A VIDA DE HEGEL
A situação
da Alemanha na passagem do século XVIII para o XIX é, frequentemente, definida
pelos historiadores como caótica. O despotismo de alguns governantes fazia-se
sentir sobre a nação que, fragmentada, era submetida a inúmeros despotismos de
segunda ordem e que competiam entre si. Formado pela Áustria e pela Prússia,
pelos príncipes eleitores, por 94 príncipes eclesiásticos, por 103 barões,
quarenta prelados e 51 cidades imperiais, o país compunha-se de aproximadamente
trezentos territórios independentes. O governo central não possuía um único
soldado e sua renda chegava, quando muito, a alguns milhares de florins. Não
havia jurisdição centralizada, predominava ainda a servidão e a censura era
aplicada drasticamente: qualquer leve indicação de tomada de consciência era
reprimida com rigor. Uma testemunha contemporânea resume a situação: “Sem lei
ou justiça, sem proteção contra a taxação arbitrária, incertos quanto à vida de
nossos filhos e quanto à liberdade e aos nossos direitos, vítimas impotentes do
poder despótico, faltando à nossa existência unidade e espírito nacional...
está é a situação da nossa nação”.
A poucos
quilômetros desse cenário político e social, o panorama era muito diferente. A
França emergia da revolução que aboliu a monarquia absoluta, destruiu a ordem
feudal e estabeleceu o predomínio da sociedade burguesa. O acontecimento
saudado pelos círculos intelectuais alemães como o alvorecer de uma nova era na
história da humanidade, mas sua perspectiva da revolução era muito diferente da
maneira de ver, de sentir e de agir dos franceses. Os antagonismos que
explodiam na França eram muito mais profundos do que na Alemanha, em virtude,
principalmente, do lento desenvolvimento econômico deste país, muito atrasado
em relação à França e à Inglaterra. “A classe média alemã”, diz Marcuse, “fraca
e dispersada em numerosos territórios com interesses divergentes, dificilmente
poderia projetar uma revolução. Os poucos empreendimentos industriais
existentes eram como que ilhas dentro de um sistema feudal que se eternizava. O
indivíduo, em sua existência social, ou era escravizado ou escravizava seus
semelhantes”. Apesar disso, esse indivíduo podia ao menos perceber, enquanto
ser pensante, o contraste entre a realidade miserável que existia por toda
parte e as potencialidades humanas que a Revolução Francesa liberava, e, como
pessoa moral, poderia preservar a dignidade e a autonomia humanas, pelo menos
na sua vida privada. Assim, enquanto a Revolução Francesa começou por assegurar
a realização da liberdade, à Alemanha coube apenas se ocupar com a ideia de liberdade.
Suas classes “educadas”, por não exercerem nenhuma ocupação prática,
encontravam-se incapacitadas para tentar a reforma da sociedade. O mundo da
ciência, da arte, da filosofia e da religião, não só lhes oferecia satisfação,
como também tornara-se, para elas, a “verdadeira realidade”, transcendentes às
miseráveis condições da sociedade. A cultura era, então, essencialmente
idealística, ocupada com a ideia das coisas, mais do que com as próprias
coisas.
Assim, antes
que legítimos teóricos da Revolução Francesa, como usualmente se diz, melhor
seria dizer, Herbert Marcuse (1898 a 1979), que a filosofia clássica alemã
(Kant, Fichte, Schelling, Hegel) construiu grandes sistemas “em resposta ao
desafio vindo da França à reorganização do Estado e da sociedade em bases
racionais, de modo que as instituições sociais e políticas se ajustassem à
liberdade e aos interesses do indivíduo”. Ainda, segundo Marcuse, entre esses
sistemas, o de Hegel constitui “a última grande expressão desse idealismo
cultural, a última grande tentativa para fazer do pensamento o refúgio da razão
e da liberdade”.
O Jovem Hegel
Filho de
Georg-Ludwig, chefe da chancelaria do ducado, e de Maria-Magdalena, Georg
Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stuttgart, a 27 de agosto de 1770. Depois de
ter cursado o ginásio da cidade ingressou em 1788, no seminário de teologia
protestante de Tübingen. Entre seus companheiros de estudos estavam Schelling
(1775 a 1854) e Hölderlin (1770 a 1843), aos quais se ligou por estreitas
relações de amizade.
Característica
marcante da geração que frequentava a Universidade Teológica de Tübingen era a
profunda preocupação com a miserável condição do Reich, em contraposição aos
ideais humanistas propalados pelo imperador Frederico Guilherme II (1744 a
1797). Durante os últimos anos de seu reinado Frederico Guilherme II começa a
introduzir as ideias do iluminismo nas escolas e universidades, mas os
estudantes, embora entoassem canções revolucionárias, traduzissem a Marselhesa
e clamassem contra seus tiranos, estavam perfeitamente cônscios de que seu
protesto, quando muito, levaria à reforma constitucional, que talvez viesse a
equilibrar a balança do poder na Alemanha. Entre os entusiastas dos ideais de
liberdade e dignidade do homem achavam-se Hegel e Schelling.
No ano de
1790, Hegel obteve o título de magister philosophiae. Três anos depois, embora
concluísse com êxito os exames finais, renunciou à profissão de pastor devido à
falta de vocação. Durante os três anos seguinte (1793 a 1796), permaneceu em
Berna, trabalhando como preceptor. Nessa cidade, ocupou-se intensamente com a
literatura da ilustração.
Depois de
Berna, Hegel, ainda como preceptor, mudou-se para Frankfurt-sobre-o-Meno, onde
residiu até 1800.
