segunda-feira, 9 de maio de 2022

POVOS INDÍGENAS NO BRASIL


 CONCEITO DE POVOS INDÍGENAS:

“POVOS INDÍGENAS são aqueles que, tendo continuidade histórica com grupos pré-colombianos, se consideram distintos da sociedade nacional. Indígenas são aqueles que se reconhecem como pertencentes a uma dessas comunidades e por elas são reconhecidos”.

            O conceito acima foi retirado da página de procura do Google, quando se procura o termo “conceito de povos indígenas”. O mesmo é datado de 31 de julho de 2015 e pertence à página do Ministério do Desenvolvimento Social do governo brasileiro e está fora do ar (http://mds.gov.br). De certa forma isso já demonstra como o atual governo trata a questão indígena, faz de conta que ela não existe, fechando os olhos para muitas agressões a esses povos.

            A Organização das Nações Unidas (ONU) tem uma definição mais técnica e abrangente, formulada em 1986:

As comunidades, os povos e as nações indígenas são aqueles que, contando com uma continuidade histórica das sociedades anteriores à invasão e à colonização que foi desenvolvida em seus territórios, consideram a si mesmos distintos de outros setores da sociedade, e estão decididos a conservar, a desenvolver e a transmitir às gerações futuras seus territórios ancestrais e sua identidade étnica, como base de sua existência continuada como povos, em conformidade com seus próprios padrões culturais, as instituições sociais e os sistemas jurídicos”. 

           Esse conceito pode ser encontrado numa publicação do Ministério da Educação do Brasil, chamado “O Índio Brasileiro: O que Você Precisa Saber sobre os Povos Indígenas no Brasil de Hoje. Ministério da Educação, Secretária de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006, p. 27”. Deve-se notar que esta publicação ocorre no contexto de um governo mais popular e voltado para o benefício das comunidades indígenas brasileiras. 

A DISCUSSÃO DOS ILUMINISTAS SOBRE O “ESTADO DA NATUREZA”


            Os filósofos denominados contratualistas do século XVII e XVIII costumavam a pensar que o “Estado de Natureza” poderia ser encontrado entre os povos indígenas mais primitivos. 
          O conceito de “Estado de Natureza” é uma abstração teórica que se refere a um “momento” em que os seres humanos organizavam-se apenas sob as leis da natureza, um “momento” anterior ao surgimento de qualquer tipo de organização social e do Estado Civil, ressaltando-se que a ideia de anterioridade não se refere a um momento histórico, mas uma metáfora a um período pré-social dos seres humanos.

            Característica marcante é a ideia de que os indivíduos viveriam isoladamente ou organizados em pequenos grupos familiares dedicando-se à sua sobrevivência. Sendo pré-sociais eram plenamente livres com sua liberdade natural e igualdade entre os membros destes pequenos grupos, não estariam, supostamente, submetidos a construções sociais ou culturais.

            Diferentes autores propõem diferentes visões sobre como seria o estado de natureza, onde as principais correntes filosóficas modernas remetem a Hobbes, Locke e Rousseau.

            Thomas Hobbes (1588 – 1679) declara que os seres humanos possuem uma tendência natural à violência e cunhou a célebre frase: “O homem é o lobo do homem”. E que por conta de seu intelecto, os seres humanos dominaram a natureza, mas encontraram outros seres humanos os seus grandes rivais, seus verdadeiros predadores naturais. Os desejos dos indivíduos em “Estado de Natureza” gerariam disputas que poderiam levar à morte de uma das partes do conflito. Pela necessidade de segurança e, principalmente, por receio de uma morte violenta, os indivíduos preferem abrir mão de seu direito à liberdade e igualdade dada pela natureza. Assim sendo, celebraram um pacto ou contrato social no qual passam ao serem submetidos a um governo que pode, através das leis, garantindo-se assim, uma vida segura a todos. Os seres humanos abandonam o “Estado de Natureza” e dão origem ao “Estado Civil” por meio de um contrato social.

            John Locke (1632 – 1704) foi um filósofo inglês, considerado o “pai do liberalismo”. Isso se deve fundamentalmente por sua concepção da propriedade como um direito natural dos seres humanos. Divergindo do pensamento hobbesiano, Locke afirma que os seres humanos em “Estado de Natureza” não vivem em guerra, tendem a uma vida pacífica por sua condição de liberdade e igualdade. Os indivíduos ao nascer receberiam da natureza, o direito à vida, à liberdade e aos bens que tornam possíveis os dois primeiros. Isto é, o direito à propriedade privada. Entretanto, o indivíduo em “Estado de Natureza”, por seus desejos e por sua liberdade, acabaria entrando em litígio com outros indivíduos. Como cada uma das partes defenderia seu próprio interesse, tornou-se necessária a criação de um poder mediador a qual todos se submetessem. Assim sendo, o indivíduo abandonaria o “Estado de Natureza”, celebrando o contrato social. Nele o Estado deveria desempenhar o papel de árbitro nos conflitos, evitando injustiças e, consequentemente, a vingança daquele que se sentiu injustiçado. Tendo em vista sempre a garantia do direito natural à propriedade. Para Locke: “Ser livre é ter liberdade de ditar suas ações e dispor dos seus bens, e de todas as suas propriedades, de acordo com as leis regentes. Dessa forma, não ser sujeito à vontade arbitrária de outros, podendo seguir a sua própria vontade”. Locke ainda afirma que a função do Estado é interferir o mínimo possível na vida dos indivíduos, atuando apenas na mediação de conflitos e na defesa do direito à propriedade, acreditando que onde não há lei não há liberdade.

            Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778), filósofo suíço, possuía uma concepção do ser humano em “Estado de Natureza” bem contrastante dos seus predecessores. Rousseau afirmava que o ser humano é naturalmente bom. Em “Estado de Natureza”, viveria uma vida isolada dos demais, plenamente livre e feliz. O indivíduo seria o “bom selvagem” inocente e incapaz de praticar o mal, como os outros animais. Entretanto, esse estado terminava quando por algum motivo particular, um indivíduo cerca um pedaço de terra e o classifica como seu. O surgimento da propriedade privada é o motor gerador de desigualdade e violência. Afirmava Rousseau: “O homem nasce bom e a sociedade o corrompe”. Assim, surge o “Estado de Sociedade” onde os possuidores (aqueles que detêm a posse de algo) lutam contra aqueles que não possuem bens. Pela extinção dessa insegurança, o contrato social faz com que os indivíduos abandonem o “Estado de Natureza” e assumam a liberdade civil. Vivendo sobre o controle de um Estado que deve realizar estritamente a vontade geral.

            Estes filósofos chamados de filósofos contratualistas dedicaram a desenvolver a ideia do ser humano em um estado pré-social (“primitivo”) e sua para uma vida em sociedade se dá através do contrato social. A origem do Estado surge da necessidade dos seres humanos estabelecerem leis que possam tornar possível sua vida em sociedade. 

O SPILTN E O SPI

            Em nosso país a preocupação com a temática indígena começou num período bastante crítico para as populações indígenas brasileiras. No final do século XIX e início do século XX acontecida diversas frentes de expansão para o interior brasileiro. Assim era comum que governo, posseiros, garimpeiros, pecuaristas, agricultores fizessem verdadeira guerra contra os nativos destas regiões de expansão.

            Em meados de 1907, devido a essas disputas no interior entre colonos e indígenas, aconteceu uma repercussão bastante negativa, tanto nas capitais do Brasil quanto no exterior levando a uma acirrada polêmica.

