Harold
Bloom
Entre
os livros, como um modo de vida
Prolífico, erudito e - raridade
absoluta em seu ofício - popular, o americano Harold Bloom, um dos maiores
críticos modernos, fala com exclusividade ao ‘Estado’: 'Sou apenas um professor
de escola'
18 de janeiro de 2013 | 23h 01
NOVA YORK - Os visitantes da casa na rua bucólica
de New Haven, em Connecticut, recebem instruções precisas para não tocar a
campainha. Devem abrir a porta destrancada e ir direto à segunda sala. Lá, o
anfitrião vai começar por satisfazer a própria curiosidade sobre detalhes
mundanos da vida da repórter.
Harold Bloom é caso único na história da crítica
literária do último meio século. Um autor prolífico, erudito, popular, que
seduz e enfurece. Aos 82 anos, maltratado por doenças que lhe restringem a
mobilidade, seu vigor criativo é formidável. Não para de escrever, dar aulas,
analisar a prosa e a poesia dos alunos e, apesar da dor na perna e da má
circulação que o obriga a levantar da cadeira em intervalos curtos, demonstra
um prazer evidente em conversar.
"Eu não me defino como crítico
literário", diz Bloom, que nunca será acusado de modéstia. "Eu digo
que sou um professor de escola" (ele dá aula na Yale University). A
afirmação o leva a uma das muitas reminiscências que haveria de compartilhar
naquela tarde, alternando nostalgia e alguma intriga, com ar maroto, sempre
envolvendo alguém como "Philip" (Roth) e "Cormac" (McCarthy),
citados assim, pelo primeiro nome, ou por apelidos, se é que restou à
interlocutora alguma dúvida de que ele esteve no centro da história literária
recente americana. "Havia um homem muito mau", diz, "chamado
William Styron". Bloom recorda que estava jantando na casa do grande poeta
Robert Penn Warren (para ele "Red", o apelido do escritor ruivo);
todos "já tinham bebido um pouco demais" quando Bloom comentou com
Warren - "com toda razão", deixa claro - que ele devia continuar
escrevendo poesia, já que seus romances recentes não tinham a mesma qualidade.
"A sua opinião não importa", cortou Styron, autor de A Escolha de Sofia e
das memórias da depressão, Perto das Trevas. "Você é apenas um professor de
escola." Bloom diz que o comentário foi o mais memorável que ouviu de um
"mau escritor". "Como me acusar de ter a melhor e mais nobre
profissão do mundo?" O professor conclui a anedota lembrando que Styron já
faleceu e oferecendo "um aforismo bloomiano pelo qual quero ser lembrado:
Se nós não falarmos mal dos mortos, quem vai falar?"
Fui bater à porta de Harold Bloom para conversar
sobre A
Anatomia da Influência - Literatura Como Um Modo de Vida, que sai no
Brasil pela Objetiva, no segundo semestre. Ele considera o livro uma síntese de
sua trajetória crítica. O título se refere à obra que talvez será considerada a
mais inovadora de sua carreira, A Angústia da Influência - Uma Teoria da Poesia,
lançada em 1973, marco da crítica literária, em que Bloom trata da luta do
poeta para criar sob a influência de seus precursores.
Entre a angústia e a anatomia, Bloom diz que se
tornou mais suave. Mesmo com mais de 50 edições em dezenas de línguas, o autor
considera A
Angústia da Influência terrivelmente difícil e não tem certeza se
entende a obra. Mas há outras mudanças. Em A Anatomia da Influência, Bloom se diz
inspirado pelo poeta francês Paul Valéry que escreveu "sobre a influência
da mente sobre si mesma". Seu novo livro, ele diz, é sobre a influência do
autor sobre si mesmo. A outra diferença: "Antes, eu defendia a literatura
da contracultura. Agora a defendo da politização e da ruptura da tecnologia,
que impôs" - e ele aponta para meu tablet - "a linguagem visual."
A suavidade adquirida ao longo do tempo se expressa
no que Bloom manifesta ser o "amor literário", definido por ele como
um estado de intensa ambivalência, "da culpa da herança, e da tristeza de
ter chegado tarde demais".
