevos figurando danças, caças, lutas entre animais, bacanais e, numa palavra, todos os espetáculos de uma vida mais forte, mais agradável e alegre, e até mesmo sátiros unidos a cabras.
Necessidade da Morte. A individualidade do homem tem tão pouco valor que nada perde com a morte; há alguma importância nos característicos gerais da humanidade, que são indestrutíveis. Se concedessem ao homem uma vida eterna, sentiria tanta repugnância por ela que acabaria desejando a morte, farto da imutabilidade de seu caráter e de seu ilimitado entendimento. Se exigíssemos a imortalidade perpetuaríamos um erro porque a individualidade não deveria existir, e o verdadeiro fim da vida é livrar-nos dela. Se não houvesse penas e trabalhos, acabaria o homem por enfastiar-se, e voltaria a sofrer as dores do mundo em tudo o que se encontrasse ao seu alcance. Num mundo melhor o homem não se sentiria feliz, o essencial seria fazer com que ele seja o que não é, isto é, transformá-lo completamente. A morte realiza a principal condição; deixar de ser o que é; tendo isto em conta, concebe-se lhe a necessidade moral.
Ser colocado noutro mundo, e mudar inteiramente de ser, é no fundo uma só e mesma coisa. Seria conveniente que a morte, que destruiu uma consciência individual, a reanimasse de novo dando-lhe uma vida eterna? Qual o conteúdo, quase invariável desta consciência? Uma torrente de ideias e preocupações mesquinhas, acanhadas, terrenas. Melhor seria deixá-la repousar eternamente.
Supremo Consolo. Contemplando a expressão de suave serenidade refletido no rosto da maioria dos mortos, parece que o fim de toda a atividade da vida, seja um consolo para a força que a mantém.
Indiferença da Natureza perante a Morte. A vida e a morte, o nascer e o morrer, é o maior jogo de dados que conhecemos; ansiosos, interessados, agitados assistimos a cada partida, porque a nossos olhos tudo se resume nisso. A natureza, pelo contrário, que é sempre sincera e nunca mente, contempla a partida com ar indiferente, não se preocupa com a morte ou a vida do indivíduo, entregando a vida do animal e também a do homem a todos os acasos, não fazendo o mínimo esforço para os salvar. Esmagamos sem querer o inseto que se acha em nosso caminho; a lesma necessita de todo meio para se defender, não pode fugir, esconder-se, nem enganar, está condenada a ser presa de todos os seus inimigos; o peixe saltita tranquilamente na rede ainda aberta; o sapo devido a sua moleza não pode salvar-se; o pássaro não vê o falcão voar sobre sua cabeça, nem a ovelha vê o lobo que a espreita oculto na mata. Todos esses animais inofensivos e fracos, vivem no meio de perigos ignorados, dos quais podem ser vítimas a todo momento.
A natureza exprime com esse procedimento, no seu estilo lacônico, oracular, que lhe é indiferente a destruição de seus seres, não podendo ser por eles prejudicada, e que em casos semelhantes tão indiferente é o efeito como a causa. Por isso abandona sem defesa esses organismos, obras de uma arte eterna, à vontade do mais forte, aos caprichos da sorte, à crueldade da criança, ao mau humor de um imbecil.
A natureza, mãe soberana e universal de todo o criado, sabe que quando seus filhos sucumbem, voltam ao seu seio, onde os conserva ocultos, expondo-os a mil perigos sem temor algum; a sua morte é para ela um divertimento, um jogo. A natureza é indiferente no que se relaciona ao homem ou ao animal; não se deixa impressionar conosco, durante a vida ou na morte. Tampouco devíamos nos comover porque fazemos parte dela.

A Folha Seca Interroga o Destino. Se dirigíssemos o pensamento para um longínquo futuro e procurássemos representar-nos às futuras gerações com os milhões de homens distintos e diferentes de nós pelos usos e costumes, perguntaríamos a nós mesmos: “De onde vieram? Onde estão agora? Onde se achará o profundo seio do nada, produtor do mundo, que os oculta?” Mas a esta pergunta, devíamos sorrir, por onde se poderá achar senão onde toda a realidade é, e será, no presente em tudo o que este representa e contém, em ti, insensato que interrogas, pois ignorando a tua própria essência, assemelhas-te a uma folha seca que oscila no ramo de uma árvore, e, no Outono, pensando na sua próxima queda, lamenta sua sorte, sem querer consolar-se com a ideia dos tenros brotos que na Primavera virão adornar a árvore. E a folha seca se queixa: “Já não sou eu, serão outras folhas”. Oh! folha insensata onde queres tu ir? De onde poderiam vir as outras folhas? Onde está esse nada em que temes sucumbir? Reconhece, pois, o teu próprio ser oculto na força íntima, sempre ativa da árvore, nessa energia que não acarreta a morte nem o nascimento de todas as suas gerações de folhas. Não sucede com as gerações de homens o mesmo que com as folhas de uma árvore?


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