            Incrivelmente, o diretor do Museu Paulista, o naturalista Alemão Hermann Von Ihering, chegou a defender o extermínio dos índios que resistissem ao avanço da civilização, promovendo grande revolta em diversos setores da sociedade civil, sendo que em 1908 foi publicamente acusado no XVI Congresso dos Americanistas ocorrido em Viena. 

           Neste contexto originou-se o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), que tinha como objetivo tanto a proteção e integração dos índios quanto a fundação de colônias agrícolas que se utilizariam da força de trabalho encontrada pelas chamadas expedições oficiais.

            A ideologia básica desta unificação de funções estava a ideia de que o “ser índio” era um estado transitório, cujo destino seria tornar trabalhador rural ou proletário urbano.

            Em 1918, o Serviço de Proteção ao Índio foi separado da Localização de Trabalhadores Nacionais, porém, mesmo após a separação a premissa do SPI era a da integração pacífica dos índios, continuando o órgão a acreditar no processo de civilização do aborígene.

           Enquanto isso institucionalmente a política de administração dos índios pela União foi formalizada no Código Civil de 1916 e na lei n.º 5.484 de 27 de junho de 1928, onde se estabeleceu uma situação jurídica de pseudocidadania ao elemento indígena tratando-o como um indivíduo a ser tutelado pelo SPI, ou seja, pelo Estado. Esses dispositivos legais partiam de uma noção genérica do conceito “índio”, não sendo formulados a partir de critérios objetivos aos quais pudessem dar conta da diversidade de situações vividas pelos povos indígenas no Brasil.

           A atuação tutelar do SPI foi permeada pelas mesmas contradições presentes nas tentativas anteriores, visando por um lado proteger as terras e as culturas indígenas e por outro transferir os nativos de territórios com o intuito de destinar novas terras à colonização impondo alterações nos modos de vida ancestrais das populações indígenas.

            O próprio arranjo institucional do SPI contradizia-se em relação à questão indígena. Durante o tempo que existiu passou por vários ministérios, sendo empurrado de um lado para outro. Entre 1910 e 1930, na então chamada República Velha, integrou o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. De 1930 a 1934, o Ministério do Trabalho e de 1934 a 1939, o Ministério da Guerra, por meio da Inspetoria de Fronteiras, em 1940, voltou ao Ministério da Agricultura e, posteriormente, passou a integrar o Ministério do Interior.

            Em relação à estrutura interna do órgão refletiu a proposta de integração dos povos e o interesse sobre seus territórios, sendo que as divisões administrativas foram organizadas conforme as diversas fases de passagem do isolamento à civilização como a fase de atração, pacificação, sedentarização e nacionalização (integração), estrutura que mantinham semelhanças com os aldeamentos missionários formados desde o século XVI. O SPI foi formado em continuidade com premissas coloniais, onde seu modo de atuação destacou-se a partir das doutrinas positivistas, incorporando técnicas missionárias tais como: distribuir presentes, vestir os índios e ensinar-lhes a tocar instrumentos musicais da cultura ocidental e não os que lhe s eram próprios. Os expedicionários sertanistas mantinham valores como a bravura, coragem, calma e disciplina militar que remontavam as clássicas imagens do explorador e do bandeirante.

            Uma expressão muito em moda na época, o “governo dos índios”, exigia dos expedicionários uma boa formação científica e espírito de dedicação à causa pública, sendo que a produção de informações cartográficas e ambientais eram fundamentais para subsidiar as atividades de conquista e exploração comercial do interior. 

           Essa proposta de registrar minuciosamente as expedições contribuiu para a formação da antropologia no Brasil e das coleções de cultura material indígena dos museus brasileiros e estrangeiros que levou a denominação de tradição sertanista. O mais importante e destacado formulador destas concepções foi o Marechal Cândido Rondon (1865 -1958), que foi o primeiro presidente do SPI e exerceu grande influência na condução de suas políticas ao longo praticamente toda vida do órgão.

            Marechal Rondon não apenas concebeu como levou à risca as posturas sertanistas. Sua prática indigenista se originou na sua atuação à frente da Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas de 1907 a 1915, onde experimentou diversas técnicas de relacionamento com os índios que posteriormente transferiu ao SPI. Por suas posturas e feitos recebeu as maiores congratulações civis e militares oferecidas aos brasileiros e em 1957 foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz.

           Nas primeiras décadas do SPI, o alemão Curt Nimuendajú (1883 – 1945) também teve um papel de destaque, produzindo vasta obra dedicada aos estudos das populações indígenas de diversas regiões do país.

            Nas décadas de 1940, 1950 e 1960, os irmãos Villas-Boas ficaram famosos por suas expedições ao Brasil Central. Estiveram à frente do processo de pacificação dos Xavantes em Mato Grosso e da concepção, implantação e Gestão do Parque Indígena do Xingu.

            O Parque Indígena do Xingu foi uma proposta dos Villas-Boas concebida em 1952 e previa limites muito maiores do que os vigentes nos dias atuais, pois na proposta inicial as cabeceiras dos principais rios deveriam ficar dentro do Parque, porém como isso não ocorreu, as mesmas acabaram sendo circundadas por cidade, pastagens e plantações de soja que ameaçam constantemente a vida dos povos indígenas que habitam o Parque Nacional do Xingu.

            A partir da década de 1940, após a instituição por Getúlio Vargas, durante a chamada ditadura do Estado Novo, do Conselho Nacional de Proteção dos Índios (CNPI) pelo decreto presidencial de n.º 1.794 de 22 de novembro de 1939, antropólogos destacados passaram a atuar na formulação das políticas indigenista brasileiras.

            Heloísa Alberto Torres, Darcy Ribeiro, Roberto Cardoso de Oliveira, Eduardo Galvão, entre outros, tentaram levar ao SPI as premissas antropológicas da época, questionando os cânones e práticas sertanistas. Consideravam inevitável a integração dos índios à sociedade nacional, porém defendiam que o SPI não se comprometesse a estimular este processo.

            As discussões que estes antropólogos propunham estavam em consonância com os debates latino-americanos e internacionais mais amplos realizados no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), que, em 1957, promulgou através da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Convenção 107 – “Sobre a Proteção e Integração das Populações Indígenas e outras Populações Tribais e Semitribais de Países Independentes” que foi ratificada pelo Brasil em 1966, também por um decreto em regime ditatorial (Decreto 58.824/1966).

            A história do SPI foi marcada pela influência de personagens proeminentes e comprometidas com os povos indígenas, mas essa atuação não valia como regra, pois o órgão sempre foi carente de recursos e acabou por se envolver de militares a trabalhadores rurais que não possuíam preparação ou interesse pela proteção  dos indígenas. As atuações à frente dos Postos Indígenas de todo o país acabaram por gerar resultados opostos à proposta de proteger os índios, onde não eram raros casos de fome, doenças, despovoamento e escravização que eram permanentemente denunciadas.

            No início da década de 1960, sob acusações de genocídio, corrupção e ineficiência o SPI foi investigado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que levou a um processo de demissão ou suspensão de centenas de funcionários de todos os escalões. Em 1967, bastante combalido e em meio à crise institucional e ao início da ditadura, o SPI e CNPI foram extintos e substituídos pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). 


A FUNAI

            Projetada por intelectuais do CNPI para superar os antigos problemas do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), a FUNAI acabou por reproduzi-los. Sua criação foi inserida no plano mais abrangente da ditadura militar (1964 a 1985), que pretendia reformar a estrutura administrativa do Estado e promover a expansão político-econômica para o interior do País, sobretudo para a região amazônica. As políticas indigenistas foram integralmente subordinadas aos planos de defesa nacional, construção de estradas e hidrelétricas, expansão de fazendas e extração de minérios.

