PEDAGOGIA LIBERTÁRIA: PRINCÍPIOS
POLÍTICO-FILOSÓFICOS
POLÍTICO-FILOSÓFICOS
Sílvio
Gallo
Toda Filosofia da Educação está amparada, necessariamente,
numa Antropologia Filosófica; isto equivale a dizer que, anterior a todo e
qualquer intento de educação, subjaz uma concepção de homem. Kant já se
perguntava: "que é o homem, para que seja educado?", dando a real
dimensão que uma antropologia assume para qualquer processo pedagógico. Se a
educação é um processo formador de pessoas, de homens, precisamos saber, de
antemão, o que é e quem é esse homem que pretendemos formar. Acontece que ao
pensarmos nosso conceito de homem, deparamo-nos com a questão política: tal
conceito está estreitamente relacionado com a sociedade na qual este homem está
ou estará inserido. Abrem-se então duas possibilidades fundamentais para nosso
processo educacional: ou formar homens
comprometidos com a manutenção desta sociedade ou formar homens comprometidos
com sua transformação.
Na história da filosofia e da educação, podemos
identificar duas concepções fundamentais acerca do conceito de homem: a concepção essencialista, segundo a qual
aquilo que é o homem é definido por uma essência anterior e exterior a ele e a concepção existencialista, segundo a
qual o homem define-se apenas a posteriori, através de seus atos, construindo
paulatinamente a essência do que é ser homem de dentro para fora. A título de exemplo,
a primeira perspectiva fundamenta a teoria educacional que Platão apresenta em A
República, base da educação jesuíta e de todo o sistema tradicional de ensino;
já a perspectiva existencialista é inaugurada com Rousseau em seu Emílio, ou da
Educação, constituindo o fundamento das teorias e práticas pedagógicas que em
Educação chamamos de escola nova.
A Educação Anarquista ou Pedagogia Libertária inscreve-se
no contexto das teorias modernas da educação. Neste sentido, possui uma
fundamentação filosófica e política que lhe é própria, embora esta
fundamentação esteja relacionada com outras teorias e práticas pedagógicas que
lhe são contemporâneas. É necessário, portanto, saber distingui-la de outras
teorias educacionais.
A EDUCAÇÃO
INTEGRAL
O fundamento da educação libertária é o conceito de
educação integral que, de acordo com Paul Robin, é o resultado de um longo
processo de evolução, em que diversos educadores, ao longo do tempo, foram
levantando ideias e tecendo considerações que, em pleno século dezenove, já
amadurecidas, puderam ser sistematizadas numa teoria orgânica:
"A ideia de educação integral só
há pouco tempo alcançou sua completa maturidade. Rabelais, provavelmente, é o
primeiro autor a dizer algo sobre ela; com efeito, lemos em suas obras que
Ponocrates ensinava a seu aluno as ciências naturais, a matemática, fazia-o praticar
todos os exercícios corporais e aproveitava os dias de tempo chuvoso ‘para
fazê-lo visitar as oficinas e se pôr a trabalhar’. Porém, essa concepção requer
um desenvolvimento e que seja aplicada a todos os homens. A este respeito resta
ainda muito a dizer, inclusive mais tarde o Emílio, em que o autor consagra
todas as faculdades de um homem para educar a um só, num meio preparado
artificialmente para este objetivo."
O conceito de homem que sustenta tal teoria fica muito
claro para Robin:
"A ideia moderna - de educação
integral - nasceu do sentimento profundo de igualdade e do direito que cada
homem tem, quaisquer que sejam as circunstâncias de seu nascimento, de
desenvolver, da forma mais completa possível, todas as faculdades físicas e
intelectuais. Estas últimas palavras definem a Educação Integral."
A concepção de homem que subjaz à teoria da educação
integral é decorrente do humanismo iluminista do século dezenove, percebendo-o
como um "ser total"; o homem é concebido como resultado de uma
multiplicidade de facetas que se articulam harmoniosamente e, por isso, a
educação deve estar preocupada com todas estas facetas: a intelectual, a
física, a moral etc. Ferrer i Guàrdia aponta a necessidade de a educação estar
atenta a todas elas:
"Ademais, não se educa
integralmente ao homem disciplinando sua inteligência, fazendo caso omisso do
coração e relegando a vontade. O homem, na unidade de seu funcionalismo
cerebral, é um complexo; tem várias facetas fundamentais, é uma energia que vê,
afeto que rechaça ou adere ao concebido e vontade que faz ato o percebido e amado."