A originalidade da obra do crítico não exclui a
repetição e em Anatomia
da Influência ele revisita seu elenco de suspeitos, especialmente
William Shakespeare. Depois de lançar Shakespeare, A Invenção do Humano, um
de seus maiores best-sellers, Bloom conta que se sentiu irritado por perguntas
sobre a tal invenção. "É claro que não estava dizendo que foi como Thomas
Edison inventando a lâmpada", diz. "O caráter sempre existiu, mas não
sei se é o caso com a personalidade. Shakespeare é único porque ele mudou a
maneira como nos vemos. Em Shakespeare, caráter é personalidade, é
destino." E lembra outro episódio.
Estava falando em público quando lhe perguntaram
sobre alguma boa adaptação de Shakespeare para o cinema. Respondeu que o
diretor que mais entendeu a obra do inglês foi o japonês Akira Kurosawa.
"Ele não falava inglês, mas o poder de Shakespeare vai muito além do da
linguagem." A invenção, ele observa, é a essência da poesia. "Sem a
poesia, nada teria vindo a este mundo. Shakespeare nos mostrou o que estava à
nossa volta e não conseguíamos enxergar."
Bloom não se ilude sobre o seu lugar na cultura
contemporânea americana em que jovens, ele escreve, "despencam no
precipício do oceano cinza da internet". Não há mais um Walt Whitman, o
autor como consciência de um país, ele lamenta, porque não existe mais um
público nacional. "Nosso maior romancista em atividade, Thomas Pynchon, é
um autor difícil. Nosso maior poeta, meu amigo John Ashbery, é um poeta
difícil. Nosso possível maior dramaturgo, Tony Kushner, chegou perto de falar a
todo país, com Anjos
na América, mas não escreveu nada com a mesma força, nos últimos 20
anos."
Harold Bloom demonstra uma franqueza bem-vinda
sobre os escritores mais jovens. Em vez de alardear o fim do romance, declara
que não tem competência para ler romancistas 50 anos mais moços do que ele.
Logo em seguida, afirma que seu melhor aluno, Lucas Zwirner, ainda inédito, é
um evidente romancista em formação. "Eu li gente como Jonathan Franzen,
David Foster Wallace e variados Safran Foers, mas a sensibilidade mudou tanto
que não devem confiar na minha reação."
Bloom aponta para o teto e diz que o sótão de sua
casa abriga um manuscrito não publicado, Freud, Transferência e Autoridade, que
encosta em 900 páginas e vai ser um problema póstumo de seus executores
literários. "A minha ambivalência sobre Freud se tornou excessiva",
confessa. Hoje, ele vê o criador da psicanálise não como cientista, mas como o
grande ensaísta moral, o Montaigne do século 20. "Uma definição que ele
detestaria."
Por falar em livros longos, Bloom diz que está
quase acabando de escrever outro, "especialmente importante para
mim". O título, que cita um poema de Ralph Waldo Emerson, será: Os Espíritos Sabem Como
Se Faz, Tradição Oculta na Literatura Americana, um exame da obra
de dez autores.
Enquanto trocamos histórias pessoais, o professor
dá outro sinal do caminho percorrido na carreira literária de seis décadas, ao
anunciar que espera um telefonema do New York Times. "Chegou a
hora", diz, "embora eu não tenha a menor intenção de morrer, de
atualizar o meu obituário, que eles escreveram há vários anos. E o pior, não
vou poder nem ler quando ficar pronto." Ele disca o número da repórter e
diz: "Estava me sentindo tão vivo, que tarefa melancólica". Mas logo
brinca: "... considerando a alternativa..." A repórter o consola,
dizendo que vai telefonar de volta em cinco anos, já que ele não para de
produzir. "Em 5, 10 ou 15 anos", protesta o professor e conta que
três ciganas, em três países, leram a palma da sua mão. Previram que ele vai
viver 89 anos, 3 meses e 11 dias e admite, sorrindo, esperar um certo
nervosismo na manhã do décimo primeiro dia. "No fim das contas", ele
diz, contemplativo, "o que eu faço é salvar as aparências, no sentido mais
decente da palavra. É tentar preservar a continuidade da literatura e do
pensamento do Ocidente."