            Sua atuação foi mantida em plena afinidade com aparelhos responsáveis por programar essas políticas: Conselho de Segurança Nacional (CSN), Plano de Integração Nacional (PIN), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).

            A ação da FUNAI durante a ditadura foi fortemente marcada pela perspectiva assimilacionista. O Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973), e ainda vigente, reafirmou as premissas de integração que permearam a história do SPI.

            Por um lado, pretendia-se agregar os índios em torno de pontos de atração, como batalhões de fronteira, aeroportos, colônias, postos indígenas e missões religiosas, assim como incorporá-los em grandes projetos como a Transamazônica, Itaipu, entre outros.

            Por outro lado, o foco era isolá-lo e afastá-lo das áreas de interesse estratégico. Para realizar esse projeto, os militares aprofundaram o monopólio tutelar: centralizaram os projetos de assistência, saúde, educação, alimentação e habitação; cooptaram lideranças e facções indígenas para obter consentimento; e limitaram o acesso de pesquisadores e organizações de apoio e setores da Igreja às áreas indígenas.

           A FUNAI foi concebida em base semelhante às do SPI e até 1991 manteve-se vinculada ao extinto Ministério do Interior, que sempre exerceu grande ingerência sobre suas ações.  Os presidentes nomeados entre as décadas de 1970 e 1980 eram, em grande maioria, militares ou políticos de carreira pouco ou nada comprometidos, e até mesmo contrários aos interesses indígenas.

            A administração foi centralizada em Brasília. Os postos indígenas foram mantidos e as inspetorias transformadas em delegacias regionais. Outras instâncias – ajudâncias, superintendências, administrações executivas, núcleos locais de apoio – foram criadas e extintas ao logo do tempo. A despeito destas modificações, a FUNAI se estruturou aos moldes do SPI, de modo mais ou menos centralizado com grande rigidez burocrática, em três níveis espaciais: 1) Nacional; 2) Regional e, 3) Local.


 
          Apesar das irregularidades que levaram à extinção do SPI, seu quadro funcional foi transferido para a FUNAI. Com recursos escassos e mal contabilizados, a FUNAI continuou a operar, assim como o SPI, com profissionais pouco qualificados. Não se concretizou a proposta de se realizar planejamentos antropologicamente orientados, conduzidos por profissionais de formação sólida, bem pagos e comprometidos com o futuro dos povos indígenas. O órgão foi permeado, em todos os níveis, por redes de relações clientelistas e corporativas, que remetem paternalismo e ao voluntarismo que dominaram o velho SPI. O órgão era novo, mas os vícios eram antigos. A criação da FUNAI foi marcada pela ineficiência, desinteresse e dificuldade de operação, o que levou o órgão a limitar sua intervenção a favor dos índios a situações altamente críticas, conflituosas e emergenciais, consequentes dos planos de colonização e exploração econômica que chegavam aos extremos do país.

            Neste contexto desfavorável, a questão indígena começou a emergir no cenário político nacional. A maior parte das organizações de apoio aos índios (ANAIs), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), a Operação Amazônia Nativa (OPAN), o Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI) e o Núcleo de Direitos Indígenas (NDI). Estas duas últimas se juntaram para fundar o atual Instituto Socioambiental (ISA). Criadas por intelectuais e clérigos envolvidos com a questão indígena, estas entidades passaram a realizar importantes trabalhos como: o questionamento fundamentado às políticas oficiais, a interlocução entre índios e a FUNAI, bem como a formulação de alternativas concretas para o indigenismo brasileiro.

            Na década de 1980, diversas manifestações passaram a ganhar visibilidade nacional. Também neste período começaram a se estruturar suas primeiras organizações formais de base comunitária ou regional. Em âmbito nacional foi criada a  União das Nações Indígenas (UNI), que deixou de existir.

           Com as mobilizações indígenas e das organizações de apoio, a Constituição de 1988 acabou por conferir um tratamento inédito aos povos indígenas. Pela primeira vez foi reconhecido seu direito à diferença e foi rompida a tradição assimilacionista através do artigo 231:

        “Artigo 231 – São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”

“§ 1.º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

“§ 2.º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.

“§ 3.º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivadas com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhe assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei”.

“§ 4.º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”.

“§ 5.º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, (ad referendum) do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantindo, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco”.

“§ 6.º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando nulidade e a extinção do direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé”.

“7.º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no artigo 174, §§ 3.º e 4.º”. “( artigo 174 - § 3.º - O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros; § 4.º - As cooperativas a que se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando, e naquelas fixadas de acordo com o art. 21, XXV, na forma da lei)”.

 

            Foi garantido o usufruto exclusivo de seus territórios tradicionalmente ocupados, definidos a partir de seus usos, costumes e tradições. A União foi instituída definitivamente como instância privilegiada das relações entre índios e a sociedade nacional.

            Através do artigo 232, os indígenas e suas organizações foram reconhecidos como partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos, o que incentivou a expansão e a consolidação de suas associações. Para isso, foram definidos canais diretos de comunicação entre os índios, o Ministério Público e o Congresso Nacional. Com estas medidas, o conceito de “capacidade relativa dos silvícolas” – Código Civil de 1917 – e, a consequente necessidade de “poder de tutela” perderam validade e atualidade. Estas vitórias constitucionais precisariam, entretanto, ser regulamentadas e consolidadas politicamente.

            Vejamos o artigo 232:


“Artigo 232 – Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”. 

           Em 1991, uma Comissão Especial foi instaurada para rever o Estatuto do Índio de 1973 a partir do enfoque inovador da carta de 1988. Foram abordados temas como: a situação jurídica dos índios e as responsabilidades assistenciais da FUNAI; os direitos de autoria e a propriedade intelectual; a proteção ambiental e a regulamentação de recursos naturais; os procedimentos de demarcação de terras indígenas. A tramitação do projeto, entretanto, foi paralisada em 1994.

            No início da década de 1990, houve amplos debates acerca do papel do órgão indigenista oficial a partir de um novo marco jurídico. O Ministério do Interior foi extinto e a FUNAI foi transferida para o Ministério da Justiça. Blocos parlamentares anti-indígenas propunham fechá-la, sem substituí-la por nada novo, o que provocaria um grande vazio administrativo. Mobilizações indígenas e organizações de apoio defendiam que a reestruturação do órgão fosse feita concomitantemente à aprovação do texto do Estatuto. Em 1991, o governo Collor realizou, por meio de decretos, uma ampla reforma das atribuições da FUNAI. As responsabilidades sobre saúde, educação, desenvolvimento rural e meio ambiente foram descentralizadas, e passaram a ser exercida pelos Ministérios da Saúde, Educação, Desenvolvimento Agrário e Meio Ambiente. As ações extra-FUNAI decretadas por Collor tomaram rumos distintos e impactaram de modo diferenciados os povos indígenas do Brasil. Durante os anos FHC estas políticas passaram a adquirir contornos administrativos mais precisos. Algumas ONGs e associações indígenas passaram a participar ativamente do processo de implementação das políticas públicas.

            Com os decretos de 1991, a FUNAI, esvaziada em suas atribuições, passou a se concentrar nas políticas de regularização fundiária. Em 1996, o governo FHC modificou as regras para a demarcação de Terras Indígenas visando destacar a necessidade da participação indígena e o direito a contestação das partes afetadas (Decreto 1775/1996, Portaria 14/1996).