Politicamente, a educação integral define-se já de saída:
baseia-se na igualdade entre os indivíduos e no direito de todos a desenvolver
suas potencialidades. Se vivemos uma sociedade desigual e na qual nem todos
podem desenvolver-se plenamente, a educação integral deve assumir,
necessariamente, uma postura de transformação e não de manutenção desta
sociedade. O mesmo Ferrer i Guàrdia reconhece que:
"Não tememos dizê-lo: queremos
homens capazes de destruir, de renovar constantemente os meios e a si mesmos;
homens cuja independência intelectual seja a força suprema, que jamais
sujeitem-se a nada; dispostos sempre a aceitar o melhor, desejosos do triunfo
das ideias novas e que aspirem a viver múltiplas vidas em uma única. A
sociedade teme tais homens: não se pode, pois, esperar que queira jamais uma
educação capaz de produzi-los."
Como o socialismo libertário vê no homem alienado um dos
pilares da sociedade de exploração, a educação deve ser um instrumento para a
superação dessa alienação. A educação integral é o caminho para esta superação,
e um passo na transformação desta sociedade, pois pretende educar ao homem sem
separar o trabalho manual do trabalho intelectual, pretende desenvolver as
faculdades intelectuais, mas também desenvolver as faculdades físicas,
harmonizando-as. E, além disso, pretende ainda trabalhar uma educação moral,
uma formação para a vida social, uma educação para a vivência da liberdade
individual em meio à liberdade de todos, da liberdade social.
Já em meados do século dezenove Proudhon começa a discutir
as bases de uma educação integral. Para o filósofo francês, a educação tem a
função de produzir o homem como uma representação das relações sociais e é,
portanto, a função mais importante da sociedade, pois é uma das condições
básicas de sua manutenção e da perpetuação de sua existência:
"Toda educação tem por objetivo
produzir o homem e o cidadão - segundo uma imagem, em miniatura, da sociedade -
pelo desenvolvimento metódico das faculdades físicas, intelectuais e morais das
crianças. Noutros termos: a educação é criadora de costumes no sujeito
humano(...) A educação é a função mais importante da sociedade(...) Aos homens
só é necessário o preceito, à criança é necessária a aprendizagem do próprio
dever, o exercício da consciência como do corpo e do pensamento."
Para Proudhon e para a filosofia política anarquista em
geral a sociedade não é resultado de um contrato que reduz a liberdade dos
indivíduos com seu consentimento, mas sim de um processo constante de produção
coletiva de cultura e humanização. Assim, a educação, que é a transmissão da
carga cultural da humanidade, é um dos seus pontos centrais de existência: sem
a educação não há transmissão da cultura, não havendo avanço, mas retrocesso e,
com isso, uma desestruturação da sociedade rumo à barbárie.
Com essa visão de educação e de sociedade, Proudhon
empreende uma análise crítica da educação fornecida pelo capitalismo. É óbvio
que esta sociedade hierarquizada preconizará uma educação hierarquizada. A
classe dominante precisará receber, por intermédio da educação, os meios e os
conhecimentos necessários para dominar todo o processo de produção, circulação
e consumo, podendo manter-se em posição de proprietária e gerente dos meios de
produção. As classes operárias, por outro lado, devem receber apenas a
instrução necessária para a realização das tarefas a que estão destinadas. Em
termos de cultura, trata-se de manter as classes dominadas, em sua ignorância,
numa condição de "sub-humanidade", para que não tenham consciência de
seu direito à liberdade e à igualdade. Para dizer de outra maneira, a educação
capitalista sustenta e reforça o sistema de divisão social do trabalho, fonte
da alienação.
A proposta de uma nova educação deve, portanto, ser capaz
de superar o fenômeno da alienação. Para Proudhon, o caminho está na defesa
intransigente do trabalho artesanal, processo no qual o artesão domina a
totalidade do processo do trabalho. Segundo ele, se tomarmos o trabalho manual
como um instrumento de aprendizagem teremos uma educação muito mais completa,
que não dicotomizará a realidade em duas facetas irreais, se tomadas
inarticuladamente: o racional e o físico. Por outro lado, uma pessoa que domine
tanto o conhecimento teórico quanto o conhecimento prático é uma pessoa
completa, que não é deficiente em nenhum dos dois aspectos.
