sábado, 27 de maio de 2017

CANUDOS UMA HISTÓRIA, UMA VIAGEM E UM LIVRO


Vai ser meio difícil explicar, mas em 1993, por prestar serviços voluntários num grupo de direitos humanos chamado Solidariedade Popular, tive a oportunidade de estar no sertão da Bahia. Metido a besta e a poeta, neste mesmo ano escrevi um livro de poesias, chamei-o de Palavras do Sertão, por que foi de lá que essas palavras vieram. Em 2001, ajeitei todo o material, inclui alguns textos explicativos do livro, do sertão e sobre Canudos, a obra estava realmente pronta, me senti um Homero das Caatingas, mas só em 2011, dez anos depois, reuni condições de editá-lo. Aqui o texto explicativo sobre a luta do Antônio Conselheiro:



UTOPIA DO SERTÃO
 Cláudio Maffei

O ano de 1993 foi festejado com muita reverência no norte da Bahia, principalmente em Canudos, cuja fundação completou um século. Foi ali que floresceu a utopia criada pelo Bom Jesus – como o povo do sertão chamava Antônio Vicente Mendes Maciel -, conhecido pela História como Antônio Conselheiro.

Maffei em 1993 durante Romaria dos 100 anos da Construção de Canudos


Hoje, a Canudos (ex-Belo Monte) de Conselheiro repousa irrequieta sob o açude de Cocorobó, construído pelo governo militar em 1968, numa tentativa de apagar a memória da guerra e da ferrenha resistência do povo do sertão.

Localização da cidade de Canudos no sertão Baiano

Escreve Edmundo Moniz, autor que bem retratou a verdadeira História de Canudos: “A primeira expedição contra Canudos foi comandada por um tenente; a segunda, por um major; a terceira, por dois coronéis que perderam a vida; a quarta, por quatro generais, numerosos coronéis, majores, capitães e tenentes. A primeira expedição compunha-se de 100 soldados; a segunda, de 600; a terceira, de 1.200; a quarta de cerca de 10 mil, num exército de 20 mil”. Continua Moniz: “A primeira, a segunda e a terceira foram abatidas em combates de horas; a quarta durou quatro meses e, por várias vezes, esteve prestes a ser destroçada. Salvou-se graças ao grande reforço que recebeu quando se achava em perigo, o que representou, pode-se dizer, uma quinta expedição. Entre a preparação das expedições e as batalhas travadas, a campanha de Canudos durou de 4 de novembro de 1896 a 6 de outubro de 1897. Não se tratava de uma simples insurreição de sertanejos, e sim, uma guerra civil.”

Atacantes de Canudos descansam já perto do arraial

Como puderam os sertanejos vencer ou enfrentar metade do Exército brasileiro? O que Antônio Conselheiro tinha que fascinava os sertanejos? Por que o interesse em destruir Canudos?


Conselheiro nasceu em Quixeramobim, no Ceará. Seu pai era comerciante, sua mãe faleceu quando ele tinha seis anos e três irmãs menores. O pai se casou novamente e o pequeno Antônio sofreu muito com a madrasta autoritária e agressiva. De gênio quieto, aprendeu a ler e começou a ter aulas com o professor Manuel Antônio Ferreira Nobre, aprendendo, com afinco, matemática, geografia, francês e latim. Sua educação foi muito importante para seu futuro fascínio. Quando estava com 27 anos, Antônio Maciel perdeu o pai, assumindo a tutela das irmãs e dos negócios, cuja dívida deixada o levou à falência. Casou as três irmãs e mais tarde fez o mesmo, mas foi infeliz no casamento. Depois de muitas mudanças, empregando-se como advogado, professor, juiz, entre outros, em cidades do Ceará, foi acometido de tremendo desgosto quando sua mulher, Brasilina, fugiu com um sargento.
Cenas do filme Canudos. Conselheiro é protagonizado por José Wilker

A partir daí, Conselheiro tornou-se peregrino e passou a vestir-se como ficou conhecido: bata azul, cabelos e barbas longas, com um bordão na mão sempre a caminhar e pregar, construindo e reformando igrejas, capelas e cemitérios.
Capelinha construída pelo Conselheiro na subida do Monte Santo (BA)

Em suas prédicas mostrava ser um grande intelectual, contrariando a historiografia conservadora que o chamava de demente e ignorante. Conhecia Santo Agostinho e a Utopia de Thomas More, Homero e Campanela, entre outras obras e autores, das quais provavelmente não tinham conhecimento os militares que o atacavam.


Após várias perseguições por parte das autoridades, tanto civis e militares quanto religiosas, já peregrinando pelo norte da Bahia e com um grande séquito de seguidores, Conselheiro decidiu construir a Utopia. Sabia, de antemão que não o deixariam em paz pelas suas pregações populares, anti-latifúndio e anti-injustiças cometidas pela República que acabava de ser proclamada.

Antiga Capela de Belo Monte (Canudos) inundada pelo Açude de Cocorobó

O ascetismo e a promessa de construção do Reino de Deus na terra fascinava o homem do sertão que vivia deserdado pela sociedade. Os que seguiam Conselheiro eram sertanejos pobres, jagunços estropiados, caboclos, negros ex-escravos, enfim, os sem-terra que sofriam humilhações e eram explorados pelos coronéis proprietários do latifúndio – até hoje o grande problema do Nordeste e do Brasil.


Em Belo Monte, todos eram bem acolhidos, todos eram irmãos, os que chegavam despojavam-se da ganância e, quando tinham alguma coisa doavam para ser repartida pela sociedade. Uma cidade assim no Nordeste só poderia ser vista como um paraíso para os filhos do sertão. Logo, o pequeno arraial passou a ser a segunda cidade da Bahia, com 30 mil habitantes, só atrás da capital, Salvador. Sua economia baseava-se principalmente na criação de cabras, cuja pele era exportada até para a Alemanha.

Retrato da seca e da morte na caatinga

Exemplo único de justiça no sertão, Canudos incomodava a ordem político-religiosa estabelecida pela República. Assim como Cuba hoje, Canudos era, para as elites, um mau exemplo que poderia ser seguido e, por isso, tinha que ser destruído.

Por onde o exercito passava não ficava pedra sobre pedra

As autoridades religiosas invejavam Conselheiro (ele continuou respeitando a religião católica, seus dogmas e sua hierarquia, sem nunca se autoproclamar ou servir como sacerdote), que arrebanhava mais ovelhas que os pastores da Igreja.
As autoridades políticas, insufladas pelos latifundiários e envolvidas com os interesses dos militares no jogo da sucessão presidencial, viram em Canudos uma chance de realçar as atitudes heroicas do Exército, demonstrando superioridade sobre os Casacas – termo que o general Floriano Peixoto usava para designar os civis. Derrotar um bando de sertanejos “fanáticos” e mal armados seria uma oportunidade para destacar-se daí um líder em condições de assumir o poder.

Sertanejo, neto de moradores de Belo Monte

O engano foi gigantesco. Canudos resistiu, desbancando vários chefes militares arrogantes, mostrando-se Conselheiro um estrategista militar que não tinha comparação com os melhores alunos da academia. A pretensa superioridade das forças da legalidade foi batida por uma estratégia superior: a guerra de guerrilhas na caatinga.

Crianças sertanejas e o meio inóspito do sertão

O total conhecimento do terreno e seu conseqüente aproveitamento, a utilização da superioridade tática em detrimento da superioridade estratégica possuída pelo Exército e seus canhões levaram Conselheiro a uma concepção de guerra que deixou estarrecidos os coronéis, majores e generais. A “fraqueza do governo”, como gritavam os sertanejos aos soldados, demonstrou a importância da utilização da guerra psicológica. Canudos não se rendeu, foi esmagada pela superioridade técnica e quantitativa do Exército que a combateu.

Secura da terra e ao fundo o açude de Cocorobó que cobriu Belo Monte de Conselheiro

A exemplar resistência do sertanejo, a viabilidade de uma sociedade justa, sem classes, em pleno sertão nordestino e a concretização da utopia conselheirista são a prova mais fiel da mentira que as elites colocam nas costas dos brasileiros:  a de que somos um povo pacífico e acomodado. A utopia de Canudos é a negação desta mentira e a afirmação da resistência popular do povo brasileiro, que sempre lutou e continuará a lutar por sua libertação.

Conselheiro depois de morto, foi desenterrado e sua cabeça foi levada para Salvador


Artigo publicado na revista Cadernos do Terceiro Mundo n.º 169 de Janeiro de 1994 pp. 21 e 22.
  

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Olá! O Blog do Maffei agradece seu interesse.

Veja também:

O NOME DA ROSA

O Nome da Rosa de Umberto Eco: Análise da Obra O Nome da Rosa  é um livro de 1980 escrito pelo italiano Umberto Eco. Em 1986 foi lançado o...

Não deixem de visitar, Blog do Maffei recomenda: