A
Dor
A Vida é Dor. Quem deseja, sofre; quem
vive, deseja; a vida é dor. Quanto mais elevado é o espírito do homem, mais
sofre.
A
vida não é mais do que uma luta pela existência com a certeza de sermos
vencidos. A vida é uma incessante e cruel caçada onde, às vezes como caçadores,
outras como caça, disputamos em horrível carnificina os restos da presa.
A
vida é uma história da dor, que se resume assim: sem motivo queremos sofrer e
lutar sempre, morrer logo, e assim consecutivamente durante séculos dos
séculos, até que a Terra se desfaça.
Deus, Criador. Se é certo que um Deus fez
este mundo, não queria eu ser esse Deus: as dores do mundo dilacerariam meu
coração. Se imaginássemos um demônio criador, ter-se-ia o direito de lhe
censurar, mostrando-lhe a sua obra: “Como te atreves a perturbar o sagrado
repouso do nada, para criares este mundo de angústia e de dores?”
Nosso Inferno. O inferno de nossa vida
supera o de Dante no ponto de que cada um de nós é o demônio do seu vizinho. Há
também um arquidemônio, a quem os outros obedecem: é o conquistador, que dispõe
os homens uns em frente dos outros e lhes grita: “Vosso destino é sofrer e
morrer; portanto, matem-se mutuamente”. E assim procedem os homens.
O Melhor dos Mundos. Se mostrássemos aos
homens as horríveis dores e os atrozes tormentos a que está constantemente
exposta sua existência, tremeriam de espanto; e se ao mais convencido otimista
fizéssemos visitar os hospitais, os lazaretos, as salas de tortura dos
cirurgiões, as prisões, os campos de batalha, os tribunais de justiça, os
sombrios refúgios da miséria, e se por último, o fizéssemos contemplar a torre
de Ugolino(1), acabaria por
reconhecer de que modo é este “o melhor dos mundos possíveis”.
Nosso Mundo; Modelo de Horrores. Se
considerarmos a dificuldade que teve Dante em descobrir o céu e suas alegrias,
logo se verá que classe de mundo é o nosso. Por quê? Porque o nosso mundo nada
apresenta de análogo. E para descrever o Paraíso viu-se o poeta obrigado a dar
parte das notícias que lhe deram os seus antepassados, sua Beatriz e vários
santos. Sem dúvida, Dante descobriu muito bem o Inferno. Por quê? Porque achou
o assunto e o modelo na realidade do nosso mundo.
A Tragicomédia de Nossa Vida. Vista
e examinada minuciosamente de alto e de longe, a vida de cada homem tem o
aspecto de uma comédia; em sua total consideração ou em seus aspectos mais
dignos de apreço, se apresentará como uma contemplação trágica. O afã e o
trabalho de cada dia, os desejos e receios cotidianos, as desgraças de cada
hora, os acasos da sorte sempre disposta a nos enganar são outras tantas cenas
da comédia. As aspirações iludidas, as ilusões desfeitas, os esforços baldados,
os erros que completam nossa vida, as dores que se acumulam até terminar na
morte, o último ato, eis a tragédia. Parece que o destino quis juntar o escárnio
ao desespero, e, fazendo de nossa vida uma tragédia, não nos permite conservar
a dignidade de uma personagem trágica. Por isso é que em todos os atos da vida
representamos o lamentável papel de cômicos.
Da Dor ao Aborrecimento. A
dor e o aborrecimento são os dois últimos elementos entre os quais oscila a
vida do homem. Os homens exprimiram esta oscilação de modo curioso; depois de
haverem feito do inferno o lugar de todos os tormentos e dores, que deixaram
para o céu? Justamente o aborrecimento.
Rio Abaixo. A vida é um mar cheio de
escolhos e turbilhões que o homem evita à força de prudência e cuidados, sem
embora desconhecer que, à medida que avança sem poder retardar a marcha, corre
para o definitivo e inevitável naufrágio, a morte, fim fatal de sua acidentada
navegação, é parte ele muito mais perigoso que todos os turbilhões e escolhos
de que conseguiu escapar.
Disfarces da Dor. Nossos esforços para
banir a dor de nossa vida não conseguem outro resultado senão o de fazê-la
mudar de forma. Em sua origem tomam o aspecto da necessidade, cuidado, para
atender as coisas materiais da vida, e quando, após um trabalho incessante e
penoso, conseguimos afastar a horrível máscara da dor neste determinado
aspecto, adquire outros mil disfarces, segundo a idade e as circunstâncias: o
instinto sexual, o amor apaixonado, a inveja, o rancor, os ciúmes, a ambição, a
avareza, o temor, a enfermidade, etc.
Toma
o aspecto triste e desolado do tédio, da sociedade, quando não encontra outro
modo de se apresentar. E se com novas armas conseguimos afastá-la novamente,
recuperará sua antiga máscara, e a dança recomeça.
Condenados à Morte. Na primeira mocidade,
colocamo-nos perante o destino, como as crianças, que, em frente ao pano de um
teatro, impacientes e alegres, esperam as maravilhas que virão surgir em cena.
É uma felicidade não podermos saber nada de antemão.
Para
quem sabe o que realmente vai se passar, as crianças são inocentes condenados
não à morte, mas à vida, e que desconhecem ainda a sua sentença.
Todos Desterrados. Se não fosse a dor,
poderíamos dizer que a nossa existência no mundo não teria nenhuma razão de
ser. É um absurdo pensar que a dor, que nasce da vida e enche o mundo, seja
apenas um acidente, e não o próprio fim. Cada desgraça pessoal apresenta-se com
uma exceção, mas, como somos todos desgraçados, a desgraça geral é a regra.
Vivemos Combatendo. Na desgraça, pensar
em outros que são mais desgraçados, é o nosso maior consolo: é este o remédio
eficaz ao alcance de todos. Porém, como os carneiros, que saltam no prado,
enquanto o carniceiro faz a sua escolha no meio do rebanho, assim, em nossas
horas felizes, não sabemos que desastre nos prepara o destino, justamente nesse
momento: enfermidade, ruína, loucura, perseguições, etc. Tudo que defendemos,
resiste-nos, tudo tem uma vontade hostil que é preciso vencer. A história nos
diz que a vida dos povos é uma sucessão de guerras e revoltas; os anos de paz
não passam de curtos entreatos. O mesmo acontece com a vida do homem, em
constante luta contra as penas ou o aborrecimento, males abstratos, e contra
seus semelhantes. Em todas, as partes e ocasiões temos que travar combate com
um adversário. A vida é uma guerra sem quartel, e a morte nos encontra com as
armas na mão.
O Tempo. Mais um Tormento. A
rapidez do tempo, que se conserva atrás de nós como um vigia dos forçados, é
mais um tormento da existência, que nos faz viver apressadamente sem sossego e
sem deixar-nos respirar. São poupados somente aqueles que o tempo condenou ao
aborrecimento.
Necessidade da Dor. Todos nós
necessitamos sofrer certo número de preocupações, de penas e misérias, da mesma
maneira que um barco tem necessidade de lastro para conservar seu equilíbrio.
Se assim não fosse, se súbito nos libertássemos do peso da dor e das
contrariedades, o orgulho do homem o faria em bocados ou pelo menos ele seria
levado às maiores irregularidades e até à loucura furiosa, do mesmo modo que o
nosso corpo rebentaria se repentinamente deixasse de sentir a pressão
atmosférica. O quinhão de quase todos os homens durante sua vida resume-se em
pesares, trabalho e miséria, porém, se todas as aspirações humanas se realizassem,
como que se preencheria o tempo? O que preencheria sua vida? Se os homens
vivessem no país das fadas, onde nada exigisse esforço e onde as perdizes
voassem já assadas e recheadas ao alcance da mão, num país, onde cada um pudesse
obter a sua amada sem dificuldade alguma, eles morreriam de tédio ou se enforcariam,
outros despedaçar-se-iam entre si, causando-se maiores males que os impostos
pela natureza. E isto demonstra que para nós não há melhor cenário que aquele
que ocupamos, nem melhor existência do que a atual. Se pensamos (e só é
possível ter-se uma ideia aproximada) na dor, nos tormentos de todas as
espécies que o sol ilumina no seu curso, sentimo-nos propensos a desejar que a
sua luz perca o poder criador da vida, como acontece com a Lua, e que a
superfície do nosso planeta se faça tão gelada e estéril como a do astro da noite.