            Também em 1996 passou a operar o Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas (PPTAL), resultado da parceria entre FUNAI e o Programa Piloto para a Conservação das Florestas Tropicais do Brasil – PP-G7. Embora direcionado à demarcação de terras, o PPTAL se propôs a criar alternativas concretas e de longo prazo ao modelo tutelar. Sua proposta se baseou no estímulo ao controle social e à atuação indígena qualificada na estrutura da FUNAI e do Estado de modo mais abrangente. Em seu âmbito, a partir da experiência dos Wajãpi do Amapá, foi criado o modelo de “demarcação participativa”, que tem como premissa básica a parceria e a co-responsabilidade dos povos indígenas na formulação das políticas que lhes afetam diretamente. Neste modelo, a própria demarcação é tomada como apenas uma das etapas do processo mais abrangente de gestão sustentável das Terras Indígenas. Trata-se de uma proposta baseada no diálogo intercultural, que apenas se realiza enquanto política pública com o pleno envolvimento e concordância dos povos interessados. 

           A experiência inovadora do PPTAL estimulou a criação em 2001 do Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas (PDPI), desenvolvido no âmbito do Ministério do Meio Ambiente em parceria com o PP-G7. Este projeto é voltado ao financiamento de iniciativas de valorização cultural e desenvolvimento sustentável elaborados e geridos pelas populações indígenas e seus parceiros.

           Em 2002, a ratificação pelo governo brasileiro da Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – “Sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes” (1989), aprofundou a sustentação jurídica às demandas de povos antes tomados por aculturados e integrados, que atualmente reivindicam em diversas regiões do Brasil, seus direitos indígenas diferenciados. Cada vez mais numerosas estas reivindicações trazem novos desafios à atuação da FUNAI responsável pela demarcação das Terras Indígenas no país.

            Na virada do milênio, os conhecimentos indígenas tradicionais passaram a ganhar destaque na agenda nacional e internacional. As discussões se concentraram na criação e aprimoramento de mecanismos legais que impeçam que estas populações sejam expropriadas de seu rico patrimônio intelectual, produzido ao longo de gerações. O problema é evidente no caso dos conhecimentos associados à biodiversidade que têm sido alvo de inúmeros casos de biopirataria. Embora acordos internacionais como a Convenção da Diversidade Biológica e a Agenda 21, criadas no contexto da Eco-92, tenham destacado a urgência do problema, apenas em 2002 o Brasil iniciou, através de decreto presidencial (n.º 4339, de 22 de agosto de 2002), uma política nacional de biodiversidade que, entretanto, precisa ser aprimorada em diversos aspectos. Também neste âmbito e neste período, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), vinculado ao extinto Ministério da Cultura, passou a realizar ações de proteção, valorização e salvaguarda do patrimônio cultural matéria e imaterial de povos indígenas e tradicionais. Estas ações decorrem do esforço de regulamentação da Constituição de 1988, que em seus artigos 215 e 216 formaliza o valor imaterial dos bens culturais. No ano 2.000 o decreto 3.551 institui os mecanismos oficiais de valorização e proteção do patrimônio cultural no Brasil. Estes instrumentos, entretanto, se encontram em fase inicial de consolidação e são alvo de pesquisas e debates entre especialistas. Até mesmo no campo internacional as propostas neste sentido são recentes. Data de 2003 a Convenção da UNESCO para a “Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial”.

           Desde a Constituição de 1988 o indigenismo oficial passou por diversas e significativas mudanças, voltadas, de modo geral, ao reconhecimento e à valorização da diferença cultural. As políticas públicas direcionadas aos povos indígenas têm se tornado cada vez mais descentralizadas e realizadas no âmbito de diversos ministérios que atuam em parceria com agências de cooperação internacional e organizações não-governamentais. A premissa elementar do conjunto das ações é o estímulo à participação e à co-responsabilidade indígena na gestão das políticas destinadas a eles. Entretanto, o sucesso destas políticas depende de sua plena consolidação jurídica e institucional em todos os níveis, do local ao governo central. Afinal, o poder tutelar, o assistencialismo e o assimilacionismo ainda são uma realidade fortemente enraizada em diversas práticas do relacionamento entre o Estado e os povos indígenas.

            Em relação à consolidação jurídica deste novo momento, é notável que o Estatuto do Índio de 1973, de bases integracionistas, ainda esteja vigente. Entre 1991 e 1994, foi apresentada uma proposta de substituição ao texto que jamais foi votada pelo congresso. Em março de 2006, o governo federal criou a Comissão Nacional de Política Indígena (CNPI). Em sua agenda, foi estabelecida a prioridade da atualização do Estatuto do Índio, com vistas a apresentar uma regulamentação integrada dos diversos temas da agenda dos povos indígenas: o patrimônio e os conhecimentos tradicionais, a proteção e a gestão territorial e ambiental, as atividades sustentáveis e o uso de recursos renováveis, o aproveitamento de recursos minerais e hídricos, a assistência social, a educação escolar e o atendimento à saúde diferenciado. Em julho de 2009, a proposta – construída coma participação de representantes indígenas – foi apresentada ao Congresso Nacional e aguarda votação.

            Neste contexto, o atual CNPI e a FUNAI tem a tarefa de articular e integrar o conjunto das ações estatais de defesa dos direitos indígenas, com vistas a promover o paradigma participativo e superar definitivamente seu papel tutelar. Com este objetivo, o órgão indigenista oficial tem realizado esforços para atualizar suas práticas e modos de funcionamento.

            Em fins de 2009, o governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva anunciou, por meio de decreto presidencial (n.º 7056, de 28 de dezembro), um amplo plano de reestruturação da FUNAI, que pretendeu oferecer maior capacidade de atuação onde vivem os povos indígenas. As Administrações Executivas Regionais (AERs) e Postos Indígenas (PIs) foram substituídos por Coordenações Técnicas Locais e Regionais, formadas por técnicos qualificados, que passarão a desenvolver ações participativas junto aos povos indígenas envolvidos. Nesta estrutura, está planejada a criação de Conselhos Consultivos, nos quais os indígenas e as organizações parceiras participam diretamente na formulação, implementação e gestão das políticas públicas a eles destinadas. Além disso, está prevista a criação de 3,1 mil cargos a serem preenchidos até 2012. Esta nova estrutura pretende, conforme sua direção, superar os impasses históricos do órgão indigenista oficial. Apreensivos, diversos povos se posicionaram contra as mudanças e reclamaram de falta de consulta prévia prevista na Convenção n.º 169 da OIT.

 

A QUESTÃO INDÍGENA NOS DIAS ATUAIS

            Em pleno século XXI a grande maioria dos brasileiros ignora a imensa diversidade de povos indígenas que vivem no país. Estima-se que, na época da chegada dos europeus, fossem mais de 1.000 povos, somando entre 2 e 4 milhões de pessoas. Atualmente encontramos no território brasileiro 256 povos, falantes de mais de 150 línguas diferentes.

            Os povos indígenas somam, segundo o Censo do IBGE de 2010, 896.917 pessoas. Destes, 324.834 vivem em cidades e 572.083 em áreas rurais, o que corresponde aproximada-mente a 0,47% da população total do Brasil. A maior parte dessa população distribui-se por milhares de aldeias, situadas no interior de 726 Terras Indígenas, de norte a sul do território nacional.

            Nos dias de hoje, falar em povos indígenas no Brasil significa reconhecer basicamente:

    Nestas terras colonizadas por portugueses, aonde se viria formar um país de nome Brasil, já havia populações humanas que ocupavam territórios específicos;   Não se sabe exatamente de onde vieram (embora haja várias hipóteses); por isso diz-se que são “originárias” ou “nativas” porque estavam por aqui antes da ocupação européia;
Certos grupos de pessoas que vivem atualmente no território brasileiro estão historicamente vinculados a esses primeiros povos; 
Os índios que estão hoje no Brasil têm uma longa história, que começou a se diferenciar daquela da civilização ocidental ainda na chamada “pré-história” (com fluxos migratórios do “Velho Mundo” para a América ocorrido há dezenas de milhares de anos); a história “deles” voltou a se aproximar da “nossa” há cerca de, apenas, 500 anos (com a chegada dos portugueses);
    Como todo grupo humano, os povos indígenas têm culturas que resultam da história de relações que se dão entre os próprios homens e entre estes e o meio ambiente; uma história que, no seu caso, foi (e continua sendo) drasticamente alterada pela realidade da colonização; 
   A divisão territorial em países (Brasil, Venezuela, Bolívia, etc.) não coincide, necessariamente com a ocupação indígena do espaço; em muitos casos, os povos que hoje vivem em uma região de fronteiras internacionais já ocupavam essa área antes da criação de divisões entre os países; é por isso que faz mais sentido dizer povos indígenas no Brasil do que do Brasil. 

            A expressão genérica povos indígenas refere-se a grupos humanos espalhados por todo o mundo, e o que são bastante diferentes entre si. É apenas o uso corrente da linguagem que faz com que, em nosso país e em outros, fale-se em povos indígenas, ao passo que, na Austrália, por exemplo, a forma genérica para designá-los seja aborígine.

            Indígena ou aborígine, como ensina o dicionário, quer dizer “originário de determinado país, região ou localidade; nativo”. Aliás, nativos e autóctones são outras expressões usadas, ao redor do mundo, para denominar esses povos. 

           O que todos os povos indígenas têm em comum? Antes de tudo, o fato de cada qual se identificar como uma coletividade específica, distinta de outras com as quais convive e, principalmente, do conjunto da sociedade nacional na qual está inserida. Genericamente, os povos indígenas que vivem não apenas em nosso país, mas em todo o continente americano, são também chamados de índios. Essa palavra é fruto do equívoco histórico dos primeiros colonizadores que, tendo chegado às Américas, julgaram estar na Índia.

            Apesar do erro, o uso continuado – até mesmo por parte dos próprios índios – faz da palavra, no Brasil de hoje, um sinônimo de indivíduo indígena. Como há certas semelhanças que unem os índios das Américas do Norte, Central e do Sul, há quem prefira chamá-los, todos, de ameríndios. Os índios ou ameríndios são, então, os povos indígenas das Américas.

            Em décadas passadas, outra palavra era bastante usada no Brasil para designar genericamente os índios: silvícolas (quem nasce ou vive nas selvas). O termo é totalmente inadequado, porque o que faz de alguém indígena não é o fato de viver ou ter nascido na “selva”. Logo, segundo Eduardo Viveiros de Castro, pesquisador e professor de antropologia do Museu Nacional (UFRJ), sócio fundador do Instituto Socioambiental, conceitua:


"Índio” é qualquer membro de uma comunidade indígena, reconhecido por ela como tal;

“Comunidade Indígena” é toda comunidade fundada em relações de parentesco ou vizinhança entre seus membros, que mantém laços histórico-culturais com as organizações sociais indígenas pré-colombianas.         

            As relações de parentesco ou vizinhança constitutivas da comunidade incluem as relações de afinidade, de filiação adotiva, de parentesco ritual ou religioso, e, mais geralmente, definem-se nos termos da concepção dos vínculos interpessoais fundamentais próprias da comunidade em questão.


                 
    Os laços histórico-culturais com as organizações sociais pré-colombianas compreendem dimensões históricas, culturais e sociopolíticas, a saber:

·         A continuidade da presente implantação territorial da comunidade em relação à situação existente no período pré-colombiano. Tal continuidade inclui, em particular, a derivação da situação presente a partir de determinações ou contingências impostas pelos poderes coloniais ou nacionais no passado, tais como migrações forçadas, descimentos, reduções, aldeamentos e demais medidas de assimilação e oclusão étnicas;·  

     A orientação positiva e ativa do grupo em face de discursos e práticas comunitários derivados do fundo cultural ameríndio, e concebidos como patrimônio relevante do grupo. Em vista dos processos de destruição, redução e oclusão cultural associados à situação evocada no item anterior, tais discursos e práticas não são necessariamente aqueles específicos da área cultural (no sentido histórico-etnológico) onde se acha hoje a comunidade;
 A decisão, seja, ela manifesta ou simplesmente presumida, da comunidade de se constituir como entidade socialmente diferenciada dentro da comunhão nacional, com autonomia para estatuir e deliberar sobre sua composição (modos de recrutamento e critérios de inclusão de seus membros) e negócios internos (governança comunitária, formas de ocupação do território, regime de intercâmbio com a sociedade envolvente), bem como de definir suas modalidades próprias de reprodução simbólica e material. 

            Por não possuírem escrita alfabética nos tempos da “atração e pacificação”, os povos indígenas foram (e continuam sendo) “batizados” por escrito pelos não-índios, em um processo que deu (e ainda dá) margem a muitas confusões em termos de grafia e significados.

            É importante destacar que, nas últimas décadas, com o desenvolvimento de projetos na área de educação escolar indígena, alguns povos estão aprendendo a escrever na sua própria língua, e assim começam a criar, junto com os assessores linguistas, uma grafia própria.

            Há uma grande variabilidade na maneira de grafar os nomes dos povos indígenas. Convivem padrões diferentes, às vezes criados por funcionários da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), outras por antropólogos e, mais recentemente, até mesmo por Manuais de Redação de grandes órgãos da imprensa brasileira. Por exemplo, os Huni Kuin, que hoje habitam áreas do Acre, historicamente foram chamados de “Kaxinawá” (que não é sua autodenominação) e esse termo é escrito de pelo menos quatro maneiras diferentes: caxinauá, chashinauá, kaxinawá e kaxináua.


            “Atrair e pacificar” os índios, impondo-lhe arbitrariamente denominações, tem a ver historicamente com práticas coloniais de controle social: concentração espacial da população (com a consequente contaminação por doenças e depopulação pós-contato), implantação de sistemas paternalistas e precários de assistência social, confinamento territorial e exploração dos recursos naturais disponíveis. Tudo em nome da “integração dos índios à comunhão nacional”.

            Ao contrário, reconhecer e valorizar suas identidades específicas, compreender suas línguas e suas formas tradicionais de organização social, de ocupação da terra e uso dos recursos naturais, tem a ver com gestos diplomáticos de intercâmbio cultural e respeito a direitos coletivos especiais.

            A razão básica pela qual os antropólogos grafam o nome de uma determinada maneira tem a ver com a adoção de um alfabeto com o qual vão escrever as palavras da língua deste povo. Como as línguas indígenas têm sons que não encontram representação direta nas letras do alfabeto brasileiro, os antropólogos são obrigados a recorrer a outras letras e combinações de letras. Buscam, então, usar letras cuja interpretação sonora se aproxime do alfabeto fonético internacional, usado pelos linguistas de todo o mundo, e não do alfabeto brasileiro.