Em 1799, com
a morte de seu pai, Hegel recebeu uma pequena herança e transferiu-se para
Jena, em cuja universidade tornou-se livre-docente, em 1801, com a tese “Sobre
as Órbitas dos Planetas”, escrita em latim. Quatro anos depois, graças à
recomendação de Goethe (1749 a 1832) seria nomeado “professor extraordinário”
da Universidade de Jena. Durante todos esses anos, Hegel e Schelling pareciam
amigos inseparáveis. Mas esse relacionamento constante continha um germe de
ruptura que se cristalizaria, definitivamente, em 1806. O comum entusiasmo
revolucionário juvenil bifurcou-se, conforme as sucessivas inflexões do
processo revolucionário francês, filtrado pela “ideologia” alemã. Num extremo,
Schelling, liquidando seu passado jacobino e “racionalista”, caminhou no
sentido da reação romântica e nacionalista, que preparou a contrarrevolução de
1848; no outro extremo, Hölderlin, cujo rigorismo moral impediu de resignar-se
com a queda de Robespierre e compreender a necessidade do declínio do ideário
helenista de que se nutria a utopia sans-culotte; a meio caminho, Hegel, que
reconheceu na ruína política da Montanha, na reação termidoriana e nas guerras
napoleônicas a sequência das etapas necessárias à consolidação da nova ordem
social.
A Maturidade
O ano de
1807 assinala, na Alemanha, a libertação dos servos e o início de reformas do
Exército e da administração prussianas. No dia 13 de outubro de 1806, Napoleão
anexou Jena e o acontecimento causou profunda impressão em Hegel: “Vi o
imperador – esta alma do mundo – cavalgar pela cidade, em visita de
reconhecimento: suscita, verdadeiramente, um sentimento maravilhoso a visão de
tal indivíduo, que abstraído em seu pensamento, montado a cavalo, abraça o
mundo e o domina”. Essas palavras revelam o clima em que se encontrava o autor,
quando escreveu sua primeira obra de grande porte, a “Fenomenologia do
Espírito”, em cujo prólogo declarava seu rompimento com Schelling. Sua
publicação data de 1807. Nessa obra estão resumidas particularmente as
meditações hegelianas sobre o problema político que será o centro das
preocupações do filósofo. Como assinala o comentador francês Bernard Bourgeois,
Hegel se dedicará a esse tema enquanto “o infortúnio e a irracionalidade da
história moderna não tiverem sido dissipados, enquanto a razão não se tornar
soberana do tempo, vale dizer, enquanto não o tiver superado como um de seus
momentos”. Nesse sentido, “A Fenomenologia” representa a primeira elaboração de
um julgamento filosófico a respeito da história. Em 1808, Hegel tornou-se
professor no Liceu de Nuremberg e, posteriormente, passou a dirigir esse
estabelecimento. Em Nuremberg, publicou a “Ciência da Lógica”, a primeira parte
em 1812 e a segunda em 1816.
Em 1816, foi
nomeado professor titular de uma cadeira de filosófica na Universidade de
Heidelberg. Um ano depois, publicou a primeira edição da “Enciclopédia das
Ciências Filosóficas”. Com a indicação para a cadeira de filosofia da
Universidade de Berlim, em 1818, Hegel atingiu o ápice de sua carreira
universitária. Esse cargo coincidiu com o fim de seu desenvolvimento
filosófico, mas Hegel, em 1821, ainda publicaria os “Princípios da Filosofia do
Direito”, obra que despertaria violenta crítica de Marx. Durante o período de
Berlim, o filósofo proferiu cursos sobre história da filosofia, sobre estética,
sobre filosofia da religião e, finalmente, sobre filosofia da história. Esses
cursos foram recolhidos, ordenados e só vieram à luz postumamente. Em 1829,
Hegel foi eleito reitor da universidade. Dois anos depois, acometido de cólera,
faleceu a 11 de novembro de 1831.
O Cenário Filosófico
A resposta
dada por Hegel aos desafios sociais e políticos de seu tempo não pode ser
compreendida se não se levar em consideração o fato de que seus conceitos
básicos constituem, ao mesmo tempo, uma culminação de toda a tradição
filosófica ocidental. Analisando as relações de Hegel com essa tradição, Lukács
afirma que a filosofia racionalista moderna, partindo da dúvida metódica, do "cogito ergo sum" de Descartes, passando por Hobbes, Espinosa, Leibniz, perfaz
“um caminho de desenvolvimento retilíneo, cujo motivo decisivo, presente em
múltiplas variações, é a ideia de que o objeto do conhecimento pode ser
compreendido por nós e na medida em que for produzido por nós mesmos”. Ao lado
disso, o racionalismo estabelece também que esse conhecimento é necessário e
universal. Isso coloca de imediato um problema, que Herbert Marcuse traz à luz:
“Seria possível construir-se uma ordem racional universal, fundada na autonomia
do indivíduo?” Ao responder afirmativamente, o idealismo alemão visava a um
princípio unificador que preservasse os ideais de uma sociedade
individualística e não sucumbisse a seus antagonismos.
Em
contraposição ao racionalismo, os empiristas ingleses haviam demonstrado que
nem sequer um único conceito ou lei da razão poderia aspirar à universalidade,
e que a unidade da razão era apenas uma unidade conferida pelo hábito ou pelo
costume, unidade que aderia aos fatos sem jamais os governar. Segundo os
idealistas alemães, a unidade e a universalidade não podiam ser encontradas na
realidade empírica; não eram fatos. Se o homem não conseguisse criar a unidade
e a universalidade por meio de sua razão autônoma, contrariando embora os
fatos, teria de expor, não somente sua existência intelectual, como também sua
existência material, às pressões e processos determinados pelo tipo de vida
empírica dominante. O problema não era, pois, um problema meramente filosófico,
mas ligava-se ao destino histórico da humanidade.
|
Johann Gottlieb Fichte |
Na
interpretação de Marcuse, os idealistas alemães reconheceram as manifestações
históricas concretas do problema, o que se evidencia pelo fato de haverem, sem
exceção, ligado a razão teórica à razão prática.