A Grande Mentira da Vida. Nossa
vida é um episódio que perturba, sem nenhuma utilidade, a serenidade do nada.
Mesmo aquele que não considera a existência como uma carga, à medida que passam
os anos tem a consciência clara do que a vida é, em todos os seus aspectos, uma
imensa mistificação, para não dizer uma formidável zombaria.
O Espectador se Aborrece. O
homem que sobrevive a duas ou três gerações pode ser comparado ao espectador de
um circo, que assiste às mesmas farsas duas ou três vezes seguidas. Como a
farsa estava calculada para uma única representação sua repetição não causa
efeito no ânimo do espectador, o qual se aborrece por estarem dissipadas a
ilusão e a novidade.
Uma Bela Expressão. A vida é uma carga
enfadonha e aborrecida, uma tarefa que devemos desempenhar com tanto trabalho,
que involuntariamente pensamos no descanso: e neste sentido a palavra defunctus é uma bela expressão.
Vítimas e Algozes. Povoado por almas
torturadas e por diabos que torturam, o mundo é um imenso inferno.
A Filosofia não é o Catecismo. Ainda
ouvirei dizer que a minha filosofia entristece tudo, isto porque digo a verdade
àqueles que só gostariam que eu lhes dissesse: “Deus, Nosso Senhor fez tudo
muito bem”. Ide à igreja, e deixai os filósofos em paz, ou, pelo menos, não
lhes exijam que ajustem as suas doutrinas ao vosso catecismo. Recorrei aos
filosofastros e encomendai-lhes teorias ao vosso gosto.
Não há nada que dê mais
prazer ou que seja mais fácil do que perturbar o otimismo dos que ensinam
filosofia.
A Dor de Viver. Se o ato da geração fosse
somente obra de razão e reflexão, em vez de ser uma necessidade ou uma
voluptuosidade, subsistiria a espécie humana? Não sentiríamos piedade pela
geração futura, para lhe poupar a dor de viver, ou, ao menos, não hesitaríamos
em impor-lhe a sangue frio tão pesada carga?
Inveja e Compaixão. Não há uma só pessoa
que seja verdadeiramente digna de inveja; e quantas são dignas de compaixão.
Pranto, Dor e Aborrecimento. Nossa
razão se obscurece ao considerarmos que as inúmeras estrelas fixas, que brilham
no céu, não têm outro fim senão o de iluminar mundos onde reinam o pranto, a
dor, e onde, no melhor dos casos, só vinga o aborrecimento; pelo menos a julgar
pela amostra que conhecemos.
O Mundo; Lugar de Expiação. Brama
criou o mundo por uma espécie de pecado ou desvario, e permanece nele para
expiar sua falta. – Muito bem! – Segundo o budismo, uma perturbação
inexplicável criou o mundo, produzindo-se depois um longo repouso na beatitude
serena, chamada Nirvana, que será conquistada pela penitência. Perfeitamente.
Para os gregos o mundo e os deuses eram a obra de uma necessidade insondável, explicação
admissível, porque nos satisfaz provisoriamente. Ormuzd combate com Ariman:
isto podemos admitir. Mas um Deus como esse Jeová, que animi causa, por seu
bel-prazer, criou este mundo de lágrimas e dores, e que ainda se alegra e se
aplaude de o haver criado, achando-o bom, isso já é demasiado forte. Sob este ponto
de vista, podemos considerar a doutrina dos judeus como a última entre todas as
que professam os povos civilizados, sobretudo, sendo que tomemos em
consideração de ser ela a única que não possui qualquer vestígio de imortalidade.
Ainda que a teoria de Leibnitz fosse verdadeira, embora se admitisse que entre
os mundos possíveis este é o melhor, essa demonstração não nos daria nenhuma
teodiceia, porque o Criador não se limitou a criar o mundo, mas também a
possibilidade de sua criação: por isso deveria ter criado um mundo melhor. A dor
que enche o mundo protesta irada contra a hipótese de uma obra perfeita devida
a um ser infinitamente bom e sábio, e também todo poderoso. E, por outra parte,
é bem evidente a notória imperfeição, a burlesca caricatura que é o homem, obra
acabada da criação. Não é possível explicar essa dissonância. Quando consideramos
o mundo como obra de nossa própria culpa, e, portanto, como alguma coisa que
não pode ser melhor, as dores e miséria da humanidade são provas em apoio desta
tese. Se o mundo é obra de um criador, as dores voltam-se contra ele dando
lugar a cruéis sarcasmos; mas se é obra nossa, a acusação é contra o nosso ser
e a nossa vontade. Isto nos faz pensar que viemos ao mundo já viciados, como os
filhos de pais gastos pelos desregramentos, e que se a nossa existência é tão
miserável, e tem por desfecho a morte, é porque assim merecemos, para expiar
nossa culpa.
Generalizando,
nada é mais certo: a culpa do mundo é que causa os sofrimentos, e entendemos
esta relação no sentido metafórico, e não no físico e empírico. Por isso, a
história do pecado original reconcilia-me com o Antigo Testamento; para mim é a
única verdade metafísica que o livro contém – expressa em forma alegórica. A
nada se assemelha tanto nosso destino como à consequência de uma falta, de um
desejo culpado. Para ter orientação na vida, e considerar a vida em seu
verdadeiro aspecto, basta habituarmo-nos ao pensamento de que este mundo é um
vale de lágrimas, em lugar de penitência; a penal colony, como a definiram os
mais antigos filósofos, e alguns padres da Igreja. Não é mister que eu diga o
que vale a sociedade de nossos semelhantes; aquele estão conscientes que
mereciam outra melhor, assim como se sabe que não é a menor pena do presidiário
a sociedade em que ele se encontra.
Um
espírito elevado, uma alma delicada, um gênio pode sentir a mesma necessidade
de isolamento que um nobre prisioneiro que se encontra na cadeia rodeado de
criminosos vulgares. Se sempre nos lembrássemos de que viemos ao mundo para
expiar uma culpa, acolheríamos sem surpresa e sem indignação as imperfeições de
nossos semelhantes, os tormentos que aqui sofremos, cuja miserável constituição
intelectual e moral se revela até no rosto. A certeza de que o mundo e o homem
não podem mudar nos encheria de dó pelo próximo. Com efeito, que podemos
esperar de tais seres? Penso, às vezes, que a melhor maneira dos homens se
cumprimentarem em vez de ser “Cavalheiro, Senhor, Sir”, poderiam ser,
“companheiro de sofrimentos, soci malorum, my fellow-sufferer”… Por mais irritante
que pareça esta expressão, tem mais fundamento que as usuais, e recorda-nos a
paciência, indulgência e amor ao próximo, e, usada por todos, beneficiaria a
cada um.
A Dor é a Única Positiva. Do
mesmo modo que o rio corre manso e sereno, enquanto não encontra obstáculos que
se oponham à sua marcha, assim corre a vida do homem quando nada se lhe opõe à
vontade. Vivemos inconscientes e desatentos: nossa atenção desperta no mesmo
instante em que nossa vontade encontra um obstáculo e choca-se contra ele.
Sentimos ato contínuo tudo o que se ergue contra a nossa vontade, tudo o que a
contraria ou lhe resiste: ou o que é mesmo, tudo o que nos é penoso e
desagradável. No entanto, não prestamos
atenção à saúde geral do nosso corpo, mas percebemos ligeiramente aonde o
sapato nos molesta; não pensamos nos negócios e só nos importamos com uma
ninharia que nos incomoda. Isto quer dizer que o bem-estar e a felicidade são
valores negativos, e só a dor é positiva. É um absurdo acreditar o contrário;
que o mal é negativo. Ele é positivo, porque se faz sentir. Toda a felicidade,
todo o bem é negativo, e toda a satisfação também o é, porque suprime um desejo
ou termina um pesar. Acrescentamos a isto que, em geral, nunca sentimos uma
alegria maior que a que sonhávamos, e que a dor sempre a excede. Se quereis
certeza das diferenças entre o prazer e a dor, comparem a impressão do animal
que devora outro, com a impressão do devorado.
