Vai ser meio difícil explicar, mas em 1993, por prestar serviços voluntários num grupo de direitos humanos chamado Solidariedade Popular, tive a oportunidade de estar no sertão da Bahia. Metido a besta e a poeta, neste mesmo ano escrevi um livro de poesias, chamei-o de Palavras do Sertão, por que foi de lá que essas palavras vieram. Em 2001, ajeitei todo o material, inclui alguns textos explicativos do livro, do sertão e sobre Canudos, a obra estava realmente pronta, me senti um Homero das Caatingas, mas só em 2011, dez anos depois, reuni condições de editá-lo. Aqui o texto explicativo sobre a luta do Antônio Conselheiro:
UTOPIA
DO SERTÃO
Cláudio Maffei
O ano de 1993 foi festejado com muita reverência no
norte da Bahia, principalmente em Canudos, cuja fundação completou um século. Foi
ali que floresceu a utopia criada pelo Bom Jesus – como o povo do sertão
chamava Antônio Vicente Mendes Maciel -, conhecido pela História como Antônio
Conselheiro.
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Maffei em 1993 durante Romaria dos 100 anos da Construção de Canudos |
Hoje,
a Canudos (ex-Belo Monte) de Conselheiro repousa irrequieta sob o açude de
Cocorobó, construído pelo governo militar em 1968, numa tentativa de apagar a
memória da guerra e da ferrenha resistência do povo do sertão.
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Localização da cidade de Canudos no sertão Baiano |
Escreve
Edmundo Moniz, autor que bem retratou a verdadeira História de Canudos: “A
primeira expedição contra Canudos foi comandada por um tenente; a segunda, por
um major; a terceira, por dois coronéis que perderam a vida; a quarta, por
quatro generais, numerosos coronéis, majores, capitães e tenentes. A primeira
expedição compunha-se de 100 soldados; a segunda, de 600; a terceira, de 1.200;
a quarta de cerca de 10 mil, num exército de 20 mil”. Continua Moniz: “A
primeira, a segunda e a terceira foram abatidas em combates de horas; a quarta
durou quatro meses e, por várias vezes, esteve prestes a ser destroçada.
Salvou-se graças ao grande reforço que recebeu quando se achava em perigo, o
que representou, pode-se dizer, uma quinta expedição. Entre a preparação das
expedições e as batalhas travadas, a campanha de Canudos durou de 4 de novembro
de 1896 a
6 de outubro de 1897. Não se tratava de uma simples insurreição de sertanejos,
e sim, uma guerra civil.”
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Atacantes de Canudos descansam já perto do arraial |
Como
puderam os sertanejos vencer ou enfrentar metade do Exército brasileiro? O que
Antônio Conselheiro tinha que fascinava os sertanejos? Por que o interesse em
destruir Canudos?
Conselheiro
nasceu em Quixeramobim, no Ceará. Seu pai era comerciante, sua mãe faleceu
quando ele tinha seis anos e três irmãs menores. O pai se casou novamente e o
pequeno Antônio sofreu muito com a madrasta autoritária e agressiva. De gênio
quieto, aprendeu a ler e começou a ter aulas com o professor Manuel Antônio
Ferreira Nobre, aprendendo, com afinco, matemática, geografia, francês e latim.
Sua educação foi muito importante para seu futuro fascínio. Quando estava com
27 anos, Antônio Maciel perdeu o pai, assumindo a tutela das irmãs e dos
negócios, cuja dívida deixada o levou à falência. Casou as três irmãs e mais
tarde fez o mesmo, mas foi infeliz no casamento. Depois de muitas mudanças,
empregando-se como advogado, professor, juiz, entre outros, em cidades do
Ceará, foi acometido de tremendo desgosto quando sua mulher, Brasilina, fugiu
com um sargento.
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Cenas do filme Canudos. Conselheiro é protagonizado por José Wilker |
A
partir daí, Conselheiro tornou-se peregrino e passou a vestir-se como ficou
conhecido: bata azul, cabelos e barbas longas, com um bordão na mão sempre a
caminhar e pregar, construindo e reformando igrejas, capelas e cemitérios.
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Capelinha construída pelo Conselheiro na subida do Monte Santo (BA) |
Em
suas prédicas mostrava ser um grande intelectual, contrariando a historiografia
conservadora que o chamava de demente e ignorante. Conhecia Santo Agostinho e a
Utopia de Thomas More, Homero e Campanela, entre outras obras e autores, das
quais provavelmente não tinham conhecimento os militares que o atacavam.
Após
várias perseguições por parte das autoridades, tanto civis e militares quanto
religiosas, já peregrinando pelo norte da Bahia e com um grande séquito de
seguidores, Conselheiro decidiu construir a Utopia. Sabia, de antemão que não o
deixariam em paz pelas suas pregações populares, anti-latifúndio e
anti-injustiças cometidas pela República que acabava de ser proclamada.
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Antiga Capela de Belo Monte (Canudos) inundada pelo Açude de Cocorobó |
O
ascetismo e a promessa de construção do Reino de Deus na terra fascinava o
homem do sertão que vivia deserdado pela sociedade. Os que seguiam Conselheiro
eram sertanejos pobres, jagunços estropiados, caboclos, negros ex-escravos,
enfim, os sem-terra que sofriam humilhações e eram explorados pelos coronéis
proprietários do latifúndio – até hoje o grande problema do Nordeste e do
Brasil.
Em Belo Monte,
todos eram bem acolhidos, todos eram irmãos, os que chegavam despojavam-se da
ganância e, quando tinham alguma coisa doavam para ser repartida pela
sociedade. Uma cidade assim no Nordeste só poderia ser vista como um paraíso
para os filhos do sertão. Logo, o pequeno arraial passou a ser a segunda cidade
da Bahia, com 30 mil habitantes, só atrás da capital, Salvador. Sua economia
baseava-se principalmente na criação de cabras, cuja pele era exportada até
para a Alemanha.
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Retrato da seca e da morte na caatinga |
Exemplo
único de justiça no sertão, Canudos incomodava a ordem político-religiosa
estabelecida pela República. Assim como Cuba hoje, Canudos era, para as elites,
um mau exemplo que poderia ser seguido e, por isso, tinha que ser destruído.
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Por onde o exercito passava não ficava pedra sobre pedra |
As
autoridades religiosas invejavam Conselheiro (ele continuou respeitando a
religião católica, seus dogmas e sua hierarquia, sem nunca se autoproclamar ou
servir como sacerdote), que arrebanhava mais ovelhas que os pastores da Igreja.
As
autoridades políticas, insufladas pelos latifundiários e envolvidas com os
interesses dos militares no jogo da sucessão presidencial, viram em Canudos uma
chance de realçar as atitudes heroicas do Exército, demonstrando superioridade
sobre os Casacas – termo que o general Floriano Peixoto usava para designar os
civis. Derrotar um bando de sertanejos “fanáticos” e mal armados seria uma
oportunidade para destacar-se daí um líder em condições de assumir o poder.
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Sertanejo, neto de moradores de Belo Monte |
O
engano foi gigantesco. Canudos resistiu, desbancando vários chefes militares
arrogantes, mostrando-se Conselheiro um estrategista militar que não tinha
comparação com os melhores alunos da academia. A pretensa superioridade das
forças da legalidade foi batida por uma estratégia superior: a guerra de
guerrilhas na caatinga.
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Crianças sertanejas e o meio inóspito do sertão |
O
total conhecimento do terreno e seu conseqüente aproveitamento, a utilização da
superioridade tática em detrimento da superioridade estratégica possuída pelo
Exército e seus canhões levaram Conselheiro a uma concepção de guerra que
deixou estarrecidos os coronéis, majores e generais. A “fraqueza do governo”,
como gritavam os sertanejos aos soldados, demonstrou a importância da
utilização da guerra psicológica. Canudos não se rendeu, foi esmagada pela
superioridade técnica e quantitativa do Exército que a combateu.
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Secura da terra e ao fundo o açude de Cocorobó que cobriu Belo Monte de Conselheiro |
A
exemplar resistência do sertanejo, a viabilidade de uma sociedade justa, sem
classes, em pleno sertão nordestino e a concretização da utopia conselheirista
são a prova mais fiel da mentira que as elites colocam nas costas dos
brasileiros: a de que somos um povo
pacífico e acomodado. A utopia de Canudos é a negação desta mentira e a
afirmação da resistência popular do povo brasileiro, que sempre lutou e
continuará a lutar por sua libertação.
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Conselheiro depois de morto, foi desenterrado e sua cabeça foi levada para Salvador |
Artigo publicado na revista Cadernos do Terceiro Mundo n.º 169 de Janeiro de 1994 pp. 21 e 22.