        As fronteiras entre os Estados nacionais na América do Sul se sobrepuseram às áreas ocupadas pelos povos indígenas, de tal forma que alguns deles vivem hoje sob a jurisdição político-administrativa de dois, três e até quatro países diferentes. As discordâncias ortográficas sobre os nomes de povos indígenas costumam opor antropólogos a Manuais de Redação de grandes jornais. Mas, nesse assunto, não há consenso nem mesmo entre os próprios antropólogos. As maiores polêmicas dizem respeito ao uso (ou não) de maiúsculas iniciais e da forma plural para os nomes das etnias.

            Para muitos, quando a denominação de um povo aparece com função de adjetivo, não haveria porque não escrevê-la com maiúscula (língua guarani, por exemplo). Já quando aparece como substantivo gentílico seria mais adequado mantê-la com maiúscula, porque, se é verdade que essas etnias não tem países (como os franceses, a França), também é certo que seus nomes são designativos de uma coletividade única, de uma sociedade, de um povo, e não apenas de uma somatória de pessoas. Assim, temos, por exemplo, os Kaingang.

            Aqueles que defendem a não-flexão do plural ancoram-se na justificativa de que, na maioria dos casos, sendo os nomes palavras em língua indígena, acrescentar um “s” resultaria em hibridismo. Além do mais, há a possibilidade de as palavras já estarem no plural, ou, ainda, de que a própria forma plural não exista nas línguas indígenas correspondentes.

            Os Manuais de Redação, por outro lado, têm imposto um aportuguesamento da grafia dos nomes dos grupos indígenas, proibindo o uso de letras como “w”, “y”, “k” (!) e certos grupos de letras não existentes no português, como “sh”. Esse critério não tem consistência, assim como grafar os nomes sempre em minúsculas ou flexionar o número (singular/plural), mas não o gênero (masculino/feminino). Por exemplo, se “Krahô” se deve escrever “craô”, então “Kubitscheck” deveria ser escrito “Cubicheque”, “Geisel”, “Gáisel”. Por que o mesmo manual que recomenda grafar ianomâmi e os ianomâmis, veta a flexão por gênero, quando a palavra tem função de adjetivo (“mulheres ianomâmis” e não “mulheres ianomamas”), resultando num aportuguesamento pela metade?

            A confusão fica ainda maior quando entram em cena as autodenominações, isto é, as formas verbais através das quais um determinado povo refere-se a si mesmo. Em muitos casos, pesquisas de antropólogos e linguistas ensinam que as autodenominações não têm nada a ver com os nomes aplicados ao grupo indígenas pelos não-índios. Boa parte dos nomes utilizados, tanto hoje como no passado, para designar os povos indígenas no Brasil não são autodenominações. Muitos deles foram atribuídos por outros povos, frequentemente inimigos e, por isso mesmo, carregam conotações pejorativas.

            É o caso, por exemplo, dos Araweté, assim nomeados pela primeira vez por um sertanista da FUNAI que julgava compreender sua língua, logo após os “primeiros contatos” estabelecidos em meados da década de 1970. Tal designação, grafada pela primeira vez por um funcionário do governo federal num relatório, acabou permanecendo como identidade pública oficial desse povo. Mas um antropólogo que estudou os Araweté, alguns anos depois,  aprendeu sua língua e descobriu que esses índios não se denominam originalmente por um substantivo “os Araweté”, mas fazem uso da palavra bïdé (um pronome que quer dizer, “nós, os seres humanos”) para se referir ao coletivo do qual fazem parte.

            A palavra não remete a uma substância (como brasileiros, por exemplo, remete ao Brasil), mas a uma perspectiva (humana, que se opõe a animal, a divina, a inimiga...). Dependendo do contexto em que é enunciada, a palavra bïdé pode se referir a coletividades humanas mais ou menos abrangentes: aos próprios Araweté (em oposição a outros grupos inimigos); a todos os índios (em oposição aos não-índios); a todos os seres humanos (em oposição aos animais e deuses)...

            Os membros de Estados-Nações, como nós não índios, tem o preconceito de que toda sociedade tem que ter nome próprio. E, como ilustra o caso araweté, trata-se de uma ideia equivocada. Pois, se é certo que os Araweté, utilizam a palavra bïdé para se referir a si mesmos, não é verdade que ela seja um “nome próprio” e nem que o “nós” a que se refere seja sempre o mesmo. 

           Em outros casos, as conotações dos nomes atribuídos às etnias indígenas chegam a ser depreciativas. Kayapó, por exemplo, é uma designação genérica que foi dada a esses índios por povos, de língua Tupi, com os quais guerrearam até recentemente e quer dizer “semelhante a macaco”. Outros nomes foram dados por sertanistas do antigo SPI (Serviço de Proteção aos Índios) ou da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), muitas vezes logo após os primeiros contatos promovidos pelas chamadas “expedições de atração”. Neste contexto, sem entender a língua nativa, os equívocos são frequentes, e determinados povos acabam sendo conhecidos por nomes que lhes são atribuídos por razões absolutamente aleatórias.

           Na época dos primeiros contatos, na qual a comunicação com “etnias desconhecidas” era precária, alguns povos passaram a ser denominado pelo nome de algum dos seus indivíduos ou frações. Há ainda casos de nomes impostos em português, como, por exemplo, os Beiço-de-Pau (para se referir aos Tapayuna, do Mato Grosso) ou os Cinta-Larga, assim chamados por sertanistas da FUNAI simplesmente porque usavam largas cintas de entrecasca de árvore quando foram contatados no final da década de 1960, em Rondônia.

            Muitos povos reúnem, em seu cotidiano, modos de viver herdados de seus antepassados, além de produtos, instituições e relações sociais adquiridas após a intensificação do contato com os “brancos”. Nesse ponto, não diferem muito de “nós”, brasileiros não-índios, afinal vivemos em uma sociedade continuamente influenciada por outras tradições culturais. Por exemplo, as cadeias de fast-food espalhadas pelas cidades de nosso país são pequenas provas de que nossa língua e nossa cultura também sofrem influências de outras. 

           O contato com a nossa sociedade certamente trouxeram muitas mudanças no modo de viver dos povos indígenas. Em relação a esse assunto, é preciso ter em mente pelo menos dois pontos.

·         As culturas indígenas não são estáticas. Ao contrário, elas são, como qualquer outra cultura, dinâmicas. Assim transformam-se ao longo do tempo, mesmo sem uma influência estrangeira. Por outro lado, é inegável que as mudanças decorrentes do contato com nossa sociedade podem, muitas vezes, alcançar escalas preocupantes. Esse é o caso, por exemplo, de povos que perderam suas línguas maternas e, hoje, só falam o português.·   

      É preciso dizer que por trás das mudanças, cujo ritmo e natureza são diferentes em cada caso, há um aspecto fundamental: mesmo travando relações com não-índios, os povos indígenas mantêm suas identidades e se afirmam como grupos étnicos diferenciados, portadores de tradições próprias. E isso vale também para os povos que vivem em situações de contato mais intenso. 

            A identidade ética, isto é, a consciência de pertencer a uma determinada etnia, resulta de um complexo jogo entre o “tradicional”, e o “novo”, entre o “próprio” e o “estrangeiro”, que surge sempre quando diferentes populações estão em contato. É importante levar em conta todas essas considerações antes de dizer que alguém “já não é mais índio” porque usa roupas, vai à missa, assiste TV, opera computadores, joga futebol ou dirige um carro.

           Além da diversidade que existe entre os índios por causa de suas línguas, culturas, modos de viver e pensar distintos há outra que se refere a diferentes formas de contato que eles mantiveram e/ou mantém com os não-índios: se razoavelmente pacífico ou violento, se antigo ou recente, se direto com a população regional (fazendeiros, posseiros, madeireiros, garimpeiros, pescadores, etc.) ou mediado por alguma instituição, governamental ou não-governamental, laica ou religiosa. Muitos povos foram e são vítimas de violência na época de seus primeiros contatos e nos dias atuais com a população não-indígena.

            É o caso dos Rikbaktsa, que vivem no estado do Mato Grosso. Da década de 1950 até início de 1960, sofreram oposição armada de seringalistas da região, além de madeireiros, mineradores e fazendeiros, o que resultou na dizimação de 75% de sua população. Em contraste, outros povos guardam na memória uma imagem até mesmo amistosa dos primeiros contatos. Os Kadiwéu, por exemplo, recordam-se com insistência e orgulho da sua participação ao lado dos brasileiros na Guerra do Paraguai, marco importante na sua história de contato com a sociedade nacional.

 



           Muitas vezes, uma relação inicial entre índios e não-índios, marcada pelo enfrentamento hostil, pode dar lugar a relações razoavelmente pacíficas e até mesmo desejáveis. Atualmente, diversos povos indígenas têm desenvolvido parcerias com organizações de apoio da sociedade civil brasileira. Os vários povos que vivem no Parque Indígena do Xingu, por exemplo, contam com projetos na área da saúde, hoje encabeçados pela Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) (e antes pela Unifesp, antiga Escola Paulista de Medicina), de educação, de alternativas econômicas, de fiscalização e vigilância, promovidas pelo Instituto Socioambiental (ISA).

            São comuns os casos de convivência com missões católicas ou protestantes, como pode ser observado, respectivamente, entre os Makuxi e os Taurepang, ambos localizados na região do lavrado, no estado de Roraima. É importante notar também que a relação entre índios e missionários possui formas diversas em todo o Brasil, sobretudo no que diz respeito às propostas de transmissão dos valores cristãos.

           A maneira como cada povo se insere na sociedade brasileira é bastante variada. Há povos cujos membros trabalham no mercado regional e são assalariados, como os Guarani Kaiowá, envolvidos em atividades de corte de cana-de-açúcar pata as destilarias de álcool do estado do Mato Grosso do Sul. Há aqueles que vivem centros urbanos, como as famílias de Sateré-Mawé na periferia de Manaus e os Pankararu, migrantes do estado de Pernambuco e que hoje habitam a favela Real Parque na cidade de São Paulo.

            Um fato notável é o crescimento do número de indígenas no cenário político brasileiro. Somente em 2000, foram eleitos, entre vereadores, vice-prefeitos e um prefeito, 80 índios.

            No pólo oposto daqueles que participam intensamente de várias esferas da sociedade brasileira, estão àqueles grupos ou indivíduos recusam o contato com a população não-indígena. Dentre eles destacam-se grupos que habitam a Terra Indígena Vale do Javari.


            Sabe-se muito pouco sobre os chamados índios isolados – também conhecidos como povos em situação de isolamento voluntário, povos ocultos, povos não-contatados, entre outros. São assim chamados aqueles grupos com os quais a FUNAI não estabeleceu contato. As informações sobre eles são heterogêneas, transmitidas por outros índios ou por regionais, além de indigenistas e pesquisadores. 

          A FUNAI, instituição responsável pela política indigenista do Estado brasileiro, tem um órgão responsável para proteger a região onde são indicadas as referências a esses grupos sem contato: é a Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC), que confirmou a existência de 28 desses grupos. Em toda a América Latina, o Brasil é o único país a ter um órgão específico para desenvolver políticas de proteção aos isolados. A CGIIRC está organizada em doze Frentes de Proteção Etnoambiental (Juruena, Awa-Guajá, Cuminapanema, Vale do Javari, Envira, Guaporé, Madeira, Madeirinha, Purus, Médio Xingu, Uru-Eu-Wau-Wau e Yanomami), que atuam na Amazônia brasileira, em regiões onde houve confirmação da presença de índios isolados e também onde vivem povos de recente contato.

          De acordo com os dados do Instituto Socioambiental (ISA) e de seus colaboradores, há na Amazônia brasileira mais de 70 evidências de índios isolados, mas não se sabe ao certo quem são, onde estão, quantos são e que línguas falam. Entre esses grupos dos quais se tem evidências, apenas um, os Avá-Canoeiro, encontra-se fora da Amazônia Legal. Dos Avá-Canoeiro  fala-se que são quatro pessoas, em fuga permanente, evitando contato, pelo norte de Minas Gerais, Bahia e Goiás. Além desse pequeno grupo, outros indivíduos Avá-Canoeiro vivem na Terra Indígina homônima e mais algumas pessoas desse grupo e seus descendentes vivem no Parque Indígena do Araguaia. 

           O que se sabe é que a maior parte dessas referências encontra-se em Terras Indígenas já demarcadas ou com algum grau de reconhecimento pelos órgãos federais. Também há evidências de grupos isolados dentro de dois Parques Nacionais e de duas Florestas Nacionais (Flonas). No caso dos parques, os grupos estão protegidos da ocupação desordenada de seu habitat, já no caso das Flonas, que apesar de serem federais e protegidas, são áreas destinadas à exploração florestal por empresas, de forma que não há garantia de que os índios serão protegidos e terão seu futuro assegurado.

            As informações sobre esses povos são escassas. Por vezes, vestígios como tapiris (palhoças, ranchos), flechas e outros objetos encontrados nas áreas por onde passaram são fotografados. Os relatos verbais de existência desses grupos são geralmente fornecidos por outros índios e regionais mais próximos, que narram encontros fortuitos, ou que simplesmente reproduzem informações de terceiros.

            Um caso exemplifica bem a definição de grupos isolados, onde as informações dos vizinhos confirmam sua existência e a relação de contato que tiveram com eles, mostra que o isolamento é relativo: os Hi-Merimã,  que hoje vivem isolados, já foram estimados em 1.000 pessoas em 1943. Eram considerados um dos maiores grupos da região do rio Purus, no estado do Amazonas, mas voltaram ao isolamento. Eram conhecidos também como Marimã ou Merimã, segundo informação da antropóloga Luciene Pohl, em seu trabalho de identificação da Terra Indígena Hi-Merimã. Pohl coletou as informações sobre eles com seus vizinhos Jamamadi, cujas terras demarcadas são contínuas à terra dos isolados e cuja língua é da família Arawá.

            Os Jamamadi dizem que tiveram contato com eles no passado, mas houve problemas de entendimento entre as partes, o que resultou em conflito com mortes. Os Banawa, também da família linguística Arawá, dizem entender parcialmente a língua falada pelos Hi-Merimã e afirmam que mantiveram relações com eles, podendo descrever características do modo de ser desses índios que voltaram ao isolamento. Os índios Zuruahã, da mesma família linguística e seus vizinhos a oeste, relatam histórias de hostilidades entre eles.

            A partir desses relatos, pode-se perceber que a ideia de que há índios isolados desde a chegada dos portugueses ou sociedades mantidas à margem de todas as transformações ocorridas desde então, é enganadora. Os grupos considerados isolados travaram, muitas vezes, relações de longa data com segmentos da sociedade nacional, tendo posteriormente optado pelo isolamento. Os Apiaká do Matrinxã, por exemplo, tiveram contatos com a sociedade regional, sofreram muito e resolveram fugir e isolar-se de novos contatos. A mesma história é atribuída aos Katawixi. Assim, o isolamento representa, em muitos casos, uma opção do grupo, que pode estar pautada pelas suas relações com outros grupos, pela história das frentes de ocupação na região onde vivem e também pelos condicionantes geográficos que propiciam essa situação. A noção de isolados, portanto, diz respeito ao contato regular, principalmente com a FUNAI.

           O que tem ocorrido com alguma freqüência é a tentativa da FUNAI de realizar o contato com grupos que se encontram em situações de risco, porém muitos recusam essa aproximação.

            Um caso de opção pelo isolamento também pode ser observado na região do Tanaru, sul do estado de Rondônia. Trata-se não de uma sociedade, mas, mas de um único homem sobrevivente. Tudo leva a crer que o seu povo desapareceu devido à violência e à ganância dos pecuaristas que ocuparam a região. Desde 1996, a FUNAI vem tentando lhe oferecer assistência, mas todas as vezes que seu acampamento foi identificado ele o abandonava. Mostrou-se absolutamente avesso ao contato, embora aceitasse alguns presentes dos sertanistas, como panelas e facões.

            Depois de serem contatados, os povos indígenas ficavam sob proteção da FUNAI, que não dispunha, no entanto, de uma política especial voltada para eles. Assim, com freqüência, esses povos acabavam sofrendo com epidemias e invasões em terras, além dos inúmeros problemas decorrentes da intensificação do contato e da sedentarização.

            A partir da avaliação da situação de extrema fragilidade a que os grupos recém contatados estavam sujeitos, a então Coordenadoria Geral de Índios isolados (CGII) da FUNAI passou a dispensar assistência diferenciada aos Zo’é, no Pará; aos Kanoê e aos Akuntsu de Rondônia, contatados há mais de 10 anos; e um pequeno grupo Korubo, localizado no Vale do Javari (AM).

            Os Zo’é, grupo tupi-guarani localizado na bacia do Cuminapanema (PA), foram contatados pela FUNAI em 1989, mas já estabeleciam relações com missionários protestantes estado-unidenses desde 1982. Os Zo’é entraram para a história como um dos últimos povos “intactos” na Amazônia. Os contatos com os não indígenas foram largamente noticiados pela mídia, que, em 1989, divulgou as primeiras imagens deste povo tupi, que até então vivia em situação de isolamento. 

           Os primeiros contatos da FUNAI com os Kanoê também possibilitaram o encontro com outro povo, os Akuntsu. Em 1985 foi instituída oficialmente a frente de atração responsável pelo contato com povos desconhecidos que circulavam pela região de Corumbiara, no sudeste de Rondônia. Embora essas informações já fossem de conhecimento da FUNAI desde a década de 1970, relatos de 1984 reiteraram a presença de grupos isolados nas matas das reservas legais de fazendas na região, que vinham sendo desmatadas para a comercialização de madeira e a implementação de pecuária. Em 1986 foi desinterditada à área destinada aos contatos com estes grupos.

            Em 1995, a partir da análise de imagens de satélite, os indigenistas Marcelo dos Santos e Altair Algayer conseguiram identificar a área de ocupação Kanoê e entrar em contato com eles. Durante as primeiras conversas, os Kanoê informaram aos indigenistas que próximo dali havia outro grupo indígena que chamavam de Akuntsu. Em seguida, outra expedição alcançou as pequenas malocas dos Akuntsu, que somavam então sete pessoas.

           Os Korubo se tornaram famosos na mídia nacional e internacional quando uma parcela de sua população foi contatada, em 1996, por uma expedição promovida pela FUNAI, e coordenada pelo sertanista Sydney Possuelo. A expedição foi acompanhada por repórteres da revista National Geographic, que transmitiu o evento ao vivo e online para todo o mundo. Conhecidos como “índios caceteiros”, por não usarem arcos, os Korubo travam, há décadas, uma guerra contida com a população regional, apesar de tentativas mútuas de aproximação. Este pequeno grupo contatado contava em 2007 com 26 pessoas e separou-se do grupo original, que permanece isolado.

           Em julho de 2006, foi criada a Coordenadoria Geral de Índios Recém Contatados, subordinada à Diretoria de Assistência da FUNAI e coordenada pelo antropólogo Artur Nobre Mendes. Seu objetivo era a “proteção dos grupos e povos indígenas contatados no passado recente e que vivem em relativo estado de autonomia político-cultural e, ao mesmo tempo, sem o completo domínio das forças sociais dominantes que os circundam”. Compreendia-se, neste contexto, como recém-contatados, os grupos que estabeleceram contatos permanentes com a sociedade nacional após a criação da FUNAI, em 1967. Entre outros motivos que levaram à criação dessa coordenação, estava o fato de que os inúmeros contatos realizados na década de 1970 e meados de 1980 ocorreram em situações de extrema vulnerabilidade desses grupos, particularmente por causa da pressão das frentes de expansão econômica. Como não havia políticas específicas para essas populações, cujas realidades sociais eram bastante distintas, a vulnerabilidade continuou. Além disso, a participação de grupos recém contatados nos programas do governo e nas ações da FUNAI ficava comprometida frente a melhor articulação de outros povos.

            Esta Coordenadoria, entretanto, não foi implementada na época. Foi somente a partir de dezembro de 2009, com a reestruturação da FUNAI, que o órgão indigenista incluiu no campo de ação da CGII as populações de recente contato. Dessa forma, este órgão passou a ser chamado de Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC).

            Nos últimos anos, aumentou o número de populações que passam a reivindicar pública e oficialmente a condição de indígenas no Brasil. Trata-se de famílias que, miscigenadas e territorialmente espoliadas ao longo do tempo, reencontram, no presente, contextos políticos e históricos favoráveis à retomada de suas identidades coletivas indígenas.

            O processo não é exclusividade do Brasil; casos semelhantes são conhecidos em outros Estados nacionais contemporâneos como, por exemplo, na Bolívia e na Índia.

           Em nosso país, esse fenômeno surge de modo mais evidente nas últimas décadas, quando as histórias regionais passam a ser reestudadas; os direitos indígenas, mais reconhecidos e respeitados; e as organizações de apoio aos índios se consolidam de forma mais efetiva e passam a ser agentes importantes da causa indígena.

            Embora, o governo atual do presidente Jair Bolsonaro tenha apresentado vários retrocessos na causa indígena no país, onde ocorre aumento de garimpos ilegais em Territórios Indígenas e desmatamento em reservas naturais, assim como extração ilegal de madeira, levando a vários problemas de ordem ambiental que acarretaram perigo a sobrevivência de várias nações indígenas no Brasil.




           

Fontes:

Toda Matéria. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/estado-natureza/amp/. Acesso em: 07 de maio 2022.

Povos Indígenas no Brasil – ISA. Disponível em:  https://pib.socioambiental.org. Acesso em 05 de maio 2022. E também em: https://pib.socioambiental.org/pt/Quem_s%C3%A3o#:~:text=Atualmente%20encontramos%20no%20territ%C3%B3rio%20brasileiro,da%20popula%C3%A7%C3%A3o%20total%20do%20pa%C3%ADs. Acesso em: 07 de maio 2022.

ISA – Instituto Socioambiental – atua desde 1994 ao lado de comunidades indígenas, quilombolas e extrativistas, parceiros históricos para desenvolver soluções que protejam seus territórios, fortaleçam sua cultura e saberes tradicionais, elevem seu perfil político e desenvolvam economias sustentáveis.

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Olá! O Blog do Maffei agradece seu interesse.

Veja também:

O NOME DA ROSA

O Nome da Rosa de Umberto Eco: Análise da Obra O Nome da Rosa  é um livro de 1980 escrito pelo italiano Umberto Eco. Em 1986 foi lançado o...

Não deixem de visitar, Blog do Maffei recomenda: