A
Morte
O Grande Desengano. O laço formado com
inconstância pela criação é desfeito pela morte, sendo a penosa aniquilação o principal
erro do nosso ser; o grande desengano.
A Filosofia; Filha da Morte. Morte,
gênio inspirador, a musa da filosofia. Sem a qual dificilmente se teria filosofado.
A Noite Eterna. Quão longa é a noite da
eternidade comparada com o curto sonho da vida.
Não Sobreviver; Persistir. A
indestrutibilidade que a duração infinita da matéria oferece, poderia consolar aquele
que não pode conceber outra imortalidade.
“O
quê?” – dir-se-á – “a persistência de uma matéria bruta, de um pouco de pó,
seria a continuidade do nosso ser?”
Sim,
um pouco de pó. Conhecem o que é esse pó? Aprendam a conhecê-lo antes de o
desprezar. Essa matéria, pó e cinza, dentro em pouco dissolvida na água, brilhará
no esplendor dos metais, projetará faíscas elétricas, manifestará o seu poder
magnético, converter-se-á em animal e em planta, e no mistério de sua essência
criará essa vida, cuja perda chora amargamente nosso espírito acanhado. Não
será nada, então, persistir na indestrutível matéria?
Dogma da Imortalidade. A
natureza nos ensina a doutrina da imortalidade, quando se observa, no Outono, o
pequeno mundo dos insetos, e se nota que um prepara o leito para o longo sono
do Inverno, que outro prepara o casulo onde se transforma em crisálida, para
renascer na Primavera, e que, enfim, esses insetos se contentam, quando
próximos da morte, em colocar os ovos em lugar favorável para renascerem um dia
rejuvenescidos, num novo ser? A natureza nos expõe a esses exemplos com o
intuito de demonstrar que não há diferença fundamental entre a morte e o sono;
ambos, perigo algum constituem à existência. O cuidado com que o inseto prepara
a célula, o buraco, o ninho e o alimento para a larva, que há de nascer na
Primavera, e morre, uma vez isso feito, – assemelha-se muito ao cuidado com que
o homem, à noite, arruma a roupa, prepara o almoço para o dia seguinte, indo
depois dormir sossegadamente. E isto não sucederia se o inseto que morre no
Outono não fosse exatamente igual ao que deve nascer na Primavera, assim como o
homem que se deita, é o mesmo que se levanta no dia seguinte.
A Vida e a Morte. Nascimento e morte
são condições da vida, e se equilibram, formando os dois polos, as duas extremidades
da existência, e ao seu redor giram todas as suas manifestações. Um símbolo da
mitologia hindu, a mais sábia de todas, dá como atributo a Shiva, o Deus da
morte e da destruição, um colar de caveiras e o “lingam”, órgão e símbolo da
geração, pois o amor é a compensação da morte, e um ao outro se neutralizam.
Para
tornar mais evidente o contraste da morte do homem com a vida imortal da
natureza, os gregos e os romanos adornavam os seus sarcófagos com baixos
relevos figurando danças, caças, lutas entre animais, bacanais e, numa palavra,
todos os espetáculos de uma vida mais forte, mais agradável e alegre, e até
mesmo sátiros unidos a cabras.
Necessidade da Morte. A individualidade do
homem tem tão pouco valor que nada perde com a morte; há alguma importância nos
característicos gerais da humanidade, que são indestrutíveis. Se concedessem ao
homem uma vida eterna, sentiria tanta repugnância por ela que acabaria
desejando a morte, farto da imutabilidade de seu caráter e de seu ilimitado
entendimento. Se exigíssemos a imortalidade perpetuaríamos um erro porque a
individualidade não deveria existir, e o verdadeiro fim da vida é livrar-nos
dela. Se não houvesse penas e trabalhos, acabaria o homem por enfastiar-se, e
voltaria a sofrer as dores do mundo em tudo o que se encontrasse ao seu
alcance. Num mundo melhor o homem não se sentiria feliz, o essencial seria
fazer com que ele seja o que não é, isto é, transformá-lo completamente. A
morte realiza a principal condição; deixar de ser o que é; tendo isto em conta,
concebe-se lhe a necessidade moral.
Ser
colocado noutro mundo, e mudar inteiramente de ser, é no fundo uma só e mesma
coisa. Seria conveniente que a morte, que destruiu uma consciência individual,
a reanimasse de novo dando-lhe uma vida eterna? Qual o conteúdo, quase
invariável desta consciência? Uma torrente de ideias e preocupações mesquinhas,
acanhadas, terrenas. Melhor seria deixá-la repousar eternamente.
Supremo Consolo. Contemplando a expressão de
suave serenidade refletido no rosto da maioria dos mortos, parece que o fim de
toda a atividade da vida, seja um consolo para a força que a mantém.
Indiferença da Natureza perante a Morte. A
vida e a morte, o nascer e o morrer, é o maior jogo de dados que conhecemos;
ansiosos, interessados, agitados assistimos a cada partida, porque a nossos
olhos tudo se resume nisso. A natureza, pelo contrário, que é sempre sincera e
nunca mente, contempla a partida com ar indiferente, não se preocupa com a
morte ou a vida do indivíduo, entregando a vida do animal e também a do homem a
todos os acasos, não fazendo o mínimo esforço para os salvar. Esmagamos sem
querer o inseto que se acha em nosso caminho; a lesma necessita de todo meio
para se defender, não pode fugir, esconder-se, nem enganar, está condenada a
ser presa de todos os seus inimigos; o peixe saltita tranquilamente na rede
ainda aberta; o sapo devido a sua moleza não pode salvar-se; o pássaro não vê o
falcão voar sobre sua cabeça, nem a ovelha vê o lobo que a espreita oculto na
mata. Todos esses animais inofensivos e fracos, vivem no meio de perigos
ignorados, dos quais podem ser vítimas a todo momento.
A
natureza exprime com esse procedimento, no seu estilo lacônico, oracular, que
lhe é indiferente a destruição de seus seres, não podendo ser por eles prejudicada,
e que em casos semelhantes tão indiferente é o efeito como a causa. Por isso
abandona sem defesa esses organismos, obras de uma arte eterna, à vontade do
mais forte, aos caprichos da sorte, à crueldade da criança, ao mau humor de um
imbecil.
A
natureza, mãe soberana e universal de todo o criado, sabe que quando seus
filhos sucumbem, voltam ao seu seio, onde os conserva ocultos, expondo-os a mil
perigos sem temor algum; a sua morte é para ela um divertimento, um jogo. A
natureza é indiferente no que se relaciona ao homem ou ao animal; não se deixa
impressionar conosco, durante a vida ou na morte. Tampouco devíamos nos comover
porque fazemos parte dela.
A Folha Seca Interroga o Destino. Se
dirigíssemos o pensamento para um longínquo futuro e procurássemos representar-nos
às futuras gerações com os milhões de homens distintos e diferentes de nós
pelos usos e costumes, perguntaríamos a nós mesmos: “De onde vieram? Onde estão
agora? Onde se achará o profundo seio do nada, produtor do mundo, que os
oculta?” Mas a esta pergunta, devíamos sorrir, por onde se poderá achar senão
onde toda a realidade é, e será, no presente em tudo o que este representa e
contém, em ti, insensato que interrogas, pois ignorando a tua própria essência,
assemelhas-te a uma folha seca que oscila no ramo de uma árvore, e, no Outono,
pensando na sua próxima queda, lamenta sua sorte, sem querer consolar-se com a
ideia dos tenros brotos que na Primavera virão adornar a árvore. E a folha seca
se queixa: “Já não sou eu, serão outras folhas”. Oh! folha insensata onde
queres tu ir? De onde poderiam vir as outras folhas? Onde está esse nada em que
temes sucumbir? Reconhece, pois, o teu próprio ser oculto na força íntima,
sempre ativa da árvore, nessa energia que não acarreta a morte nem o nascimento
de todas as suas gerações de folhas. Não sucede com as gerações de homens o
mesmo que com as folhas de uma árvore?