"O trabalho(...) resumindo a
realidade e a ideia, apresenta-se(...) como modo universal de ensino(...) De
todos os sistemas de educação, o mais absurdo é o que separa a inteligência da
atividade e separa o homem em duas entidades impossíveis: um abstraidor um
autômato(...) Se a educação fosse, antes de tudo, experimental e prática, reservando
os discursos somente para explicar, resumir e coordenar o trabalho; se permitissem
aprender pelos olhos e pelas mãos a quem não pudesse aprender pelos olhos e
pela memória, em breve veríamos(...) multiplicarem-se as capacidades."
É neste contexto que Proudhon proporá uma aprendizagem
politécnica, o ensino das diversas técnicas de produção manual, aliada à
formação cultural que privilegie o "desenvolvimento das faculdades
físicas, intelectuais e morais da criança" que consistem na base da
educação integral. Mas o que ele ainda não conseguia vislumbrar era o fato de
que o sistema artesanal estava definitivamente superado; a revolução industrial
havia já instaurado a divisão de funções de forma irreversível. Era necessária
uma nova fundamentação para a educação integral, que não significasse a defesa
de um processo ultrapassado. É Bakunin quem vai tornar mais contemporânea - em
termos de segunda metade do século dezenove - a fundamentação desta proposta
educacional. Sem abdicar da defesa da articulação entre trabalho manual e
trabalho intelectual como possibilidade de superação da alienação, o anarquista
russo inovará com sua concepção de homem, fugindo completamente do contexto
naturalista da filosofia política liberal.
Ao tratar o homem como um produto social, Bakunin assume
uma perspectiva dialética que coloca a questão antropológica para além da
oposição essencialismo/existencialismo que citamos antes; nesse contexto,
aquilo que é o homem comporta tanto características a priori quanto
características resultantes de escolhas e atos a posteriori, levando a um
conceito de educação integral muito mais complexo e completo.
O HOMEM COMO
PRODUTO SOCIAL
A filosofia política de tradição burguesa trabalha com a
categoria de um "estado natural"; no caso das desigualdades sociais,
é comum encontrarmos análises que colocam-nas como "naturais": todos
os homens são naturalmente diferentes, e as diferenças nas condições sociais
são nada mais nada menos do que extensões destas diferenças naturais. Sendo
assim, o sucesso ou o fracasso, o domínio ou não do saber, a riqueza ou a
miséria são simplesmente o fruto do trabalho de cada homem, trabalho este que
se processa de acordo com as características e "aptidões naturais"
deste homem. Naturalmente, então, a sociedade será desigual, pois os homens são
desiguais: um é rico porque teve aptidão suficiente para aproveitar as
oportunidades que lhe apareceram; outro é um miserável operário porque suas
características naturais assim o determinaram. A sociedade e a cultura são um
simples reflexo da natureza.
Bakunin insurge-se contra essas afirmações. Para ele o
homem é um produto social e não natural. É a sociedade que molda os homens,
segundo suas necessidades, através da educação. E se a sociedade é desigual, os
homens serão todos diferentes e viverão na desigualdade e na injustiça, não por
um problema de aptidões, mas mais propriamente por uma questão de oportunidade.
Não podemos mudar a "natureza humana", mas podemos mudar aquilo que o
homem faz dela na sociedade: se a desigualdade é natural, estamos presos a ela;
mas se é social, podemos transformar a sociedade, proporcionando uma vida mais
justa para todos os seus membros. Bakunin procura mostrar que o homem é
determinado socialmente:
"Tomando a educação no
sentido mais amplo desta palavra, incluindo nela não somente a instrução e as lições de moral, mas ainda e
sobretudo os exemplos que dão às crianças
todas as pessoas que as cercam, a influência de tudo o que ela entende
do que ela vê, e não somente a cultura de seu espírito, mas ainda o
desenvolvimento de seu corpo, pela alimentação, pela higiene, pelo exercício de
seus membros e de sua força física, diremos com plena certeza de não podermos
ser seriamente contraditados por ninguém: que toda criança, todo adulto, todo
jovem e finalmente todo homem maduro é o puro produto do mundo que o alimentou
e o educou em seu seio, um produto fatal, involuntário, e consequentemente,
irresponsável."
Por outro lado, embora determinadas características
humanas sejam formadas socialmente, não deixa de ser verdade que outras
características do homem são naturais. As características naturais não podem
ser transformadas, mas devem ser plenamente conhecidas, através da ciência,
para que possam ser dominadas; o fato de se assumir essas características
naturais não significa submissão, escravidão: fugir delas seria dispensar a
humanidade. Bakunin deixa bastante clara a percepção destas características
naturais em um outro texto:
"Ao reagir sobre si mesmo e
sobre o meio social de que é, como acabo de dizer, o produto
imediato, o homem, não o esqueçamos nunca, não faz outra coisa do que obedecer
todavia a estas leis naturais que lhe são próprias e que operam nele com uma
implacável e irresistível fatalidade. Último produto da natureza sobre a
terra, o homem continua, por assim dizer, por seu desenvolvimento
individual e social, a obra, a criação, o movimento e a vida. Seus
pensamentos e seus atos mais inteligentes e mais abstratos e, como tais,
os mais distantes do que se chama comumente de natureza, não são mais do que
criações ou manifestações novas. Frente a esta natureza universal, o homem não
pode ter nenhuma relação exterior nem de escravidão nem de luta, porque leva
em si esta natureza e não é nada fora dela. Mas ao identificar suas
leis, ao identificar-se de certo modo com elas, ao transformá-las por um
procedimento psicológico, próprio de seu cérebro, em ideias e em
convicções humanas, se emancipa do tríplice jugo que lhe impõem primeiro
a natureza exterior, depois sua própria natureza individual e, por fim, a sociedade
de que é produto.
"(...) Ao rebelar-se contra ela
rebela-se contra si mesmo. É evidente que é impossível para o homem conceber
somente a veleidade e a necessidade de uma rebelião semelhante, posto que, não
existindo fora da natureza universal e carregando-a consigo, achando-se a cada
instante de sua vida em plena identidade com ela, não pode considerar-se nem
sentir-se ante ela como um escravo. Ao contrário, é estudando e apropriando-se,
por assim dizer, com o pensamento, das leis naturais dessa natureza – leis que
se manifestam igualmente, em tudo o que constitui o seu mundo exterior, e em
seu próprio desenvolvimento individual: corporal, intelectual e moral -, como
ele chega a sacudir sucessivamente o jugo da natureza exterior, o de suas
próprias imperfeições naturais, e, como veremos mais tarde, o de uma
organização social autoritariamente constituída."
Dentre as características naturais do homem não estão,
entretanto, outras características - como a liberdade, por exemplo - que são um
produto da vivência do homem em sociedade. Sendo assim, é necessário que se
domine o conhecimento científico sobre as leis naturais e sobre os mecanismos e
estruturas da sociedade, para que seja possível a construção de uma nova
sociedade e de um novo homem, fundada na liberdade, na justiça e na igualdade. A construção da liberdade é processo de
aprendizado da natureza e da cultura.
Mas se o homem é, em grande parte, uma construção social,
é possível que uma sociedade justa - através do aprendizado pelo contato direto
- produza homens completos, livres e felizes:
"Para que os homens sejam
morais, isto é, homens completos no sentido mais lato do termo, são necessárias
três coisas: um nascimento higiênico, uma instrução racional e integral,
acompanhada de uma educação baseada no respeito pelo trabalho, pela razão, pela
igualdade e pela liberdade, e um meio social em que cada indivíduo, gozando de plena
liberdade, seja realmente, de direito e de fato, igual a todos os outros."
Bakunin reconhece na educação a função de formar as
pessoas de acordo com as necessidades sociais, o que hoje chamamos de dimensão
ideológica do ensino. E é isso que ele ataca na educação trabalhada pelo
sistema capitalista, cujo objetivo é perpetuar a sociedade de exploração: ela
ensina os burgueses a explorar, dominando todos os conhecimentos disponíveis e
não vendo outro modo de vida; e ensina as massas proletárias a permanecerem
dóceis à exploração, não se rebelando contra o sistema social injusto. A escola
passa então por uma instituição perversa, um aparelho de tortura que mutila
alguns membros para moldar o homem segundo seus injustos propósitos. A educação
capitalista não forma um homem completo, mas um ser parcial, comprometido com
princípios definidos a priori e exteriores a ele; em outras palavras, a
educação capitalista funda-se na heteronomia. Mas nem por isso ele deixa de
reconhecer que a educação também pode ser trabalhada de outra maneira,
perseguindo um objetivo oposto ao da educação capitalista:
"Será preciso, pois, eliminar da
sociedade toda a educação e abolir todas as escolas? Não, de modo algum; é
preciso dispensar a mãos cheias a educação nas massas, e transformar todas as
igrejas, todos estes templos dedicados à gloria de Deus e à submissão dos
homens, em outras tantas escolas de emancipação humana. Mas, antes de tudo, entendamo-nos:
as escolas propriamente ditas, em uma sociedade normal, fundada sobre a
igualdade e o respeito à liberdade humana, deverão existir apenas para as
crianças, não para os adultos; e para que se convertam em escolas de
emancipação e não de submissão, terão que eliminar toda essa ficção de Deus, o
eterno e absoluto escravizador, e deverá fundamentar toda a educação das
crianças e a instrução no desenvolvimento científico da razão, e não sobre a
fé; sobre o desenvolvimento da dignidade e da independência pessoais, e não o
da piedade e da obediência; sobre o culto
à verdade e à justiça, e antes de tudo sobre o respeito humano, que deve
substituir em tudo e por tudo o culto
divino."
A realização de uma educação com estas características não
é, entretanto, imediata e nem um pouco tranquila, e Bakunin está consciente das
dificuldades a serem enfrentadas. Por um lado, com toda certeza a reação da sociedade
capitalista a tal projeto pedagógico seria radical: tentaria ao máximo
resguardar-se, não permitindo que tal sistema educacional pudesse formar
pessoas conscientes e críticas, livres e justas, que não poderiam ser cooptadas
pela sociedade de exploração, colocando-a em xeque; por outro lado, pelo efeito
maléfico que esta sociedade exerceria sobre as próprias pessoas egressas das
escolas que trabalhassem com essa perspectiva crítica e libertária . E como a
educação mão se processa apenas na instituição escola, mas na sociedade como um
todo, uma escola revolucionária não lograria alcançar plenamente seus objetivos
em uma sociedade reacionária. Aqui vem à luz a dialética social de Bakunin: uma
nova educação, somente, não constrói a nova sociedade, e nem a nova sociedade é
possível sem um novo homem, em cuja formação é de extrema importância uma nova
escola. No entanto, fundar uma nova escola no seio da velha sociedade, sem a
preocupação de organizar um trabalho revolucionário para transformar paulatinamente
as estruturas sociais, é condenar esta escola ao fracasso. Bakunin escreve:
"Se no meio existente se
conseguissem fundar escolas que dessem aos alunos instrução e uma educação tão
perfeitas quanto é possível hoje imaginar, conseguiriam elas criar homens
justos, livres e morais? Não, porque ao sair da escola se encontrariam numa sociedade
que é dirigida por princípios absolutamente contrários a essa educação e a essa
instrução e, como a sociedade é sempre mais forte que os indivíduos, não
tardaria a dominá-los, isto é, desmoralizá-los. Mais ainda, a própria função de
tais escolas é impossível no atual meio social. Porque a vida social abarca
tudo, invade as escolas, as vidas das famílias e de todos os indivíduos que
dela fazem parte."
Através destas afirmações, Bakunin procura mostrar que, apesar de ter uma participação fundamental
no processo revolucionário, a escola não faz sozinha a revolução. A
sociedade não é mecânica. Se existe exploração porque não há consciência, não
basta que aos poucos eduquemos e conscientizemos as pessoas para que a
sociedade se transforme. Os caminhos sociais são mais complexos e obscuros;
longe de ser um mecanismo simples e previsível, a sociedade é - como já
apontava Proudhon – um frágil e tênue equilíbrio entre uma multiplicidade de
forças, e o meio social humano é muito mais próximo da imprevisibilidade. A
educação revolucionária e os trabalhos revolucionários de base, como a
organização, por exemplo, devem ser articulados, processados simultaneamente,
para que se possa ter esperanças de, aos poucos, conseguir dar alguns passos no
sentido da revolução social que destruirá as bases da antiga sociedade.
A AUTOGESTÃO
PEDAGÓGICA
O conceito de homem que fundamenta e permeia a concepção
libertária da educação desemboca, necessariamente, numa posição política, como
já vimos. Para manter-se fiel a essa perspectiva político-social de
transformação, a pedagogia anarquista elege como princípio político a autogestão. Tal princípio está
intimamente relacionado com o conceito de autonomia:
trata-se de construir uma comunidade
- fábrica, escola, sociedade - na qual a gerência
seja responsabilidade única e exclusiva dos indivíduos que a compõem; em
outras palavras, a autogestão consiste
na constituição de uma sociedade sem Estado, ou pelo menos numa sociedade
na qual o Estado não esteja organicamente separado dela, como uma instância
político-administrativa heterônoma.
O princípio da autogestão pode ser aplicado aos mais
diversos âmbitos: à administração de uma empresa ou de uma coletividade rural,
a uma cooperativa de bens e/ou serviços, a um sindicato, a uma associação
comunitária de bairro etc. Dentre as muitas instituições que podem passar pela
experiência da autogestão está a escola, e foi justamente nela que se
desenvolveram as mais abrangentes.
A aplicação do princípio autogestionário à pedagogia
envolve dois níveis específicos do processo de ensino-aprendizagem: primeiro, a
auto-organização dos estudos por parte do grupo, que envolve o conjunto dos
alunos mais o(s) professor(es), num nível primário e toda a comunidade escolar
- serventes, secretários, diretores etc. - num nível secundário; além da
formalização dos estudos, a autogestão pedagógica envolve um segundo nível de
ação, mais geral e menos explícito, que é o da aprendizagem sócio-política que
se realiza concomitantemente com o ensino formal propriamente dito.
Ao ser antiautoritária por definição, a educação
anarquista sempre teve na autogestão pedagógica seu foco central, implícita ou
explicitamente. Não foi apenas o anarquismo, porém, que assumiu a tendência autogestionária
na educação; a autogestão cabe a múltiplas interpretações políticas, do
anarquismo mais radical até o liberalismo laissez-faire mais reacionário.
Assim, muitas tendências pedagógicas acabaram por assumir práticas total ou
parcialmente ligadas ao princípio da autogestão, seja de forma consciente, seja
na sutil inocência - ou ignorância - que tudo permite. A autogestão está
presente, pois, de Cempuis a Summerhill, do racionalismo pedagógico de Ferrer i
Guàrdia ao "escolanovismo" mais liberal, da pedagogia institucional
às técnicas de Freinet.
Georges Lapassade define a autogestão pedagógica como
sendo a "forma atual de educação negativa" iniciada com Rousseau,
pois ela é um sistema de educação no qual o professor renuncia à sua autoridade
de transmissor de mensagens, interagindo com os alunos através dos meios de
ensino, deixando que eles escolham os programas e os métodos da aprendizagem.
Divide ainda a aplicação da autogestão à pedagogia em três grandes tendências:
uma primeira, que ele denomina "autoritária", pois o professor propõe
ao grupo de alunos algumas técnicas de autogestão e que, segundo ele, é
iniciada pelo pedagogo soviético A. Makarenko. A segunda ele denomina
"tendência Freinet", pois teria na proposta do professor francês de
criação de novos métodos e técnicas pedagógicos sua característica central.
Nessa tendência, próxima à individualização do ensino e à autoformação,
estariam ainda englobadas as experiências norte-americanas de self-government
na educação esboçadas pelo Plano Dalton e as propostas de uma Pedagogia
Institucional, às quais se filia o próprio Lapassade. A terceira tendência
seria a "libertária" e englobaria as experiências pedagógicas
anarquistas, caracterizadas, segundo ele, por um processo em que os professores
deixam nas mãos dos alunos quaisquer orientações no sentido de instituir um
grupo de aprendizagem e limitam-se a ser "consultores" deste grupo.
A classificação de Lapassade sem dúvida é bastante
operacional mas traz, como qualquer classificação, problemas técnicos, como, no
caso, a caracterização que ele faz da tendência libertária. Sobre a aplicação
do princípio da autogestão na pedagogia libertária podemos distinguir duas perspectivas:
uma, a que chamaria "tendência não-diretiva", assume os princípios
metodológicos rousseanianos da educação, embora com críticas à sua perspectiva
sócio-política. Estaria representada na pedagogia antiautoritária que tem em
Max Stirner seu teórico mais radical e que animou diversas experiências de
escolas libertárias. Do ponto de vista metodológico e psicológico, estaria
muito próxima à tendência escolanovista e também da Pedagogia Institucional, se
bem que mais voltada para uma perspectiva de educação política dos filhos do
proletariado. A segunda, que poderia ser denominada de "tendência
mainstream", assume Rousseau negativamente, construindo-se como uma
crítica radical de sua filosofia educacional. Essa corrente estaria sustentada
teoricamente em Proudhon e Bakunin, apresentando como exemplos práticos as
experiências de Robin, Faure e Ferrer i Guàrdia.
O que diferencia as duas perspectivas de aplicação da
autogestão pedagógica no contexto libertário é que enquanto a primeira toma a
autogestão como um meio, a segunda a toma pôr um fim; em outras palavras, na
"tendência não-diretiva" a autogestão é tomada como metodologia de
ensino, enquanto que na "tendência mainstream" ela é assumida como o
objetivo da ação pedagógica. Ou, ainda: educa-se pela liberdade ou para a
liberdade. De novo, o fundamento é a oposição Rousseau x Bakunin: se assumimos
a liberdade como uma característica natural, a criança deve ser educada sem
direcionamentos; se, por outro lado, tomamos a liberdade como característica social,
como desejava Bakunin, a criança precisa ser educada, dirigida no sentido da
construção e conquista da liberdade.
Parece-me que a segunda posição é mais coerente com os
princípios anarquistas, principalmente porque estamos falando do exercício de uma
pedagogia libertária no contexto de uma sociedade capitalista, o que significa
afirmar a autogestão em um meio heterogestionário. Criar escolas em que as
crianças vivam na mais absoluta liberdade é um grande engodo, pois não é essa a
situação que elas encontrarão no meio social; ao contrário, estarão imersas num
meio em que ou são submetidas ou submetem, onde a liberdade é, portanto,
impossível. Politicamente, assumir uma postura não-diretiva na educação
significa deixar que a sociedade encarregue-se da formação política dos
indivíduos. Isso o próprio Rousseau já percebia, e daí a sua opção por isolar
Emílio da sociedade, afastando-o dos efeitos corruptos dela. Pensava o filósofo
genebrino que, após ter a personalidade formada, o indivíduo poderia ser introduzido
no convívio social, sendo uma influência positiva para a sociedade corrompida.
Hoje sabemos, entretanto, que o indivíduo nunca deixa de ser suscetível às
influências sociais, principalmente com o poder de penetração que a mídia
possui atualmente.
A perspectiva não-diretiva advinda de Rousseau e
sistematizada pelos escolanovistas, de Dewey a Freinet, de Claparède a Rogers,
serve aos interesses políticos do capitalismo, criando indivíduos adaptados ao
laissez-faire absoluto, que procurarão o desenvolvimento individual sem
preocupar-se com o coletivo, com o social. Na melhor das hipóteses, uma escola
baseada em tal princípio formará indivíduos alheios à questão política, presas
fáceis da poderosa mídia capitalista.
A proposta libertária de uma educação integral, fundada no
princípio da autogestão, não pode, portanto, ser confundida com as propostas
escolanovistas que lhe são contemporâneas. Se há convergências entre elas, há
uma divergência fundamental, a postura política resultante da concepção
antropológica que a sustenta. Assumir o
homem como um ser complexo, integral, com direito à igualdade e à liberdade
leva necessariamente a um confronto político com a sociedade capitalista,
que funciona através da alienação. Uma educação anarquista só pode ser a luta
contra essa alienação, buscando formar o homem completo, ao mesmo tempo em que
confronta-se com o capitalismo, buscando estratégias políticas de transformação
social. Abandona, assim, a imobilidade de um passado de tradições para abrir-se
ao futuro como um novo horizonte de possibilidades.
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Ideologie Libertarie e Formazione Umana. Firenze, La Nuova Italia, 1973.
Publicado em Educação Libertária: textos de um seminário, organizado
por Maria Oly Pey - Rio de Janeiro/Florianópolis: Achieamé/Movimento, 1996.
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