quarta-feira, 31 de maio de 2017

DE ONDE VEM O SENTIDO MODERNO DA PALAVRA CIDADANIA?

Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais

Contrariamente do que muitos pensam o sentido moderno da palavra cidadania, não vem do grego, mas sim da França Revolucionária. O sentido moderno de cidadão nasce nos primeiros dias de outubro de 1774, na França, em discurso de Beaumarchais (1732 –1799). A acepção atual de cidadania é, portanto, posterior ao século XVIII.


DEFINIÇÃO:

    Em sentido etimológico, cidadania define a condição daqueles que residem na cidade. Ao mesmo tempo, o termo se refere à condição de um indivíduo como membro de um Estado, como portado de direitos e obrigações. A associação entre esses dois significados deve-se a uma transformação histórica de grande alcance, fundamental ao mundo moderno: a formação dos Estados centralizados, impondo jurisdição uniforme sobre um território não limitado aos antigos burgos ou cidades medievais.

    O termo cidadão tornou-se sinônimo de homem livre, portador de direitos e obrigações a título individual, assegurados em lei. A associação não é espúria, pois evidentemente é nas cidades que originalmente se formam as forças sociais mais diretamente interessadas na individualização e na codificação uniforme desses direitos: a burguesia e a moderna economia capitalista.

    Em seus primórdios, a constituição do Estado moderno e da economia comercial capitalista representam uma grande força libertária, em primeiro lugar, pela dilatação dos horizontes, pela emancipação dos indivíduos ante o localismo, ante as convenções medievais que impediam ou dificultavam a escolha de uma ocupação diferente daquela transmitida como herança familiar; libertária, enfim, ante as tradições e crenças que se diluíam com a maior mobilidade geográfica e social. Mas libertária, sobretudo, pela imposição de uma jurisdição uniforme, quebrando o arbítrio dos senhores feudais e reconhecendo aos habitantes do território, independentemente de sua ocupação ou condição sócio-econômica, os mesmos direitos e obrigações.

    A cidadania tem um aspecto sociológico e um aspecto político. Nesse último sentido ela expressa aquela igualdade perante a lei – a égalité da Revolução Francesa – conquistada pelas grandes revoluções (inglesa, francesa e norte-americana), e posteriormente reconhecida em todo o mundo.



UM DIREITO DE BURGUÊS.

    É indiscutível que a cidadania é, na origem, um direito burguês, no sentido de que as novas relações sociais e políticas a que ela se refere interessavam de maneira mais real e direta à nova classe comercial e industrial das cidades. Ao mesmo tempo, sua reivindicação – por exemplo, na filosofia de Locke – como soma de direitos fundamentais do indivíduo, qualquer que fosse sua posição social ou ocupação (direitos anteriores à própria sociedade na ficção do ‘contrato social’), tornava-os logicamente independentes da estrutura social, isto é, neutros quanto aos seus beneficiários presentes e potenciais. É essa qualidade da teoria dos direitos naturais – o fato de se colocar como um padrão ou critério externo à sociedade existente, e a partir do qual ela deve ser julgada – que lhe confere caráter especificamente revolucionário.

Vejamos o que diz Maurício Segall:

‘Ao perguntar a alguém o que achava que é cidadania, ouvi a resposta: “É a garantia do pleno exercício dos direitos e dos deveres definidos na Constituição para os cidadãos brasileiros”.
‘Trata-se de um conceito evidentemente insuficiente – de um lado, por ser formal e, de outro, por refletir, em países como o nosso, as conjunturas vigentes, plenas de casuísmos e de interesses subalternos, por ocasião da feitura das Constituições. Mas, formal, ou não, o conceito tem algo a ver claramente com a incorporação efetiva, e não abstrata, do conjunto da população à prática de um direito.

‘Por via das dúvidas fui ver no Aurélio e encontrei as definições seguintes – Cidadão:

1)      Indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado ou no desempenho de seus deveres para com este.
2)      Habitante da cidade;

Cidadania:
1)      Qualidade ou estado de cidadão;
2)      O termo define a condição daqueles que residem na cidade.

‘Há uma clara conotação histórica idealista entre o conceito de cidade (a partir da polis grega) e o de homem livre. É curioso notar que, em diversas línguas latinas ou anglo-germânicas, e inclusive na grega, os termos “cidadania” e “cidadão” estão etimologicamente ligados ao termo “cidade”. Mais significativo é que tenham permanecido ao longo do tempo, apesar de seu conteúdo ter se ampliado para expressar algo muito mais complexo e de significado amplo. Há explicações históricas para isso, como por exemplo a passagem do significado limitado – da cidadania nos burgos – ao significado amplo de cidadania nacional, na formação dos Estados modernos.
   ‘Mas nem por isso as ambiguidades desapareceram. Vejamos:

Português
cidade
cidadão
cidadania
grego
Polis
(mesma raiz)

latim
Civitas
Civis
Civitatanum
inglês
City
Citizen
Citizenship
espanhol
Ciudad
Ciudadano
Ciudadania
italiano
Cittá
Cittadino
Citoyenneté
francês
Cité
Citoyen
Citoyenneté
alemão
Burg
Bürguer
Bürguerecht

‘Tudo indica que essa ambiguidade nasce no início da civilização ocidental. O equivalente grego de um cidadão era aquele que tinha direito a frequentar a Ágora da pólis. Mais tarde, em 1774, aparentemente o tema foi usado pela primeira vez, no sentido moderno, num discurso de Beaumarchais. Assim é que, somente no final do século XVIII, o termo “cidadania” surgiu na língua portuguesa. Tratava-se então de um direito burguês, embora os filósofos, que lidavam com o conceito de direito natural, procurassem ampliar seu conteúdo.
‘Posteriormente, com a revolução americana, a postulação dos direitos fundamentais avançou na abrangência do conceito.
‘Dessa forma, apesar de toda a evolução filosófica e política, o conceito de cidadania, queira-se ou não, continua carregado implicitamente de um conteúdo de privilégio, elitismo e discriminação. No começo era pelo social (classe) e hoje, cada vez mais, pelo urbano, em detrimento do rural, ou pelo central em detrimento do periférico. Por isso também é incompleta a conceituação de cidadão como indivíduo que, em relação ao Estado, vive sob o império da lei.
‘O pensamento liberal está pleno dessas imperfeições e, objetivamente, contrafacções. O que coloca concretamente para nós o problema da cidadania nos “Brasis” c, d, e até o z dos índios. Nos “Brasis” do campo, do agreste, da miséria rural, das pequenas cidades, das periferias, da floresta.’

Referências Bibliográficas: 


SEGALL, Maurício. CONTROVÉRSIAS E DISSONÂNCIAS. 1.ª Edição, Editora Boitempo, São Paulo-SP, 2001.

Enciclopédia Mirador - 1993



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