Bolhas de Sabão. O homem só vive no presente,
que se converte no passado, e afunda-se na morte. Exceto as consequências que
podem influir no presente, e que são filhas de sua vontade, ou de seus atos, a
sua vida passada já não existe. Devia portanto ser-lhe indiferente que esse
passado fosse de prazeres ou tristezas. O presente foge-lhes das mãos,
transformando-se no passado. O futuro é incerto. Fisicamente, o andar não é
mais do que uma queda evitada a cada instante; da mesma maneira a existência é
a morte suspensa, adiada, e a atividade de nosso espírito não é mais que uma
luta constante contra o tédio. É pois fatal que a morte alcance a vitória. Por
haver nascido lhe pertencemos, e durante nossa vida não faz senão brincar com a
presa antes de a devorar. E assim como quem faz bolhas de sabão, e apesar da
segurança de que acabará por rebentar, se entretém em fazê-la aumentar de
volume, assim seguimos o curso de nossa existência, prodigalizando-lhe cuidados
e atenções.
A Felicidade Não Pode Viver no Presente. A
vida é uma constante mentira, quer nas coisas pequenas como nas grandes. Quando
nos faz uma promessa, não a cumpre, a não ser para mostrar-nos que era pouco
desejável o nosso desejo. Da mesma maneira nos engana a esperança quando não se
realiza o que esperávamos. E se a vida cumpre o que nos prometeu, é só para nos
tornar a tirar. A beleza do paraíso, que à distância admiramos, desaparece logo
que nos deixamos seduzir. A felicidade está no futuro, ou no passado; o
presente é uma pequena nuvem escura que o vento impele sobre a planície cheia
de sol. Diante e atrás dela, tudo é luminoso; só a nuvem é que projeta uma
sombra.
A Vida na Paz e na Guerra, e Sua Finalidade. A
vida nunca se apresenta como um mimo que nos é dado gozar, mas sim como uma
tarefa que tem de se cumprir à força de trabalho; disto nasce e toma origem uma
concorrência sem tréguas, uma luta sem fim, uma miséria geral, uma agitação em
que tomam parte todas as forças do espírito e do corpo. Milhões de homens,
reunidos em nações, trabalham para o bem público, trabalhando assim cada um em
seu próprio interesse, porém, as vítimas deste trabalho morrem aos milhares. Às
vezes, por preconceitos absurdos, outras, por uma política sutil, as nações se
aniquilam numa guerra. É preciso que o sangue do povo corra em abundância para
expiar a culpa de alguns, ou para realizar os caprichos de outros. Enquanto
reina a paz no mundo, a indústria e o comércio prosperam, as invenções se
multiplicam, os navios sulcam os mares, transportando para toda parte produtos
do mundo, as ondas tragam milhares de homens. O tumulto é imenso, enquanto uns
se agitam e movem, outros meditam. Mas qual é a suprema finalidade de tantos
esforços? Manter, no caso mais favorável, a vida de seres efêmeros em uma
miséria suportável, e uma ausência relativa de dor que o tédio aceita
constantemente, e ademais a reprodução desses seres, e a renovação de seus
esforços.
Indefesa do Homem. De todos os seres, o
homem é o mais necessitado: só tem vontades e desejos, um conjunto de centenas
de necessidades. Abandonando a si próprio, vive na terra sem segurança nenhuma
a não ser sua miséria. A luta pela vida, cada dia renovada, a necessidade que o
constrange, e as imperiosas exigências materiais, preenchem a sua existência.
Ao mesmo tempo, outro instinto o atormenta; o de perpetuar a sua raça.
Ameaçado
por todos os lados pelos perigos que o rodeiam, usa de sua prudência sempre
vigilante para poder escapar. Com passo inquieto, lançando em volta olhares
angustiosos, segue o seu caminho em luta constante com os casos e com seus
inúmeros inimigos. O homem não se sente seguro entre os da sua raça e nem nos
maislongínquos desertos. Qualibus in tenebris vitae, quantisque periclis
degitur hocc’aevi, quodcunque est! Lucr. 11,15.
Trabalhar ou Aborrecer-se. A
necessidade imperiosa do homem é assegurar a existência, e feito isto, já sabe o
que fazer. Portanto, depois disso, o homem se esforça para aliviar o peso da
vida, torná-la agradável e menos sensível: “matar o tempo”, isto é, fugir ao
aborrecimento. Livres da preocupação de assegurar a existência, e livres seus
ombros de todo fardo moral ou material, eles mesmos constituem sua própria
carga, e sentem-se felizes porque viveram uma hora desapercebida, embora isto
significa que sua vida a qual se esforçam com tanto zelo para prolongá-la,
ficou encurtada pelo mesmo espaço de tempo. O aborrecimento merece tê-lo em conta;
ele se reflete na fisionomia. O aborrecimento é a origem do instinto social,
porque faz com que os homens, que pouco se amam, se procurem e se relacionem. O
Estado considerado como uma calamidade pública, e por prudência toma medidas
para o combater. O aborrecimento como o seu extremo oposto, a fome, pode
impelir o homem aos maiores desvarios; o povo precisa panem et circenses.