“Há uma transição necessária,
entre a análise da consciência transcendental, em Kant, e sua exigência de
comunidade de um Império Mundial; entre o conceito do 'Eu Puro' de Fichte e sua
construção de uma sociedade totalmente unificada e regulada; e, finalmente,
entre a ideia de razão, de Hegel, e sua definição do Estado como união dos
interesses comuns e individuais, como a realização da razão”.
|
Immanuel Kant |
A razão fora
minada em seus fundamentos pelos empiristas, que acabaram por confinar o homem
àquilo que é dado, à ordem existente nas coisas e acontecimentos. Kant,
despertado de seu “sono dogmático” pelos empiristas, partiu do princípio de que
todo o conhecimento humano tem início na experiência, fonte da matéria, para os
conceitos da razão. Nesse sentido, como o conhecimento estaria sempre voltado
para as impressões, coordenadas pelas formas a priori da sensibilidade, Kant
concluiu que não é possível conhecer-se o fundamento daquelas impressões, isto
é, não se conhece como são, ou o que são, as “coisas em si”, que produziram
aquelas impressões. Hegel considera que esse elemento cético da filosofia de
Kant invalida sua tentativa de defender a razão contra os severos ataques
empiristas. Para ele, enquanto as “coisas em si” estiverem fora do alcance da
razão, esta continuará a ser o princípio subjetivo, privado de poder sobre a
estrutura objetiva da realidade, e o mundo se separa em duas partes: a
subjetividade e a objetividade, o pensamento e a existência. Se o homem não
conseguisse reunir as partes separadas de seu mundo, e trazer a natureza e a
sociedade para dentro do campa de sua razão, estaria para sempre condenado à
frustração. O papel da filosofia, nesse período de desintegração geral, deveria
ser o de evidenciar o princípio que restauraria a perdida unidade e totalidade.
“A necessidade da filosofia surge quando o poder da unificação desapareceu da
vida dos homens, e quando as contraposições perderam sua relação e sua
interação vivas”. Assim, a forma verdadeira da realidade, para Hegel, é a
razão, onde todas as contradições sujeito-objeto se integram, constituindo,
desse modo uma unidade e uma universalidade genuínas.
As raízes
dessas considerações hegelianas, principalmente as que se referem à unicidade e
à universalidade, desdobram-se: sócio-historicamente, encontram-se nas ideias
progressistas da Revolução Francesa: filosoficamente, constituem a interação
entre essas ideias e as correntes filosóficas da época. Com os eventos de 1789,
todos os homens haviam sido declarados livres e iguais; todavia, ao agir de
acordo com seu conhecimento e em função de seus interesses, os homens haviam
criado e experimentado uma ordem de dependência, de injustiça e de crises periódicas.
A competição geral entre sujeitos economicamente livres não havia estabelecido
uma comunidade racional que pudesse salvaguardar e satisfazer as necessidades e
os interesses de todos os homens. A vida dos homens fora sacrificada aos
mecanismos econômicos de um sistema social que relacionara os indivíduos uns
aos outros como compradores e vendedores isolados de mercadorias. Essa
ausência, de fato, de uma comunidade racional era responsável pela busca
filosófica da unidade e da universalidade na razão. Todos esses impasses
filosóficos, cujas origens eram, simultaneamente, históricas e filosóficas,
encontraram na filosofia hegeliana uma resposta.
A Verdade da Política
Segundo
Bourgeois, “a filosofia de Hegel coloca a filosofia como sendo a verdade da política”.
Nessa ordem de ideias a reflexão hegeliana pode ser caracterizada através de
dois momentos maiores: o primeiro, referente ao jovem Hegel, prolonga-se até
1807 (quando foi publicada a “Fenomenologia”) e é marcado pela nítida
predominância da política sobre a filosofia; o segundo, que se estende de 1807
até 1821, evidência a subordinação da política à especulação filosófica. Esse
itinerário é interpelado de maneiras divergentes pelos estudiosos de Hegel.
Lukács, por exemplo, considera que a reflexão hegeliana da maturidade não seria
mais que uma compensação idealista oriunda da decepção política, porque o mundo
sócio-político alemão não oferecia para que se concretizasse o projeto político
hegeliano da juventude. Bourgeois discorda desta interpretação. Para ele, “o
que conduz Hegel à vida filosófica como solução absoluta não é a
impossibilidade de uma solução política alemã, mas a insuficiência da solução
política do problema que o preocupa”. Assim, não teria sido o caráter negativo
da realidade política alemã que remeteu Hegel do interesse pela política para a
vida especulativa, mas ao contrário, a presença nele de um projeto que somente
a vida filosófica poderia satisfazer é que deveria levá-lo a compreender que,
mesmo em sua positividade cumprida, a esfera política era negativa quanto à
possibilidade de realizar esse projeto.
Não obstante
a diversidade dessas interpretações, elas deixam à mostra que a filosofia de
Hegel se vincula intimamente a política, de tal forma que ao se falar da
política de Hegel se está falando de sua filosofia e vice-versa. Isso não
significa porém, que o pensamento hegeliano constitua uma filosofia
essencialmente política, no sentido estrito desse termos. “O projeto
fundamental de Hegel”, assinala Bourgeois, “é um projeto do homem total” e
“deve realizar-se em todas as dimensões da vida humana, e portanto também na
dimensão estritamente política; não se trata, inclusive, da realização desse
projeto senão na medida em que essas diversas dimensões perdem sua
independência, umas em relação às outras... e são, por conseguinte, integradas
em uma totalidade orgânica da existência”.
Nesse
sentido, poder-se-ia definir o hegelianismo como “a intenção e a realização de
uma vida racional”. “A vida que interessará sempre a Hegel”, mostra Bourgeois,
“não é a vida da interioridade subjetiva, fechada sobre si mesma, do formalismo
psicológico, mas a vida enquanto ela é a contradição entre a vida substancial e
a subjetividade do vivente guiada e conduzida pela primeira, a vida do mundo”.
Assim, existiria em Hegel um antissubjetivismo profundo e uma recusa do
psicologismo prático, atitude esta que mutila o Eu, eliminando a preocupação
com o Universo. Por essa razão, Hegel, que na maturidade afirmava ser a leitura
dos jornais uma verdadeira oração da manhã, voltou-se, jovem ainda, para o
universal, cuja objetividade efetiva, em seu entender, era o mundo político.
Na
juventude, Hegel almejava à instauração de um mundo político com vitalidade
análoga à da polis grega; a cidade antiga era para ele o modelo para a
realização de seu ser, total e harmoniosamente. Permeando esse ideal político,
encontra-se o ideal de liberdade. Esta, porém, não deveria ser determinada de
maneira exterior ao homem, pois tal determinação seria, precisamente o
contrário da liberdade: a destruição da unidade, a própria deformação daquele
ideal. A liberdade, para Hegel, deve nascer do interior, antecipando-se como
sentido de liberdade.
Esse projeto
político, no entanto, exigia, no pensamento do jovem Hegel, que se
estabelecesse uma mediação entre o indivíduo e o ideal da polis. Essa mediação
deveria ser encontrada numa religião do povo, pois, pensava o filósofo, na
existência religiosa é que se encontraria o ser mais profundo do homem.
Necessário, portanto, que a religião se voltasse para a razão e a liberdade, ou
seja, para a vida enquanto universalidade e totalidade; somente dessa maneira
poderia operar a educação do povo. Essas considerações acabaram por conduzir
Hegel ao exame da religião tal como existia de fato, exame que, por sua vez,
levou-o à proclamar a necessidade de transformação da religião privada,
consagradora da vida separada dos indivíduos, em uma religião pública ou
popular. Em seu modo de ver, a eliminação da religião do despotismo e a
instauração da religião da liberdade possibilitariam o retorno da totalidade
grega, que encontrava na primeira um grande obstáculo.
O entusiasmo
que a totalidade da polis grega despertava no jovem Hegel refere-se,
principalmente, ao período de Türbingen (1788 a 1793). Em seguida, seu
entusiasmo enfrenta, em Berna (1793 a 1796), o racionalismo abstrato de um Eu.
“A Vida de Jesus”, escrita em Berna, em 1795, constitui, talvez, o fator mais
representativo desse segundo momento, em que Hegel refuta, mediante o Cristo, o
cristianismo aliado ao despotismo. Em Frankfurt (1797 a 1800), aquele Eu se
desdobra: de início, opõe-se ao mundo cristão da alienação, em seguida,
afirmando-se e afirmando-o, constitui uma síntese com o mesmo mundo cristão, que
pode ser traduzida por seu racionalismo concreto. A consequência maior deste
último, já visível em Frankfurt, seria desenvolvida nos escritos de Jena (1801
a 1807), nos quais Hegel descreve o aparecimento de uma totalidade
ético-política mediatizada pelos indivíduos, cuja liberdade subjetiva (cristã)
é reconhecida definitivamente. Para Hegel, esses indivíduos não presenciam a
realização de suas verdades na esfera da vida política, mas em uma esfera
superior, a da interioridade.
O Real e o Racional
Na base dos
primeiros escritos de Hegel (do chamado jovem Hegel) encontram-se já implícitas
suas ideias da filosofia enquanto teoria do conhecimento. Essa ideias vieram à
luz mais claramente na “Enciclopédia das Ciências Filosóficas”, publicada em
1817; nela Hegel redefine filosofia diante do problema das relações entre o
pensamento e a objetividade, analisando três posições que, para ele,
representam atitudes alternativas contemporâneas e possuem encadeamento
sistemático e histórico. “A primeira posição é a da experiência imediata,
ingênua, que, sem ainda ter consciência da oposição do pensamento em si e
consigo mesmo, contém a crença de que por meio da reflexão pode chegar a
conhecer a verdade; em outros termos, a posição da experiência imediata contém
a crença de que a consciência pode representar, verdadeiramente, o que são as
coisas. Segundo essa crença, o pensamento marcha diretamente aos objetos,
reproduz o conteúdo das sensações e intuições, fazendo-o conteúdo do
pensamento, e se mostra satisfeito tanto consigo mesmo quanto com a verdade”.
Essa posição, no entanto, segundo Hegel, revela inconsciência de suas oposições
internas, podendo, inclusive, estar detida ante determinações finitas do
próprio pensamento; em suma, estaria paralisada em antíteses não resolvidas.
Seu exemplo mais concreto encontra-se na metafísica clássica, um dos alvos
principais da crítica hegeliana, sobretudo Leibniz (1646 a 1716) e Christian
Wolff (1679 a 1754). Referindo-se à metafísica clássica, Hegel afirma que ela
“se converte em dogmatismo, pois, acompanhando a natureza das determinações
finitas, deve admitir que de duas afirmações opostas... uma tem que ser
verdadeira, e a outra falsa.
A segunda
posição do pensamento em relação à objetividade compreenderia, de um lado, o
empirismo, e, de outro, o idealismo crítico kantiano. O empirismo elogiado por
Hegel porque nele se encontra um princípio fundamental, ou seja, “o que é
verdade deve estar na realidade e conhecer-se por meio da percepção”: além
disso, o empirismo contém o princípio da liberdade, segundo o qual o homem pode
perceber por si mesmo os conhecimentos possuidores de real valor. Apesar desses
aspectos positivos, o empirismo, segundo Hegel, pecaria por negar o
suprassensível ou, pelo menos, a possibilidade de se conhecê-lo, reduzindo todo
o pensamento à abstração e à generalidade e identidade formais. “A ilusão
fundamental do empirismo”, diz Hegel, “consiste em que sempre faz uso das
categorias metafísicas de matéria, força, unidade, multiplicidade, universal,
etc., e com ditas categorias raciocina, e desse modo pressupõe e aplica as
formas do raciocínio, sem saber que admite um conhecimento metafísico; o que
equivale a empregar e ligar essas categorias sem discernimento crítico e de
modo inconsciente”.
A filosofia
crítica de Kant também é, inicialmente, elogiada por Hegel, que reconhece o
fato de ela submeter a uma investigação prévia o valor dos conceitos
intelectuais empregados na metafísica. Mas Hegel reprova o autor da “Crítica da
Razão Pura” por não ter penetrado no conteúdo e na relação que aquelas
determinações têm em si, considerando-as apenas segundo a oposição entre
subjetividade e objetividade. “Essa oposição”, diz Hegel, “como é tomada aqui,
refere-se à diferença dos elementos dentro do círculo da experiência. Chama-se
objetividade, nessa doutrina, ao elemento de universalidade e necessidade, ou
seja, o elemento das determinações que integram o pensamento, o chamado a
priori. Mas a filosofia crítica aumenta a oposição, de tal modo que reúne na
subjetividade o conjunto da experiência, isto é, os dois elementos mencionados,
e diante deles não permanece senão a coisa em si”.
Finalmente,
a terceira posição do pensamento diante de seu objeto diz respeito ao saber
imediato. Segundo Hegel, aquilo que se chama fé e saber imediato é o que, em
outros casos, é chamado de inspiração, revelação do coração, conteúdo com que a
natureza impressionou os homens; de uma maneira mais particular, o saber
imediato e a fé constituem o intelecto são (sadio) e o senso comum. Todas essas
formas fundamentam seu princípio na imediatidade pela qual se encontra um
conteúdo na consciência. O que o saber imediato “sabe”, segundo Hegel, é que o
infinito, o eterno, Deus, os quais se encontram na representação, existem
também e que à representação se une imediata e inseparavelmente a consciência
de seu ser. Assim, os adeptos do saber imediato esposam a tese de que: se o
objeto do conhecimento é Deus ou a verdade, o infinito ou o incondicionado; e,
se o pensamento só compreende um objeto, quando este é colocado sob a forma de
conceitos os quais convertem o referido objeto em algo condicionado e
mediatizado; então o conhecimento dos ditos objetos só se dá graças a um saber
imediato. Hegel, porém, discorda dessa conclusão. Para ele, essas considerações
não levam à imediatidade do saber. Para refutar os defensores dessa conclusão,
Hegel desenvolve sua argumentação em dois níveis: o primeiro refere-se à união
entre o saber imediato e a mediação que o precedeu, o segundo trata da conexão
entre a existência imediata e sua mediação. Como ilustração do primeiro
argumento, Hegel toma a matemática, na qual as soluções, embora possam se
apresentar de maneira imediata, na verdade seriam obtidas através de
considerações complicadas e grandemente mediatizadas: essas soluções, segundo o
filósofo, só surgem imediatamente àqueles que estão familiarizados com elas.
Exemplo para elucidar o segundo nível da argumentação é encontrado por Hegel no
fato de que, embora possam constituir uma existência imediata em relação aos filhos,
os pais também foram engendrados; assim, enquanto existentes, os pais “são
imediatos”, apesar de mediação anterior que está ligada à própria existência
imediata.
Da análise
crítica das três posições referentes à relação entre o pensamento e o seu objeto,
Hegel conclui que a ideia, como mero pensamento subjetivo ou como um mero ser
por si (um ser que não é ideia), não se constitui como verdade: “Só a ideia por
meio do ser e, ao contrário, só o ser por meio da ideia, é a verdade”. Isso
significa que Hegel construiu uma filosofia que pretende se apresentar como a
própria expressão da realidade, eliminando a distinção tradicional entre a
ideia e o real. Ambos seriam facetas de uma mesma coisa: o que é real é
racional e o que é racional é real.
A Dialética
A tarefa da
filosofia, explica Hegel na “Filosofia do Direito”, é compreender aquilo que é,
uma vez que aquilo que é, é a razão. E o filósofo acrescenta: “Aconteça o que
acontecer, cada indivíduo é filho de seu tempo; da mesma forma, a filosofia
resume no pensamento o seu próprio tempo”. Contudo, para Hegel, a filosofia
surge, apenas muito tarde na história dos povos e, assim, não pode
pronunciar-se a respeito do que o mundo deva ser: ela é como a coruja de
Minerva que, em seu voo crepuscular, toma consciência das coisas, mas não se
pronuncia sobre elas. Hegel critica as filosofias normativas dos reformadores
do mundo. Para ele, “o conteúdo da filosofia não é outro senão o que
originariamente, se produziu e se produz no domínio do espírito, o qual vive no
mundo exterior e interior da consciência; seu conteúdo é a realidade.
Assim, Hegel
apresentou-se como o pensador que procurou reconciliar a filosofia com a
realidade, estabelecendo acordo entre as duas. “Esse acordo”, diz Hegel, “pode
ser considerado como uma prova, ao menos extrínseca, da verdade de uma
filosofia; assim como se pode considerar que o fim supremo da filosofia seja
produzir, mediante a consciência desse acordo, a conciliação entre a razão
consciente de si mesma, a razão tal qual ela é imediatamente a realidade”.
Desse modo,
para que o homem possa aceitar e ter como verdadeiro certo conteúdo da
experiência, ele deve ser capaz de encontrá-lo em seu próprio interior, e esse
conteúdo deve concordar com a certeza que ele tem de si mesmo e estar unido a
ela. Disso deriva que, em Hegel, o conteúdo problemático da experiência é
transposto para o plano do pensamento conceitual; o conceito é a atividade do
sujeito e, como tal, a forma verdadeira da realidade. De acordo com a opinião
do senso comum, o conhecimento torna-se tanto mais irreal quanto mais se
abstrair da realidade. Para Hegel, o contrário disso é que é verdadeiro. A
formação do conceito pede que se faça abstração da realidade, mas isso não
torna o conceito mais pobre do que a realidade, e sim mais rico: a formação do
conceito vai dos fatos ao conteúdo essencial deles. A verdade não pode ser
colhida entre os fatos enquanto o sujeito ainda não estiver neles vivendo e, ao
contrário, contra eles se colocar. O mundo dos fatos não é racional, mas tem
que ser trazido à razão, isto é, a uma forma na qual a realidade corresponda
efetivamente à verdade.
À mola
motora do conceito – tanto como dissolvente, quanto como produtivo da
especificação do universal -, Hegel denomina Dialética. “A mais alta dialética
do conceito”, explica o próprio Hegel, “é produzir e conceber a determinação,
não como oposição e limite simplesmente, mas compreender e produzir por si
mesma o conteúdo e o resultado positivos, na medida em que, mediante esse
processo, unicamente ela é desenvolvimento e progresso imanente. Essa dialética
não é ... senão a alma própria do conteúdo, que faz brotar, organizadamente,
seus ramos e seus frutos”. Nesse sentido, a legitimidade de um sistema
filosófico só se instaura como tal desde que, nesse sistema, incluam-se o
negativo e o positivo do objeto, e na medida em que tal sistema reproduza o
processo pelo qual o objeto se torna falso para, em seguida, voltar à verdade.
Uma vez que a dialética é um processo desse tipo, ela pode ser considerada um
autêntico método filosófico.
O método
dialético de Hegel sintetiza-se em algumas proposições, das quais as mais
notórias são duas, famosas, sobretudo pelo escândalo que provocaram. A primeira
afirma: “O que é racional é real e o que é real é racional”. Essa fórmula não
expressa a possibilidade de que a realidade seja penetrada pela razão, mas a
necessária, total e substancial identidade entre a razão e a realidade. A
segunda proposição estabelece que “o ser e o nada são uma só e mesma coisa”. De
acordo com esse princípio, não há uma única coisa no mundo que não abrigue em
si a copertinência do ser e do nada. Cada coisa só é na medida em que, a todo
momento de seu ser, algo que ainda não é vem a ser, e algo, que agora é, passa
a não ser. Em outros termos essa segunda proposição da dialética põe à mostra o
caráter “processual” de toda a realidade.
A Razão na História
A primeira
aparição do método dialético em Hegel remonta ao período de Frankfurt. Nessa
cidade, Hegel teria apreendido a conexão dos momentos do tempo, que faz deste
último um processo criador irreversível, uma história. Embora Hegel admitia que
a história, dentro de certa perspectiva, possa se constituir como um amontoado
de fatos contingentes, mutáveis e sem significação, isso só se verifica do
ponto de vista de um intelecto finito, ou seja, do indivíduo, o qual encara a
história sob a óptica de seus ideais individuais, não sabendo como superar
essas limitações. “O grande conteúdo da história do mundo”, afirma Hegel, “é
racional, e deve ser racional”.
A história
do mundo pretende “que o espírito alcance o saber do que é verdadeiramente e
objetive esse saber, o realize, fazendo dele um mundo existente, e se manifeste
objetivamente a si mesmo: os princípios dos espíritos dos povos, em uma
necessária e gradual sucessão, não passam de momentos do único espírito
universal, o qual através deles, na história, se eleva e finaliza em uma
totalidade autocompreensiva”.
A soberania
do espírito do mundo, tal como Hegel a descreve, comenta Marcuse, revela os
traços sombrios de um mundo controlado pelas forças da história, em lugar de as
controlar. Enquanto aquelas forças ainda ocultarem sua verdadeira essência, em
sua esteira virão a miséria e a destruição. A história aparece então como o
“patíbulo onde foram sacrificadas a felicidade dos povos, a sabedoria dos
Estados, e a virtude dos indivíduos”. Ao mesmo tempo, porém, Hegel exalta o
sacrifício da felicidade individual e geral que daí resulta. Ele chamou esse
sacrifício de “ardil da razão”. Os indivíduos levam uma vida infeliz, trabalham
arduamente e morrem; entretanto, embora jamais realizem seus desígnios, seu
sofrimento e seu fracasso são os meios mesmos de sustentação da verdade e da
liberdade. Um homem jamais colhe os frutos de seu trabalho; eles sempre ficam
para as gerações futuras. As paixões e os interesses dos indivíduos não se
apagam, porém – são dispositivos que amarram os homens ao serviço de um poder
superior e de um interesse superior: “Pode-se achar a isso “ardil da razão”,
que ela ponha as paixões a seu serviço, enquanto aquele que vive em tais
impulsos paga o preço e sobre os danos”. É o triunfo da ideia, cuja
significação mais profunda reside na identificação entre a razão e a história.
A confiança nessa identificação induz Hegel a tentar estabelecer os traços
principais do Estado racional, ou seja, ideal. Em um manuscrito de 1802,
referente portanto ao período de Jena, Hegel desenvolve pela primeira vez a
racionalidade daquilo que, mais tarde, denominará espírito objetivo, do qual o
Estado constituiria a realização e o verdadeiro fundamento. No manuscrito
intitulado “Sistema da Vida Ética” (ou “da Eticidade”), ao contrário do que
ocorria em “A Constituição da Alemanha” (1799 a 1802), onde era afirmada a
coexistência abstrata entre a força (pública) e a liberdade (privada), Hegel
reparte as duas últimas em Estados sociais, Classes que estão intimamente
ligadas em suas diferenças, pois é o mesmo Todo que se exprime nelas, em suas
funções organicamente unidas. A liberdade privada econômica realiza-se na
segunda classe, à burguesia, que vela pela subsistência material da primeira
classe, a nobreza, a qual encarna força do Estado pelo trabalho universal da
guerra, onde comanda a terceira classe, o campesinato. Enquanto organismo,
porém, o Estado não possui apenas uma estrutura, tem também uma vida: tomando
assim em seu movimento, ele é o governo que se articula em um centro fixo do
movimento (governo absoluto), e nas direções desse movimento (governo
universal). A história do mundo não seria mais do que “a sucessão de normas
estatais, que constituem momentos de um devir absoluto”. Os três momentos dessa
história, o mundo oriental, o mundo greco-romano e o mundo germânico, seriam os
três momentos da realização da liberdade do espírito. Por outro lado, segundo
Hegel, a vontade do indivíduo está em íntima relação com a vontade da
comunidade e essa relação assumiu historicamente três formas: a democracia
grega, a monarquia moderna e a moralidade.
A Consciência Feliz
Estreitamente
vinculada à teoria da história e do Estado elaborada por Hegel, encontra-se sua
teoria da alienação, cujo primeiro esboço data do período de Berna (1793 a
1796). Nessa época, surgiu em seu pensamento a noção de “positividade”, a qual
continha um germe, no entender de Lukács, “o conceito filosófico central da
“Fenomenologia do Espírito”, a alienação. Em Berna, Hegel recusou as
ramificações sociais e culturais de todo poder político que fosse incompatível
com a autonomia do sujeito moral; essas ramificações foram designadas por ele
pela expressão “positividade”, tomada no sentido depreciativo como algo
estranho, hostil, petrificado. Posteriormente, a positividade seria vista por
Hegel como etapa histórica inelutável (contra o que não se pode vencer ou lutar)
do processo de socialização, isto é, como alienação da consciência, tema
central da “Fenomenologia do Espírito”. Nessa obra, a consciência, como se
fosse protagonista de um romance do século XIX, faz o duro aprendizado do
mundo: vai se enriquecendo com as ilusões que perde e a repetição desses
desenganos sucessivos cristaliza-se numa espécie de sabedoria final a respeito
da sociedade e da história. Nesse processo contínuo, a consciência se aliena,
perdendo-se no mundo da cultura que ela própria vai moldando, sendo modificada
e formada por ele. A positividade, que no pensamento hegeliano anterior oprimia
a consciência como um destino enigmático, na “Fenomenologia” é experimentada
como suporte social de sua própria realização.
No processo
de alienação da consciência, as instituições que o homem funda e a cultura que
ele cria, diz Marcuse, interpretando Hegel, “acabam por desenvolver leis
próprias, e a liberdade do homem tem que se submeter a elas. O homem é dominado
pela riqueza em expansão de seu meio econômico, social e político, e vem a
esquecer que seu livre desenvolvimento é a meta final de todas essas obras: em
vez disso, rende-se a seu império. Os homens sempre procuram perpetuar uma
cultura estabelecida; assim fazendo, perpetuam sua própria frustração”.
A Herança Hegeliana
Sem humor
negro, Hegel via nesse rosário de frustrações o avesso necessário de
reconciliação com a realidade social. Na mesma medida em que a razão
“astuciosa”, ao urdir a trama da história, põe a realização dos interesses particulares
a serviço da reprodução da sociedade, ela entrava o livre curso das aspirações
e ideais do indivíduo isolado. Esse realismo desabusado é a contrapartida
irrecusável do otimismo que inspira a noção de “ardil da razão”. De resto, eles
são indissociáveis, pois o processo de alienação do sujeito, sendo também o de
sua formação, encerra a promessa de sua própria supressão: ponto de equilíbrio
entrevisto por Hegel no funcionamento da sociedade sob a égide de um Estado
Racional.
Logo após a
morte de Hegel, sua obra foi saudada entusiasticamente por alguns e
violentamente criticada por outros. O primeiro sinal de divisão entre seus
próprios adeptos encontra no livro de David Friedrich Strauss (1808 a 1874), “A
Vida de Jesus”, publicada em 1835, quatro anos após a morte do filósofo. A
partir daí, dividiram-se os hegelianos em direita ortodoxa e esquerda radical.
A primeira cristalizou-se, adotando o conteúdo doutrinário do hegelianismo,
sobretudo a tese política de que o Estado é a mais alta realização do espírito
absoluto. Os velhos hegelianos (como também são conhecidos os representantes da
direita) desenvolveram-se em sentidos diversos, mas sempre partindo dos
conceitos básicos formulados por Hegel. Deles se costuma aproximar o grupo dos
moderados que se dedicaram, principalmente, a trabalhos de história da
filosofia. Tanto uns quanto outros, no entanto, são considerados em geral como
ortodoxos e conservadores. O pensador Karl Ludwig Michelet (1801 a 1893), por
exemplo, considerava Hegel um filósofo irrefutável e procurou investigar as
possibilidades de aplicação do sistema hegeliano às ciências empíricas.
Michelet afirmava que a filosofia de seu mestre poderia concordar com o
cristianismo e, nesse sentido, equiparou a tríade dialética hegeliana (tese, antítese
e síntese) à Trindade.
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Ludwig Feuerbach |
A esquerda
hegeliana adotou o método dialético e aplicou-o à análise dos problemas
políticos, invertendo o conteúdo das doutrinas de Hegel e opondo-se ao regime
dominante da Alemanha da época. Entre os jovens hegelianos destacam-se, além de
David Friedrich Strauss, Bruno Bauer (1809 a 1872), Max Stirner (1806 a 1856),
Arnold Ruge (1802 a 1880) e Ludwig Feuerbach (1804 a 1872), Feuerbach, o mais
conhecido representante da esquerda hegeliana, considerou necessário
desmascarar (em sua própria expressão) a teologia especulativa de Hegel, pois,
em seu entender, o fantasma da teologia percorre todo o pensamento hegeliano.
Dever-se-ia denunciar, sobretudo, a suposta objetivação do espírito por meio da
religião. Diante da tese de que o mundo é um produto do espírito (tese
hegeliana a seu ver), Feuerbach sustenta que o espírito não é senão a palavra
que designa o conjunto dos fenômenos históricos, o universo, a natureza. E esta
é que seria a realidade primária. Por outro lado, Feuerbach, como outros
hegelianos de esquerda, caminhou no sentido de substituir a teologia hegeliana
por uma antropologia, tese que desenvolveu, principalmente, em “A Essência do
Cristianismo”. Foi a partir de Feuerbach que Engels (1820 a 1895) e Karl Marx
(1818 a 1883) desenvolveram a dialética materialista e o materialismo
histórico.
Por outro
lado, a diversificação da escola hegeliana e o progressivo ceticismo com
relação às pretensões absolutistas dos sistema idealistas alemães provocaram
forte reação anti-hegeliana. Alguns, como Kierkegaard (1813 a 1855) e Nietzsche
(1844 a 1900), salientaram o caráter existencial do homem frente à
unilateralidade da razão e da abstração hegelianas; outros atacaram o caráter
especulativo da filosofia de Hegel e defenderam uma visão materialista e
naturalista, ou uma filosofia fundada na análise do caráter científico.
Apesar de
todos esses ataques, o hegelianismo difundiu-se por todo o ocidente em diversas
tendências. Na França, a escola de Victor Cousin (1792 a 1867) baseou-se em
Hegel para chegar ao ecletismo espiritualista. Na Inglaterra, o hegelianismo
estendeu-se amplamente como movimento oposto ao empirismo e à filosofia do
senso comum, ligando-se à linha platônica do pensamento inglês. Mas foi
sobretudo na Itália que o hegelianismo de orientação “direitista” ou moderada
deitou raízes mais profundas, inúmeros foram os representantes desse
neo-hegelianismo, cabendo, cabendo destaque especial a Giovanni Gentile (1875 a
1944) e a Benedetto Croce (1866 a 1952). Nos Estados Unidos surgiram vários
representantes do pensamento de Hegel, sobretudo em torno da Sociedade
Filosófica de Saint Louis. O nome mais importante da filosofia estado-unidense
que se costuma aproximar de Hegel é o de Josiah Royce (1855 a 1916). Na Rússia,
desde a morte de Hegel, surgiram vários adeptos de seu pensamento; também aí a
corrente hegeliana dividiu-se em direita e esquerda, em função de posições
políticas.
Além desses
grupos e nomes principais, muitos outros, de uma forma ou de outra, vinculam-se
ao hegelianismo. A diferenciação do legado hegeliano levou Merleau-Ponty(1908 a
1961) a afirmar que existem vários Hegel, de tal modo que dar uma interpretação
de seu pensamento “é tomar partido sobre todos os problemas filosóficos,
políticos e religiosos de nosso século” (no caso, o XX).
The End
Cronologia
1770
|
Em Stutgart, a 27 de agosto, nasce Georg Wilhelm
Friedrich Hegel
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1776
|
Proclamação da Independência dos Estados Unidos
da América do Norte;
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1789
|
Com a Tomada da Bastilha, eclode a Revolução
Francesa;
|
1790
|
Hegel obtém o grau de Magister Philosophiae no
Seminário Teológico de Tübingen;
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1795
|
Publica “A Vida de Jesus”;
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1797
|
Schelling publica as “Ideias para uma Filosofia
da Natureza”;
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1804
|
Napoleão torna-se o primeiro imperador dos
franceses;
|
1805
|
Recomendado por Goethe, Hegel é nomeado professor
extraordinário em Jena;
|
1806/1807
|
Publicação da “Fenomenologia do Espírito” de
Hegel;
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1811
|
Casa-se com Marie Von Tucher;
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1816
|
É nomeado para a cátedra de filosofia da
Universidade de Heidelberg;
|
1817
|
Publica a “Enciclopédia das Ciências
Filosóficas”;
|
1818
|
Torna-se catedrático de filosofia na Universidade
de Berlim. Nasce Karl Marx;
|
1819
|
Surge “O Mundo como Vontade e Representação”, de
Schopenhauer;
|
1820
|
Nasce Friedrich Engels;
|
1821
|
São publicados os “Princípios da Filosofia do
Direito”, de Hegel;
|
1826
|
Mendelssohn compõe “Sonho de uma Noite de Verão”;
|
1830
|
Queda de Carlos X; Luís Filipe é o novo rei da
França;
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1831
|
Acometido de cólera, morre Hegel.
|
HEGEL, George Wilhelm Friedrich. Coleção “Os Pensadores”. 3ª
Edição. Consultoria Paulo Eduardo Arantes. Traduções de Henrique Cláudio de
Lima Vaz, Orlando Vitorino e Antônio Pinto de Carvalho. Abril S/A Cultural. São
Paulo, 1985 – pp. VIII – XX.
Textos contido nesta obra:
1.
A
Fenomenologia do Espírito;
2.
Estética
– A Ideia e o Ideal;
3.
Estética
– O Belo Artístico ou o Ideal;
4.
Introdução
à História da Filosofia.