Eram os
jagunços terroristas?
interessante artigo do cineasta Silvio Back que dirigiu a Guerra dos Pelados
interessante artigo do cineasta Silvio Back que dirigiu a Guerra dos Pelados
É preciso desossar a Guerra do Contestado a partir de um mix entre o que
ela foi e o que poderia ter sido
08 de dezembro de 2012
SYLVIO BACK | CINEASTA, POETA E
DIRETOR DE 38 FILMES, ENTRE ELES O CONTESTADO - RESTOS MORTAIS
História, memória, pretérito, pra que te quero? No
entanto, há que se exigir “luz, mais luz!”, como balbuciou Goethe (1749-1832)
no leito de morte. Sim, os insólitos e decisivos episódios de um dos mais
desfrutáveis contornos anímicos do País - inaudita mescla de civilização e
barbárie nos cafundós de Santa Catarina e do Paraná - permanecem soterrados a
sete palmos pela tortuosamente amnésica História do Brasil. Quando não,
enovelados por uma absoluta indiferença e assaz suspeita omissão.
A Guerra do Contestado (1912-1916), o maior levante
bélico no campo brasileiro do século 20, verdadeira guerra civil nos sertões
sulistas, em plena efeméride de seu centenário, vem se transformando em um
zumbi do nosso passado recente. Suas perturbadoras vísceras morais, míticas,
políticas e ideológicas, que continuam a nos assombrar, estão a exigir
exorcização que a catapulte à pertinência e à atualidade.
A 20 de outubro de 1916, no Palácio do Catete, no
Rio de Janeiro, sob a égide do presidente da República, Venceslau Brás, o
presidente de Santa Catarina, Felipe Schmidt, e Afonso Camargo, presidente do
Paraná, “... inspirados no amor à paz...”, firmaram pacto que, aparentemente,
selou o fim das sangrentas hostilidades nas e entre as então províncias
(Estados) vizinhas.
Era uma paz enganosa, porque nos dois anos
subsequentes, por meio das chamadas “varreduras”, sob o comando do então
capitão “Rosinha” (José Vieira da Rosa, 1869-1957), da Polícia Militar de Santa
Catarina, perpetrou-se um autêntico genocídio, com a perseguição e matança de
centenas de rebeldes e caboclos indefesos. Nessas varreduras, oficialmente
conhecidas no meio militar como “raides proveitosos” (sic), não havia diálogo
entre o caçador e o caçado, apenas o matraquear do tiroteio, o pavor de velhos
inermes e o choro de mulheres e crianças. Massacres do tipo do “My Lai”
vietnamita (1968), avant la lettre.
Nestes seus cem anos, não se espantem, a Guerra do
Contestado debate-se, misteriosa e sintomaticamente, imersa no mais
inacreditável esquecimento factual e investigativo, que, aliás, sempre lhe
maculou a imagem e o reconhecimento de várias gerações de historiadores. O que,
afinal, não é nenhuma novidade.
Essa omissão e descaso ativos nada mais são do que
um genérico regional (leia-se, provinciano) com que nossa historiografia, quase
toda ela de extrato acadêmico, com as exceções de praxe, imprime seu enfoque
unívoco, e ideologicamente (à direita e à esquerda) chamuscado, sobre um
passado que lhe é estranho, ainda que entranhado. Daí o Contestado ter-se
transformado num autêntico buraco negro da História do Brasil!
Quase sempre, a pegada desses escribas de plantão é
o achatamento e a desqualificação da Guerra do Contestado. Quando não,
utilizam-na como caricatura ideológica que faça coro com um seu ideário de
toque político raso e radical, tentando, a todo custo, ancorá-la em qualquer
agito similar que surja no campo. Ou, então, ignorar sua estatura geopolítica e
prevalência na fecundação do moderno capitalismo no Brasil, para obliterar seu
complexo substrato ideológico-institucional em plena neo-república.
E, ainda, para subestimar ou superestimar o
amálgama místico-religioso (o “espírito de irmandade”, a submissão voluntária e
a autoridade castrense que vigiam dentro dos redutos), ou para edulcorar os
flagrantes de delinquência e ilícitos de nítido caráter terrorista que marcaram
a ferro e fogo milhares de viventes e incontáveis interesses locais, nacionais
e internacionais.