Fundado
na solidão e na inatividade, o rude sistema penitenciário de Filadélfia faz do
aborrecimento um instrumento de suplício tão terrível, que mais de um condenado
tem-se suicidado para fugir a ele. A miséria é sofrimento pungente do povo; o
desgosto é para os favorecidos. Na vida civil, o domingo significa o tédio, e
os seis dias, o desgosto. A Felicidade
é um Sonho. Sentimos a dor, mas não a ausência da dor; sentimos a
inquietação mas não a ausência; o temor, mas não a tranquilidade. Sentimos o
desejo e a aspiração, como sentimos a sede e a fome; mas, apenas satisfeitos,
se acabam, como o bocado que, uma vez engolido, já não existe para o nosso
paladar.
Enquanto
possuamos os três maiores bens da vida, saúde, mocidade e liberdade, não temos
consciência deles, e só com a perda deles é que os apreciamos, porque são bens
negativos. Somente os dias de tristeza é que nos fazem recordar as horas
felizes da vida passada. À medida que os prazeres aumentam, nossa sensibilidade
diminui; o hábito já não é um prazer. As horas passam lentamente quando estamos
tristes; correm rapidamente quando são agradáveis; porque a dor é positiva e
faz sentir sua presença. O aborrecimento nos dá a noção do tempo e a distração
nos faz esquecer. Isto prova que a nossa existência é mais feliz quando menos a
sentimos: de onde se deduz que mais feliz seríamos se nos livrássemos dela. Uma
grande alegria, assim não a julgaríamos se ela não viesse atrás de uma grande
dor. Não podemos atingir um estado de alegria serena e duradoura. Esta é a
razão porque os poetas são obrigados a rodear seus protagonistas de tristes ou
perigosas circunstâncias, para no fim os livrar delas. No drama e na poesia
épica, o herói sofre mil torturas: nos romances os heróis lutam pondo em relevo
os tormentos do coração humano. “A felicidade não passa de um sonho – dizia
Voltaire, tão favorecido pelo destino? – a única realidade é a dor”. E
acrescenta: “Há oitenta anos que a experimento e nada faço senão resignar-me e
dizer a mim mesmo que as moscas nasceram para serem comidas pelas aranhas, e os
homens para serem devorados pelos desgostos”.
O Eterno Estribilho. Vista exteriormente
assombra a insignificância da vida da maioria dos homens, vista interiormente é
sinistra e lúgubre. Formada por inúmeras dores e aspirações impossíveis, o
homem passa sonhando pela meninice, mocidade, virilidade e velhice, rodeado de
ideias banais. Os homens assemelham-se a relógios que não sabem porque andam:
cada vez que um novo ser nasce, dá-se corda no relógio da vida humana para
seguir repetindo o eterno e gasto estribilho de uma caixa de música, frase por
frase, compasso por compasso, com pequenas variações.
Joguetes da Natureza. O homem, cada um dos
homens, é um sonho a mais, um sonho fugaz criado pela tenaz e constante vontade
de viver, imagem efêmera que o espírito infinito da natureza desenha na página
do tempo e do espaço; impressa nela alguns instantes logo se desfaz para dar
lugar a muitas outras. O mais triste, o ponto que nos deve fazer pensar
profundamente, é que a vontade de viver há de pagar cada uma dessas imagens efêmeras
e caprichosas com o preço de dores profundas e inúmeras, e da morte por longos
anos. Eis porque nos tornamos repentinamente sérios perante um cadáver.
O Teatro e os Artistas. O
mundo é um vasto campo de batalha onde os seres somente devorando-se uns aos outros
conseguem conservar e defender a vida; onde todo animal carnívoro é o túmulo
vivo de tantos outros; onde o viver significa sofrer longos tormentos; onde a
capacidade para a dor aumenta na proporção da inteligência, e atinge, portanto,
no homem o mais elevado grau. Os otimistas quiseram adaptar o mundo ao seu sistema,
e apresentá-lo a prior como o melhor dos mundos possíveis. O absurdo é
evidente. Dizem-me para abrir os olhos e contemplar a beleza do céu iluminado
pelo sol, as montanhas, os vales, as torrentes, as plantas, os animais, que sei
eu! Acaso será o mundo uma lanterna mágica? A contemplação é bela, confesso,
mas aí representar, é coisa completamente diferente. Após o otimista surge o
homem que nos fala das causas finais, e elogia as sábias leis que preservam os
astros de se chocarem no seu percurso; que evitam o mar e a terra de se confundirem,
e os mantém separados; que faz com que nem o frio nem o calor sejam eternos, e
que, pela inclinação da eclíptica, não permite a primavera, ser eterna podendo
assim amadurecer os frutos, etc. Mas tudo isso não são mais que simples
“conditiones sine quibus non”. Porque se os planetas devem ter uma existência mais
longa, embora seja o período que demora em chegar a eles a luz de uma estrela
longínqua, e se não desaparecem após o nascimento, era preciso que as coisas
estivessem mal arquitetadas, para que a base fundamental ameaçasse ruína.
Chegamos aos resultados desta obra tão elogiada, e observamos os atores que se movimentam
nesta, tão sábia e solidamente construída. Vemos que a dor aparece juntamente
com a sensibilidade, e à medida que esta se torna inteligente, a dor e o desejo
caminham par a par, e o primeiro chega a tal desenvolvimento que finalmente, a
vida do homem nada mais é que um assunto trágico ou cômico. A sinceridade de
certos homens não lhes permite a união ao coro dos otimistas, e com eles
entonar a aleluia.
A Vida é um Pesado Gracejo. Se
considerarmos a vida objetivamente, é duvidoso que ela seja preferível ao nada.
Atrever-me-ia até a dizer que se a reflexão e a experiência pudessem fazer um
acordo, elevariam a voz em favor do nada. Se batêssemos nas pedras dos
sepulcros e perguntássemos aos mortos se querem ressuscitar, moveriam
negativamente a cabeça. É esta a opinião de Sócrates na Apologia de Platão. O
alegre e feliz Voltaire dizia: “Amamos a vida, porém o nada não deixa de ter o
seu lado bom”. Em outra parte dizia: “Ignoro o que seja a vida eterna, mas esta
é um pesado gracejo”.
De Ontem a Hoje. A juventude é uma
infatigável aspiração de felicidade; a velhice, pelo contrário, é dominada por
um vago e persistente sentimento de dor, porque já estamos nos convencendo que
a felicidade é uma ilusão, que só o sofrimento é real. Por isso, o homem
sensato deseja mais sofrer que gozar. Em plena juventude, quando eu ouvia bater
à porta, saltava de alegria, e pensava: “Bom! Alguma coisa sucede”. Mais tarde,
experimentado pela vida, o mesmo ruído sobressaltava-me de angústia, e pensava:
“Que sucederá, meu Deus?…”
A Dura Jornada. Na velhice ao perder os
sonhos da sua juventude todo homem que estudou a história do passado e a da sua
época, e recolheu o fruto da sua experiência e da alheia, se não estiver com o
espírito perturbado por preconceitos muito arraigados, chegará à conclusão de
que este mundo é o reino do acaso e do erro, que é governado a seu modo sem
compaixão alguma, auxiliados pela maldade e pela loucura, que ao homem empolgam
constantemente. Mil trabalhos e esforços é preciso para impor uma ideia nobre,
porque dificilmente encontra uma oportunidade de apresentar-se, enquanto que a
vulgaridade artística, os sofismas, a malícia e a astúcia reinam de geração em
geração, aqui e alhures sem serem interrompidos.
Nota:
(1)
Referência à obra “A Divina Comédia”
(Inferno, canto XXXIII), 1. de Dante Alighieri, que viveu entre os anos
1265-1321. “Ugolino foi murado numa torre com os filhos. Quando o desespero lhe
inspira um gesto equívoco – morder as próprias mãos –, os filhos lhe oferecem a
própria carne para mitigar sua fome. Ugolino recusa. Morrem os filhos. E o pai
acaba por lhes comer os cadáveres antes de por sua vez perecer”.
Autor: Arthur Schopenhauer
Fonte: A vontade de amar