Ali, no Contestado, ao sul e a oeste das então
fluídicas fronteiras entre Santa Catarina e Paraná, deu-se um embate fratricida
de quatro anos; ali, em torno de 7 mil homens, um terço do efetivo do Exército
brasileiro, promoveu um morticínio exemplar e único no século 20, sob o comando
do general Setembrino de Carvalho (1861-1947), co-autor da tragédia de
Vaza-Barris havia menos de duas décadas. E, onde, entre mortos e feridos, como
em Canudos, se revezavam na brutalidade, espelhando-se mutuamente na sangueira
e na insensatez, cada um empunhando a “sua” bandeira da verdade secular e de
transcendência messiânica.
Incontornável: no Contestado matou-se à bala, à
baioneta e na degola, e tombaram de fome, doençaria e perdição, entre soldados,
caboclos e fanáticos, mais de 20 mil pretos, cafuzos, bugres e índios
aculturados, imigrantes europeus (poloneses, alemães, ucranianos, rutenos),
retirantes e trânsfugas de todos os grotões miseráveis do País. Hoje, centenas
de cruzeiros sem nome e data, às vezes emoldurados com fitas coloridas, à
sombra dos verdejantes pinheirais remanescentes e das sombrias florestas de
Pinus elliottii do planalto catarinense, ainda clamam por justiça e reparação
histórica.
No Contestado, a refrega teve inequívocos lances
separatistas. Talvez resida aí uma das razões pelas quais se teme tanto mexer e
rever o conflito na sua integridade holística, denunciando executantes e
mandantes, desencavando valas crematórias, lápides e necrológios. A caudilhesca
Revolução Farroupilha (1835-1845), que deu na breve “República Piratini”, era
explicitamente autonomista, uma macabra antevisão sesquicentenária do dístico
“o Sul é o meu país” - ao contrário do Contestado, onde essa vocação nunca foi
coletiva, nem havia unanimidade política quanto a uma possível secessão, e
muito menos representou o insumo para a longevidade da desgraceira.
Mesmo que chefetes, ex-lideranças de Gumercindo
Saraiva, um dos comandantes da malograda, também separatista, Revolução
Federalista (1893-1895), chegassem a propor, em 1914, a criação de um
Estado autocrático batizado de “Monarquia Sul Brasileira”, que incorporaria
tanto o Paraná como o Rio Grande do Sul, estendendo-se ao Rio de Janeiro. Na
“Carta Magna”, que deixa escapar laivos republicanos, além de uma inusitada
liberdade de voto, culto e de opinião, sonhava-se até com a criação de um
Ministério da Marinha e a anexação da Banda Oriental do Uruguai, “antiga
Província Cisplatina”...
Não raro o Contestado é associado à Guerra de
Canudos (1896-1897), sendo inclusive chamado, equivocadamente, de “Canudos do
Sul”, e faz mesmo algum sentido semântico, pois já nas primeiras notícias de
ajuntamentos messiânicos na região, no início do século 20, a expressão veio a lume
na mídia. No entanto, o Contestado diferencia-se de Canudos menos pela sua
origem igualmente milenarista, como é reconhecido esse surto religioso de
deserdados que agem em uníssono almejando uma suposta redenção moral de mil
anos.
Tudo atiçado pelo verbo, ora incandescente ora
melífluo, de um “messias”, com subtexto cristão revanchista e de restauro de um
idílico tempo de benesses e bem-estar geral e perene. Esse “salvador” de homens
e almas tanto pode ser um Antônio Conselheiro como os dois “padroeiros” do
Contestado, os “sãos” João Maria, histórico e pacifista, e o bruxo incendiário
José Maria, de passado dito criminoso, idolatrado por suas mandingas e curas e
por arrecadar dinheiro dos caboclos para promover o assentamento fraudulento
deles em terras devolutas.
Para higienizar de vez esse caldeirão, o que fazer
com os milhares de enjeitados recalcitrantes, como controlar esse lumpesinato
enfurecido que se engraçara com o messias em voga, indiferente à interminável
pendenga jurídico-institucional entre Paraná e Santa Catarina? O jeito foi
forçá-los a se virar como operários das multinacionais Estrada de Ferro São
Paulo-Rio Grande, a Brazil Railway Company, e Southern Lumber &
Colonization (então a maior serraria da América do Sul). Ou, na pior das
hipóteses, enxotá-los de suas glebas feito cães sarnentos, por não possuírem
título de propriedade.
Isso sem falar nos 8 mil homens recrutados no Nordeste
e no Rio de Janeiro como mão de obra quase escrava para tocar a ferrovia. Com
seu término, em 1910, desempregados, eles viraram os potenciais novos “soldados
do exército encantado de São Sebastião”: miséria por miséria, que fosse
acreditando no improvável que poderia matar sua fome, em lugar da exploração de
sua força de trabalho por ninharia e da serventia física e moral.
Foi quando o presidente Hermes da Fonseca,
apavorado com que ali subsistissem cinzas de um monarquismo redivivo, mandou à
região, armado até os dentes, inclusive com inéditos aviões, o general
Setembrino de Carvalho, que acabara de liquidar um levante do Padre Cícero no
Ceará.
Setembrino atuou com as PMs de Santa Catarina e do
Paraná, coadjuvadas pelas milícias dos “coronéis”, os chamados “vaqueanos”, de
infausta memória, que faziam o serviço sujo na cola do Exército, do qual
recebiam soldo. Um a um eram fuzilados ou degolados os intimoratos recos da
tropa celeste de “São Sebastião” (o mito do sebastianismo, restaurado nos
sertões catarinenses, virara o mote da hora), em cujas fileiras estariam os
combatentes mortos no Irani, tendo à frente “são” José Maria, lancetado naquele
entrevero inaugural do Contestado (22 de outubro de 1912).
Conhecidos como “redutos” (eram mais de 40), e para
os sertanejos, “cidades santas”, essas favelas, então inexpugnáveis “fortes de
resistência” do jaguncedo, constituíam um misto de dormitório, rupestre praça
de prédica, reza e batismos, justiçamento sumário e de ditames bélicos. Numa
viagem dos tempos, dada a mesma matriz cristã, os sítios remontam ao espaço de
fanatismo religioso, cega obediência e castigos aos índios, formatado pelos
jesuítas nas missões da chamada “República Guarani” (1610-1776).
Improvisados e provisórios, estendiam-se a partir
do Rio Iguaçu (divisa do Paraná), ao longo do Vale do Rio do Peixe
(centro-oeste catarinense), até quase às margens do Rio Uruguai, que separa
Santa Catarina do Rio Grande do Sul.
Como viviam infiltrados por aventureiros e
fugitivos da lei, muitas vezes o epíteto “jagunço” fazia sentido. Em nome de um
suposto ideal igualitário (“quem tem, mói, quem não tem, mói também”) pregado
por “são” João Maria, nas suas ações guerrilheiras, derrotados nas tentativas
de convencer quem os seguisse, punham-se a ameaçar a população civil, além de
lhes surrupiar o gado, mantimentos, roupas e armas.
Na invasão de Curitibanos, quando incendiaram
prédios públicos, assombrando autoridades e habitantes, houve quem visse em
seus olhos aquele esgazeado próprio do fanático. Algo que corresponde ao que o
historiador Maurício Vinhas de Queiroz (1928-1995), cujo livro Messianismo e
Conflito Social (1966) é referência histórica, revela sobre os caboclos: o
Contestado teria sido uma revolta alienada, seus protagonistas agiam como se
fossem autistas, enfrentando as razias do general Setembrino de Carvalho com
espadas de pau, crentes que ressuscitariam no Exército Encantado de São
Sebastião...
Nessa, acabavam embaralhando agressão a símbolos
opressores (obras da ferrovia, da serraria, sedes de fazendas, depósitos de
armas, linhas telegráficas do Exército) com quem os apoiava clandestinamente
(pequenos fazendeiros, comerciantes, políticos locais). Um terrorismo que foi
corroendo e manchando a legitimidade reivindicatória do movimento por confundir
algozes e vitimas.
Dissolvendo nossa useira e vezeira inconsciência,
deboche e preguiça acadêmicas quanto à exegese da história oculta do Brasil,
onde invariavelmente o campeão e o perdedor mentem, é preciso desossar o
Contestado a partir de um mix entre o que foi e o que poderia ter sido. Ou
seja, munido de um rigoroso approach desideologizado, onde os influxos morais
permaneçam inoxidáveis.
Assista o filme:
Eu não jogo. I do not play. Io non gioco. 我不玩。Je ne joue pas. Я не играю. Yo no juego. 遊びません。Oynamam. أنا لا ألعب. איך שפּיל נישט. Небатька.
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