CONCEITO DE POVOS INDÍGENAS:
“POVOS INDÍGENAS são
aqueles que, tendo continuidade histórica com grupos pré-colombianos, se
consideram distintos da sociedade nacional. Indígenas são aqueles que se
reconhecem como pertencentes a uma dessas comunidades e por elas são
reconhecidos”.
O conceito acima foi retirado da
página de procura do Google, quando se procura o termo “conceito de povos
indígenas”. O mesmo é datado de 31 de julho de 2015 e pertence à página do
Ministério do Desenvolvimento Social do governo brasileiro e está fora do ar (
http://mds.gov.br). De certa forma isso já
demonstra como o atual governo trata a questão indígena, faz de conta que ela
não existe, fechando os olhos para muitas agressões a esses povos.
A Organização das Nações Unidas
(ONU) tem uma definição mais técnica e abrangente, formulada em 1986:
“As
comunidades, os povos e as nações indígenas são aqueles que, contando com uma
continuidade histórica das sociedades anteriores à invasão e à colonização que
foi desenvolvida em seus territórios, consideram a si mesmos distintos de
outros setores da sociedade, e estão decididos a conservar, a desenvolver e a
transmitir às gerações futuras seus territórios ancestrais e sua identidade
étnica, como base de sua existência continuada como povos, em conformidade com
seus próprios padrões culturais, as instituições sociais e os sistemas
jurídicos”.
Esse conceito pode ser encontrado
numa publicação do Ministério da Educação do Brasil, chamado “O Índio
Brasileiro: O que Você Precisa Saber sobre os Povos Indígenas no Brasil de
Hoje. Ministério da Educação, Secretária de Educação Continuada, Alfabetização
e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006, p. 27”. Deve-se notar que esta
publicação ocorre no contexto de um governo mais popular e voltado para o
benefício das comunidades indígenas brasileiras.
A DISCUSSÃO DOS ILUMINISTAS SOBRE O
“ESTADO DA NATUREZA”
Os filósofos denominados
contratualistas do século XVII e XVIII costumavam a pensar que o “Estado de
Natureza” poderia ser encontrado entre os povos indígenas mais primitivos.
O conceito de “Estado de Natureza” é
uma abstração teórica que se refere a um “momento” em que os seres humanos
organizavam-se apenas sob as leis da natureza, um “momento” anterior ao
surgimento de qualquer tipo de organização social e do Estado Civil,
ressaltando-se que a ideia de anterioridade não se refere a um momento
histórico, mas uma metáfora a um período pré-social dos seres humanos.
Característica marcante é a ideia de
que os indivíduos viveriam isoladamente ou organizados em pequenos grupos
familiares dedicando-se à sua sobrevivência. Sendo pré-sociais eram plenamente
livres com sua liberdade natural e igualdade entre os membros destes pequenos
grupos, não estariam, supostamente, submetidos a construções sociais ou
culturais.
Diferentes autores propõem
diferentes visões sobre como seria o estado de natureza, onde as principais
correntes filosóficas modernas remetem a Hobbes, Locke e Rousseau.
Thomas
Hobbes (1588 – 1679) declara que os seres humanos possuem uma tendência
natural à violência e cunhou a célebre frase: “O homem é o lobo do homem”. E
que por conta de seu intelecto, os seres humanos dominaram a natureza, mas
encontraram outros seres humanos os seus grandes rivais, seus verdadeiros
predadores naturais. Os desejos dos indivíduos em “Estado de Natureza” gerariam
disputas que poderiam levar à morte de uma das partes do conflito. Pela
necessidade de segurança e, principalmente, por receio de uma morte violenta,
os indivíduos preferem abrir mão de seu direito à liberdade e igualdade dada
pela natureza. Assim sendo, celebraram um pacto ou contrato social no qual
passam ao serem submetidos a um governo que pode, através das leis,
garantindo-se assim, uma vida segura a todos. Os seres humanos abandonam o
“Estado de Natureza” e dão origem ao “Estado Civil” por meio de um contrato
social.
John
Locke (1632 – 1704) foi um filósofo inglês, considerado o “pai do
liberalismo”. Isso se deve fundamentalmente por sua concepção da propriedade
como um direito natural dos seres humanos. Divergindo do pensamento hobbesiano,
Locke afirma que os seres humanos em “Estado de Natureza” não vivem em guerra,
tendem a uma vida pacífica por sua condição de liberdade e igualdade. Os indivíduos
ao nascer receberiam da natureza, o direito à vida, à liberdade e aos bens que
tornam possíveis os dois primeiros. Isto é, o direito à propriedade privada.
Entretanto, o indivíduo em “Estado de Natureza”, por seus desejos e por sua
liberdade, acabaria entrando em litígio com outros indivíduos. Como cada uma
das partes defenderia seu próprio interesse, tornou-se necessária a criação de
um poder mediador a qual todos se submetessem. Assim sendo, o indivíduo
abandonaria o “Estado de Natureza”, celebrando o contrato social. Nele o Estado
deveria desempenhar o papel de árbitro nos conflitos, evitando injustiças e,
consequentemente, a vingança daquele que se sentiu injustiçado. Tendo em vista
sempre a garantia do direito natural à propriedade. Para Locke: “Ser livre é
ter liberdade de ditar suas ações e dispor dos seus bens, e de todas as suas
propriedades, de acordo com as leis regentes. Dessa forma, não ser sujeito à
vontade arbitrária de outros, podendo seguir a sua própria vontade”. Locke ainda
afirma que a função do Estado é interferir o mínimo possível na vida dos
indivíduos, atuando apenas na mediação de conflitos e na defesa do direito à
propriedade, acreditando que onde não há lei não há liberdade.
Jean-Jacques
Rousseau (1712 – 1778), filósofo suíço, possuía uma concepção do ser humano
em “Estado de Natureza” bem contrastante dos seus predecessores. Rousseau
afirmava que o ser humano é naturalmente bom. Em “Estado de Natureza”, viveria
uma vida isolada dos demais, plenamente livre e feliz. O indivíduo seria o “bom
selvagem” inocente e incapaz de praticar o mal, como os outros animais.
Entretanto, esse estado terminava quando por algum motivo particular, um
indivíduo cerca um pedaço de terra e o classifica como seu. O surgimento da
propriedade privada é o motor gerador de desigualdade e violência. Afirmava
Rousseau: “O homem nasce bom e a sociedade o corrompe”. Assim, surge o “Estado
de Sociedade” onde os possuidores (aqueles que detêm a posse de algo) lutam
contra aqueles que não possuem bens. Pela extinção dessa insegurança, o
contrato social faz com que os indivíduos abandonem o “Estado de Natureza” e
assumam a liberdade civil. Vivendo sobre o controle de um Estado que deve
realizar estritamente a vontade geral.
Estes filósofos chamados de
filósofos contratualistas dedicaram a desenvolver a ideia do ser humano em um
estado pré-social (“primitivo”) e sua para uma vida em sociedade se dá através
do contrato social. A origem do Estado surge da necessidade dos seres humanos
estabelecerem leis que possam tornar possível sua vida em sociedade.
O SPILTN E O SPI
Em nosso país a preocupação com a
temática indígena começou num período bastante crítico para as populações
indígenas brasileiras. No final do século XIX e início do século XX acontecida
diversas frentes de expansão para o interior brasileiro. Assim era comum que governo,
posseiros, garimpeiros, pecuaristas, agricultores fizessem verdadeira guerra
contra os nativos destas regiões de expansão.
Em meados de 1907, devido a essas
disputas no interior entre colonos e indígenas, aconteceu uma repercussão
bastante negativa, tanto nas capitais do Brasil quanto no exterior levando a
uma acirrada polêmica.
Incrivelmente, o diretor do Museu
Paulista, o naturalista Alemão Hermann Von Ihering, chegou a defender o
extermínio dos índios que resistissem ao avanço da civilização, promovendo
grande revolta em diversos setores da sociedade civil, sendo que em 1908 foi
publicamente acusado no XVI Congresso dos Americanistas ocorrido em Viena.
Neste contexto originou-se o Serviço
de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), que
tinha como objetivo tanto a proteção e integração dos índios quanto a fundação
de colônias agrícolas que se utilizariam da força de trabalho encontrada pelas
chamadas expedições oficiais.
A ideologia básica desta unificação
de funções estava a ideia de que o “ser índio” era um estado transitório, cujo
destino seria tornar trabalhador rural ou proletário urbano.
Em 1918, o Serviço de Proteção ao
Índio foi separado da Localização de Trabalhadores Nacionais, porém, mesmo após
a separação a premissa do SPI era a da integração pacífica dos índios,
continuando o órgão a acreditar no processo de civilização do aborígene.
Enquanto isso institucionalmente a
política de administração dos índios pela União foi formalizada no Código Civil
de 1916 e na lei n.º 5.484 de 27 de junho de 1928, onde se estabeleceu uma
situação jurídica de pseudocidadania ao elemento indígena tratando-o como um
indivíduo a ser tutelado pelo SPI, ou seja, pelo Estado. Esses dispositivos legais partiam de
uma noção genérica do conceito “índio”, não sendo formulados a partir de
critérios objetivos aos quais pudessem dar conta da diversidade de situações
vividas pelos povos indígenas no Brasil.
A atuação tutelar do SPI foi
permeada pelas mesmas contradições presentes nas tentativas anteriores, visando
por um lado proteger as terras e as culturas indígenas e por outro transferir
os nativos de territórios com o intuito de destinar novas terras à colonização
impondo alterações nos modos de vida ancestrais das populações indígenas.
O próprio arranjo institucional do
SPI contradizia-se em relação à questão indígena. Durante o tempo que existiu
passou por vários ministérios, sendo empurrado de um lado para outro. Entre
1910 e 1930, na então chamada República Velha, integrou o Ministério da
Agricultura, Indústria e Comércio. De 1930 a 1934, o Ministério do Trabalho e
de 1934 a 1939, o Ministério da Guerra, por meio da Inspetoria de Fronteiras,
em 1940, voltou ao Ministério da Agricultura e, posteriormente, passou a
integrar o Ministério do Interior.
Em relação à estrutura interna do
órgão refletiu a proposta de integração dos povos e o interesse sobre seus
territórios, sendo que as divisões administrativas foram organizadas conforme
as diversas fases de passagem do isolamento à civilização como a fase de
atração, pacificação, sedentarização e nacionalização (integração), estrutura
que mantinham semelhanças com os aldeamentos missionários formados desde o
século XVI. O SPI foi formado em continuidade
com premissas coloniais, onde seu modo de atuação destacou-se a partir das
doutrinas positivistas, incorporando técnicas missionárias tais como:
distribuir presentes, vestir os índios e ensinar-lhes a tocar instrumentos
musicais da cultura ocidental e não os que lhe s eram próprios. Os expedicionários sertanistas
mantinham valores como a bravura, coragem, calma e disciplina militar que
remontavam as clássicas imagens do explorador e do bandeirante.
Uma expressão muito em moda na
época, o “governo dos índios”, exigia dos expedicionários uma boa formação
científica e espírito de dedicação à causa pública, sendo que a produção de
informações cartográficas e ambientais eram fundamentais para subsidiar as
atividades de conquista e exploração comercial do interior.
Essa proposta de registrar
minuciosamente as expedições contribuiu para a formação da antropologia no
Brasil e das coleções de cultura material indígena dos museus brasileiros e
estrangeiros que levou a denominação de tradição sertanista. O mais importante e destacado
formulador destas concepções foi o Marechal Cândido Rondon (1865 -1958), que
foi o primeiro presidente do SPI e exerceu grande influência na condução de
suas políticas ao longo praticamente toda vida do órgão.
Marechal Rondon não apenas concebeu
como levou à risca as posturas sertanistas. Sua prática indigenista se originou
na sua atuação à frente da Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas do Mato
Grosso ao Amazonas de 1907 a 1915, onde experimentou diversas técnicas de
relacionamento com os índios que posteriormente transferiu ao SPI. Por suas
posturas e feitos recebeu as maiores congratulações civis e militares
oferecidas aos brasileiros e em 1957 foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz.
Nas primeiras décadas do SPI, o
alemão Curt Nimuendajú (1883 – 1945) também teve um papel de destaque,
produzindo vasta obra dedicada aos estudos das populações indígenas de diversas
regiões do país.
Nas décadas de 1940, 1950 e 1960, os
irmãos Villas-Boas ficaram famosos por suas expedições ao Brasil Central.
Estiveram à frente do processo de pacificação dos Xavantes em Mato Grosso e da
concepção, implantação e Gestão do Parque Indígena do Xingu.
O Parque Indígena do Xingu foi uma
proposta dos Villas-Boas concebida em 1952 e previa limites muito maiores do
que os vigentes nos dias atuais, pois na proposta inicial as cabeceiras dos
principais rios deveriam ficar dentro do Parque, porém como isso não ocorreu,
as mesmas acabaram sendo circundadas por cidade, pastagens e plantações de soja
que ameaçam constantemente a vida dos povos indígenas que habitam o Parque
Nacional do Xingu.
A partir da década de 1940, após a
instituição por Getúlio Vargas, durante a chamada ditadura do Estado Novo, do Conselho
Nacional de Proteção dos Índios (CNPI) pelo decreto presidencial de n.º 1.794
de 22 de novembro de 1939, antropólogos destacados passaram a atuar na
formulação das políticas indigenista brasileiras.
Heloísa Alberto Torres, Darcy
Ribeiro, Roberto Cardoso de Oliveira, Eduardo Galvão, entre outros, tentaram
levar ao SPI as premissas antropológicas da época, questionando os cânones e
práticas sertanistas. Consideravam inevitável a integração dos índios à
sociedade nacional, porém defendiam que o SPI não se comprometesse a estimular
este processo.
As discussões que estes antropólogos
propunham estavam em consonância com os debates latino-americanos e
internacionais mais amplos realizados no âmbito da Organização das Nações
Unidas (ONU), que, em 1957, promulgou através da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), a Convenção 107 – “Sobre a Proteção e Integração das Populações
Indígenas e outras Populações Tribais e Semitribais de Países Independentes”
que foi ratificada pelo Brasil em 1966, também por um decreto em regime
ditatorial (Decreto 58.824/1966).
A história do SPI foi marcada pela
influência de personagens proeminentes e comprometidas com os povos indígenas,
mas essa atuação não valia como regra, pois o órgão sempre foi carente de
recursos e acabou por se envolver de militares a trabalhadores rurais que não
possuíam preparação ou interesse pela proteção
dos indígenas. As atuações à frente dos Postos Indígenas de todo o país
acabaram por gerar resultados opostos à proposta de proteger os índios, onde
não eram raros casos de fome, doenças, despovoamento e escravização que eram
permanentemente denunciadas.
No início da década de 1960, sob
acusações de genocídio, corrupção e ineficiência o SPI foi investigado por uma
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que levou a um processo de demissão ou
suspensão de centenas de funcionários de todos os escalões. Em 1967, bastante
combalido e em meio à crise institucional e ao início da ditadura, o SPI e CNPI
foram extintos e substituídos pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
A FUNAI
Projetada por intelectuais do CNPI
para superar os antigos problemas do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), a
FUNAI acabou por reproduzi-los. Sua criação foi inserida no plano mais
abrangente da ditadura militar (1964 a 1985), que pretendia reformar a
estrutura administrativa do Estado e promover a expansão político-econômica
para o interior do País, sobretudo para a região amazônica. As políticas
indigenistas foram integralmente subordinadas aos planos de defesa nacional,
construção de estradas e hidrelétricas, expansão de fazendas e extração de
minérios.
Sua atuação foi mantida em plena
afinidade com aparelhos responsáveis por programar essas políticas: Conselho de
Segurança Nacional (CSN), Plano de Integração Nacional (PIN), Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e Departamento Nacional de
Produção Mineral (DNPM).
A ação da FUNAI durante a ditadura
foi fortemente marcada pela perspectiva assimilacionista. O Estatuto
do Índio (Lei 6.001/1973), e ainda vigente, reafirmou as premissas de
integração que permearam a história do SPI.
Por um lado, pretendia-se agregar os
índios em torno de pontos de atração, como batalhões de fronteira, aeroportos,
colônias, postos indígenas e missões religiosas, assim como incorporá-los em
grandes projetos como a Transamazônica, Itaipu, entre outros.
Por outro lado, o foco era isolá-lo
e afastá-lo das áreas de interesse estratégico. Para realizar esse projeto, os
militares aprofundaram o monopólio tutelar: centralizaram os projetos de
assistência, saúde, educação, alimentação e habitação; cooptaram lideranças e
facções indígenas para obter consentimento; e limitaram o acesso de
pesquisadores e organizações de apoio e setores da Igreja às áreas indígenas.
A FUNAI foi concebida em base
semelhante às do SPI e até 1991 manteve-se vinculada ao extinto Ministério do
Interior, que sempre exerceu grande ingerência sobre suas ações. Os presidentes nomeados entre as décadas de
1970 e 1980 eram, em grande maioria, militares ou políticos de carreira pouco
ou nada comprometidos, e até mesmo contrários aos interesses indígenas.
A administração foi centralizada em
Brasília. Os postos indígenas foram mantidos e as inspetorias transformadas em
delegacias regionais. Outras instâncias – ajudâncias, superintendências,
administrações executivas, núcleos locais de apoio – foram criadas e extintas
ao logo do tempo. A despeito destas modificações, a FUNAI se estruturou aos
moldes do SPI, de modo mais ou menos centralizado com grande rigidez
burocrática, em três níveis espaciais: 1) Nacional; 2) Regional e, 3) Local.
Apesar das irregularidades que
levaram à extinção do SPI, seu quadro funcional foi transferido para a FUNAI.
Com recursos escassos e mal contabilizados, a FUNAI continuou a operar, assim
como o SPI, com profissionais pouco qualificados. Não se concretizou a proposta
de se realizar planejamentos antropologicamente orientados, conduzidos por
profissionais de formação sólida, bem pagos e comprometidos com o futuro dos
povos indígenas. O órgão foi permeado, em todos os níveis, por redes de
relações clientelistas e corporativas, que remetem paternalismo e ao
voluntarismo que dominaram o velho SPI. O órgão era novo, mas os vícios eram
antigos. A criação da FUNAI foi marcada pela ineficiência, desinteresse e
dificuldade de operação, o que levou o órgão a limitar sua intervenção a favor
dos índios a situações altamente críticas, conflituosas e emergenciais, consequentes
dos planos de colonização e exploração econômica que chegavam aos extremos do
país.
Neste contexto desfavorável, a
questão indígena começou a emergir no cenário político nacional. A maior parte
das organizações de apoio aos índios (ANAIs), o Conselho Indigenista
Missionário (CIMI), o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), a Operação Amazônia
Nativa (OPAN), o Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI) e o
Núcleo de Direitos Indígenas (NDI). Estas duas últimas se juntaram para fundar
o atual Instituto Socioambiental (ISA). Criadas por intelectuais e clérigos
envolvidos com a questão indígena, estas entidades passaram a realizar
importantes trabalhos como: o questionamento fundamentado às políticas
oficiais, a interlocução entre índios e a FUNAI, bem como a formulação de
alternativas concretas para o indigenismo brasileiro.
Na década de 1980, diversas
manifestações passaram a ganhar visibilidade nacional. Também neste período
começaram a se estruturar suas primeiras organizações formais de base
comunitária ou regional. Em âmbito nacional foi criada a União das Nações Indígenas (UNI), que deixou
de existir.
Com as mobilizações indígenas e das
organizações de apoio, a Constituição de 1988 acabou por conferir um tratamento
inédito aos povos indígenas. Pela primeira vez foi reconhecido seu direito à
diferença e foi rompida a tradição assimilacionista através do artigo 231:
“Artigo
231 – São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, e os direitos originários sobre terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens.”
“§ 1.º - São terras tradicionalmente
ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as
utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação
dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua
reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
“§ 2.º - As terras tradicionalmente
ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o
usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas
existentes”.
“§ 3.º - O aproveitamento dos
recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra
das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivadas com
autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhe
assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei”.
“§ 4.º - As terras de que trata este
artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas,
imprescritíveis”.
“§ 5.º - É vedada a remoção dos
grupos indígenas de suas terras, salvo, (ad referendum) do Congresso Nacional,
em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no
interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional,
garantindo, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco”.
“§ 6.º - São nulos e extintos, não
produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o
domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das
riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado
relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar,
não gerando nulidade e a extinção do direito a indenização ou a ações contra a
União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de
boa-fé”.
“7.º - Não se aplica às terras
indígenas o disposto no artigo 174, §§ 3.º e 4.º”. “( artigo 174 - § 3.º - O Estado favorecerá
a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a
proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros; § 4.º
- As cooperativas a que se refere o parágrafo anterior terão prioridade na
autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de
minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando, e naquelas fixadas de
acordo com o art. 21, XXV, na forma da lei)”.
Foi garantido o usufruto exclusivo
de seus territórios tradicionalmente ocupados, definidos a partir de seus usos,
costumes e tradições. A União foi instituída definitivamente como instância
privilegiada das relações entre índios e a sociedade nacional.
Através do artigo 232, os indígenas
e suas organizações foram reconhecidos como partes legítimas para ingressar em
juízo em defesa de seus direitos, o que incentivou a expansão e a consolidação
de suas associações. Para isso, foram definidos canais diretos de comunicação
entre os índios, o Ministério Público e o Congresso Nacional. Com estas
medidas, o conceito de “capacidade relativa dos silvícolas” – Código Civil de
1917 – e, a consequente necessidade de “poder de tutela” perderam validade e
atualidade. Estas vitórias constitucionais precisariam, entretanto, ser
regulamentadas e consolidadas politicamente.
Vejamos o artigo 232:
“Artigo 232 – Os índios, suas comunidades e organizações são
partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e
interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”.
Em 1991, uma Comissão Especial foi
instaurada para rever o Estatuto do Índio de 1973 a partir do enfoque inovador
da carta de 1988. Foram abordados temas como: a situação jurídica dos índios e
as responsabilidades assistenciais da FUNAI; os direitos de autoria e a
propriedade intelectual; a proteção ambiental e a regulamentação de recursos
naturais; os procedimentos de demarcação de terras indígenas. A tramitação do
projeto, entretanto, foi paralisada em 1994.
No início da década de 1990, houve
amplos debates acerca do papel do órgão indigenista oficial a partir de um novo
marco jurídico. O Ministério do Interior foi extinto e a FUNAI foi transferida
para o Ministério da Justiça. Blocos parlamentares anti-indígenas propunham
fechá-la, sem substituí-la por nada novo, o que provocaria um grande vazio
administrativo. Mobilizações indígenas e organizações de apoio defendiam que a
reestruturação do órgão fosse feita concomitantemente à aprovação do texto do
Estatuto. Em 1991, o governo Collor realizou, por meio de decretos, uma ampla
reforma das atribuições da FUNAI. As responsabilidades sobre saúde, educação,
desenvolvimento rural e meio ambiente foram descentralizadas, e passaram a ser
exercida pelos Ministérios da Saúde, Educação, Desenvolvimento Agrário e Meio
Ambiente. As ações extra-FUNAI decretadas por Collor tomaram rumos distintos e
impactaram de modo diferenciados os povos indígenas do Brasil. Durante os anos
FHC estas políticas passaram a adquirir contornos administrativos mais
precisos. Algumas ONGs e associações indígenas passaram a participar ativamente
do processo de implementação das políticas públicas.
Com os decretos de 1991, a FUNAI,
esvaziada em suas atribuições, passou a se concentrar nas políticas de regularização
fundiária. Em 1996, o governo FHC modificou as regras para a demarcação de
Terras Indígenas visando destacar a necessidade da participação indígena e o
direito a contestação das partes afetadas (Decreto 1775/1996, Portaria
14/1996).
Também em 1996 passou a operar o
Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas (PPTAL),
resultado da parceria entre FUNAI e o Programa Piloto para a Conservação das
Florestas Tropicais do Brasil – PP-G7. Embora direcionado à demarcação de
terras, o PPTAL se propôs a criar alternativas concretas e de longo prazo ao
modelo tutelar. Sua proposta se baseou no estímulo ao controle social e à
atuação indígena qualificada na estrutura da FUNAI e do Estado de modo mais
abrangente. Em seu âmbito, a partir da experiência dos Wajãpi do Amapá, foi
criado o modelo de “demarcação participativa”, que tem como premissa básica a
parceria e a co-responsabilidade dos povos indígenas na formulação das
políticas que lhes afetam diretamente. Neste modelo, a própria demarcação é
tomada como apenas uma das etapas do processo mais abrangente de gestão
sustentável das Terras Indígenas. Trata-se de uma proposta baseada no diálogo
intercultural, que apenas se realiza enquanto política pública com o pleno
envolvimento e concordância dos povos interessados.
A experiência inovadora do PPTAL
estimulou a criação em 2001 do Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas
(PDPI), desenvolvido no âmbito do Ministério do Meio Ambiente em parceria com o
PP-G7. Este projeto é voltado ao financiamento de iniciativas de valorização
cultural e desenvolvimento sustentável elaborados e geridos pelas populações
indígenas e seus parceiros.
Em 2002, a ratificação pelo governo
brasileiro da Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)
– “Sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes” (1989), aprofundou
a sustentação jurídica às demandas de povos antes tomados por aculturados e
integrados, que atualmente reivindicam em diversas regiões do Brasil, seus
direitos indígenas diferenciados. Cada vez mais numerosas estas reivindicações
trazem novos desafios à atuação da FUNAI responsável pela demarcação das Terras
Indígenas no país.
Na virada do milênio, os
conhecimentos indígenas tradicionais passaram a ganhar destaque na agenda nacional
e internacional. As discussões se concentraram na criação e aprimoramento de
mecanismos legais que impeçam que estas populações sejam expropriadas de seu
rico patrimônio intelectual, produzido ao longo de gerações. O problema é
evidente no caso dos conhecimentos associados à biodiversidade que têm sido
alvo de inúmeros casos de biopirataria. Embora acordos internacionais como a
Convenção da Diversidade Biológica e a Agenda 21, criadas no contexto da
Eco-92, tenham destacado a urgência do problema, apenas em 2002 o Brasil
iniciou, através de decreto presidencial (n.º 4339, de 22 de agosto de 2002),
uma política nacional de biodiversidade que, entretanto, precisa ser aprimorada
em diversos aspectos. Também neste âmbito e neste período, o Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), vinculado ao extinto
Ministério da Cultura, passou a realizar ações de proteção, valorização e
salvaguarda do patrimônio cultural matéria e imaterial de povos indígenas e tradicionais.
Estas ações decorrem do esforço de regulamentação da Constituição de 1988, que
em seus artigos 215 e 216 formaliza o valor imaterial dos bens culturais. No
ano 2.000 o decreto 3.551 institui os mecanismos oficiais de valorização e
proteção do patrimônio cultural no Brasil. Estes instrumentos, entretanto, se
encontram em fase inicial de consolidação e são alvo de pesquisas e debates
entre especialistas. Até mesmo no campo internacional as propostas neste
sentido são recentes. Data de 2003 a Convenção da UNESCO para a “Salvaguarda do
Patrimônio Cultural Imaterial”.
Desde a Constituição de 1988 o
indigenismo oficial passou por diversas e significativas mudanças, voltadas, de
modo geral, ao reconhecimento e à valorização da diferença cultural. As políticas
públicas direcionadas aos povos indígenas têm se tornado cada vez mais
descentralizadas e realizadas no âmbito de diversos ministérios que atuam em
parceria com agências de cooperação internacional e organizações
não-governamentais. A premissa elementar do conjunto das ações é o estímulo à
participação e à co-responsabilidade indígena na gestão das políticas
destinadas a eles. Entretanto, o sucesso destas políticas depende de sua plena
consolidação jurídica e institucional em todos os níveis, do local ao governo
central. Afinal, o poder tutelar, o assistencialismo e o assimilacionismo ainda
são uma realidade fortemente enraizada em diversas práticas do relacionamento
entre o Estado e os povos indígenas.
Em relação à consolidação jurídica
deste novo momento, é notável que o Estatuto do Índio de 1973, de bases
integracionistas, ainda esteja vigente. Entre 1991 e 1994, foi apresentada uma
proposta de substituição ao texto que jamais foi votada pelo congresso. Em
março de 2006, o governo federal criou a Comissão Nacional de Política Indígena
(CNPI). Em sua agenda, foi estabelecida a prioridade da atualização do Estatuto
do Índio, com vistas a apresentar uma regulamentação integrada dos diversos
temas da agenda dos povos indígenas: o patrimônio e os conhecimentos
tradicionais, a proteção e a gestão territorial e ambiental, as atividades
sustentáveis e o uso de recursos renováveis, o aproveitamento de recursos
minerais e hídricos, a assistência social, a educação escolar e o atendimento à
saúde diferenciado. Em julho de 2009, a proposta – construída coma participação
de representantes indígenas – foi apresentada ao Congresso Nacional e aguarda
votação.
Neste contexto, o atual CNPI e a
FUNAI tem a tarefa de articular e integrar o conjunto das ações estatais de
defesa dos direitos indígenas, com vistas a promover o paradigma participativo
e superar definitivamente seu papel tutelar. Com este objetivo, o órgão
indigenista oficial tem realizado esforços para atualizar suas práticas e modos
de funcionamento.
Em fins de 2009, o governo do
presidente Luís Inácio Lula da Silva anunciou, por meio de decreto presidencial
(n.º 7056, de 28 de dezembro), um amplo plano de reestruturação da FUNAI, que
pretendeu oferecer maior capacidade de atuação onde vivem os povos indígenas.
As Administrações Executivas Regionais (AERs) e Postos Indígenas (PIs) foram
substituídos por Coordenações Técnicas Locais e Regionais, formadas por
técnicos qualificados, que passarão a desenvolver ações participativas junto
aos povos indígenas envolvidos. Nesta estrutura, está planejada a criação de
Conselhos Consultivos, nos quais os indígenas e as organizações parceiras
participam diretamente na formulação, implementação e gestão das políticas
públicas a eles destinadas. Além disso, está prevista a criação de 3,1 mil
cargos a serem preenchidos até 2012. Esta nova estrutura pretende, conforme sua
direção, superar os impasses históricos do órgão indigenista oficial.
Apreensivos, diversos povos se posicionaram contra as mudanças e reclamaram de
falta de consulta prévia prevista na Convenção n.º 169 da OIT.
A QUESTÃO INDÍGENA NOS DIAS ATUAIS
Em pleno século XXI a grande maioria
dos brasileiros ignora a imensa diversidade de povos indígenas que vivem no
país. Estima-se que, na época da chegada dos europeus, fossem mais de 1.000
povos, somando entre 2 e 4 milhões de pessoas. Atualmente encontramos no
território brasileiro 256 povos, falantes de mais de 150 línguas diferentes.
Os povos indígenas somam, segundo o
Censo do IBGE de 2010, 896.917 pessoas. Destes, 324.834 vivem em cidades e
572.083 em áreas rurais, o que corresponde aproximada-mente a 0,47% da população
total do Brasil. A maior parte dessa população distribui-se por milhares de
aldeias, situadas no interior de 726 Terras Indígenas, de norte a sul do
território nacional.
Nos dias de hoje, falar em povos
indígenas no Brasil significa reconhecer basicamente:
Nestas terras
colonizadas por portugueses, aonde se viria formar um país de nome Brasil, já
havia populações humanas que ocupavam territórios específicos; Não se sabe
exatamente de onde vieram (embora haja várias hipóteses); por isso diz-se que
são “originárias” ou “nativas” porque estavam por aqui antes da ocupação
européia;
Certos grupos de
pessoas que vivem atualmente no território brasileiro estão historicamente
vinculados a esses primeiros povos;
Os índios que estão
hoje no Brasil têm uma longa história, que começou a se diferenciar daquela da
civilização ocidental ainda na chamada “pré-história” (com fluxos migratórios
do “Velho Mundo” para a América ocorrido há dezenas de milhares de anos); a
história “deles” voltou a se aproximar da “nossa” há cerca de, apenas, 500 anos
(com a chegada dos portugueses);
Como todo grupo
humano, os povos indígenas têm culturas que resultam da história de relações
que se dão entre os próprios homens e entre estes e o meio ambiente; uma
história que, no seu caso, foi (e continua sendo) drasticamente alterada pela
realidade da colonização;
A divisão
territorial em países (Brasil, Venezuela, Bolívia, etc.) não coincide,
necessariamente com a ocupação indígena do espaço; em muitos casos, os povos
que hoje vivem em uma região de fronteiras internacionais já ocupavam essa área
antes da criação de divisões entre os países; é por isso que faz mais sentido
dizer povos indígenas no Brasil do que do Brasil.
A expressão genérica povos indígenas
refere-se a grupos humanos espalhados por todo o mundo, e o que são bastante
diferentes entre si. É apenas o uso corrente da linguagem que faz com que, em
nosso país e em outros, fale-se em povos indígenas, ao passo que, na Austrália,
por exemplo, a forma genérica para designá-los seja aborígine.
Indígena ou aborígine, como ensina o
dicionário, quer dizer “originário de determinado país, região ou localidade;
nativo”. Aliás, nativos e autóctones são outras expressões usadas, ao redor do
mundo, para denominar esses povos.
O que todos os povos indígenas têm
em comum? Antes de tudo, o fato de cada qual se identificar como uma
coletividade específica, distinta de outras com as quais convive e,
principalmente, do conjunto da sociedade nacional na qual está inserida. Genericamente, os povos indígenas
que vivem não apenas em nosso país, mas em todo o continente americano, são
também chamados de índios. Essa palavra é fruto do equívoco histórico dos
primeiros colonizadores que, tendo chegado às Américas, julgaram estar na
Índia.
Apesar do erro, o uso continuado –
até mesmo por parte dos próprios índios – faz da palavra, no Brasil de hoje, um
sinônimo de indivíduo indígena. Como há certas semelhanças que unem
os índios das Américas do Norte, Central e do Sul, há quem prefira chamá-los,
todos, de ameríndios. Os índios ou ameríndios são, então, os povos indígenas
das Américas.
Em décadas passadas, outra palavra
era bastante usada no Brasil para designar genericamente os índios: silvícolas
(quem nasce ou vive nas selvas). O termo é totalmente inadequado, porque o que
faz de alguém indígena não é o fato de viver ou ter nascido na “selva”. Logo,
segundo Eduardo Viveiros de Castro, pesquisador e professor de antropologia do
Museu Nacional (UFRJ), sócio fundador do Instituto Socioambiental, conceitua:
"Índio” é qualquer membro de uma comunidade
indígena, reconhecido por ela como tal;
“Comunidade Indígena” é toda comunidade fundada em relações de parentesco ou vizinhança entre seus membros, que mantém laços histórico-culturais com as organizações sociais indígenas pré-colombianas.
As relações de parentesco ou
vizinhança constitutivas da comunidade incluem as relações de afinidade, de
filiação adotiva, de parentesco ritual ou religioso, e, mais geralmente,
definem-se nos termos da concepção dos vínculos interpessoais fundamentais
próprias da comunidade em questão.
Os laços histórico-culturais com as
organizações sociais pré-colombianas compreendem dimensões históricas,
culturais e sociopolíticas, a saber:
·
A continuidade da
presente implantação territorial da comunidade em relação à situação existente
no período pré-colombiano. Tal continuidade inclui, em particular, a derivação
da situação presente a partir de determinações ou contingências impostas pelos
poderes coloniais ou nacionais no passado, tais como migrações forçadas,
descimentos, reduções, aldeamentos e demais medidas de assimilação e oclusão
étnicas;·
A orientação
positiva e ativa do grupo em face de discursos e práticas comunitários
derivados do fundo cultural ameríndio, e concebidos como patrimônio relevante
do grupo. Em vista dos processos de destruição, redução e oclusão cultural
associados à situação evocada no item anterior, tais discursos e práticas não
são necessariamente aqueles específicos da área cultural (no sentido
histórico-etnológico) onde se acha hoje a comunidade;
A decisão, seja, ela manifesta ou simplesmente presumida, da comunidade de se constituir como entidade socialmente diferenciada dentro da comunhão nacional, com autonomia para estatuir e deliberar sobre sua composição (modos de recrutamento e critérios de inclusão de seus membros) e negócios internos (governança comunitária, formas de ocupação do território, regime de intercâmbio com a sociedade envolvente), bem como de definir suas modalidades próprias de reprodução simbólica e material.
Por não possuírem escrita alfabética
nos tempos da “atração e pacificação”, os povos indígenas foram (e continuam
sendo) “batizados” por escrito pelos não-índios, em um processo que deu (e
ainda dá) margem a muitas confusões em termos de grafia e significados.
É importante destacar que, nas
últimas décadas, com o desenvolvimento de projetos na área de educação escolar
indígena, alguns povos estão aprendendo a escrever na sua própria língua, e
assim começam a criar, junto com os assessores linguistas, uma grafia própria.
Há uma grande variabilidade na
maneira de grafar os nomes dos povos indígenas. Convivem padrões diferentes, às
vezes criados por funcionários da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), outras
por antropólogos e, mais recentemente, até mesmo por Manuais de Redação de
grandes órgãos da imprensa brasileira. Por exemplo, os Huni Kuin, que hoje
habitam áreas do Acre, historicamente foram chamados de “Kaxinawá” (que não é
sua autodenominação) e esse termo é escrito de pelo menos quatro maneiras
diferentes: caxinauá, chashinauá, kaxinawá e kaxináua.
“Atrair e pacificar” os índios,
impondo-lhe arbitrariamente denominações, tem a ver historicamente com práticas
coloniais de controle social: concentração espacial da população (com a
consequente contaminação por doenças e depopulação pós-contato), implantação de
sistemas paternalistas e precários de assistência social, confinamento
territorial e exploração dos recursos naturais disponíveis. Tudo em nome da
“integração dos índios à comunhão nacional”.
Ao contrário, reconhecer e valorizar
suas identidades específicas, compreender suas línguas e suas formas
tradicionais de organização social, de ocupação da terra e uso dos recursos
naturais, tem a ver com gestos diplomáticos de intercâmbio cultural e respeito
a direitos coletivos especiais.
A razão básica pela qual os
antropólogos grafam o nome de uma determinada maneira tem a ver com a adoção de
um alfabeto com o qual vão escrever as palavras da língua deste povo. Como as
línguas indígenas têm sons que não encontram representação direta nas letras do
alfabeto brasileiro, os antropólogos são obrigados a recorrer a outras letras e
combinações de letras. Buscam, então, usar letras cuja interpretação sonora se
aproxime do alfabeto fonético internacional, usado pelos linguistas de todo o
mundo, e não do alfabeto brasileiro.
As fronteiras entre os Estados
nacionais na América do Sul se sobrepuseram às áreas ocupadas pelos povos
indígenas, de tal forma que alguns deles vivem hoje sob a jurisdição
político-administrativa de dois, três e até quatro países diferentes. As discordâncias ortográficas sobre
os nomes de povos indígenas costumam opor antropólogos a Manuais de Redação de
grandes jornais. Mas, nesse assunto, não há consenso nem mesmo entre os
próprios antropólogos. As maiores polêmicas dizem respeito ao uso (ou não) de
maiúsculas iniciais e da forma plural para os nomes das etnias.
Para muitos, quando a denominação de
um povo aparece com função de adjetivo, não haveria porque não escrevê-la com
maiúscula (língua guarani, por exemplo). Já quando aparece como substantivo
gentílico seria mais adequado mantê-la com maiúscula, porque, se é verdade que
essas etnias não tem países (como os franceses, a França), também é certo que
seus nomes são designativos de uma coletividade única, de uma sociedade, de um
povo, e não apenas de uma somatória de pessoas. Assim, temos, por exemplo, os
Kaingang.
Aqueles que defendem a não-flexão do
plural ancoram-se na justificativa de que, na maioria dos casos, sendo os nomes
palavras em língua indígena, acrescentar um “s” resultaria em hibridismo. Além
do mais, há a possibilidade de as palavras já estarem no plural, ou, ainda, de
que a própria forma plural não exista nas línguas indígenas correspondentes.
Os Manuais de Redação, por outro
lado, têm imposto um aportuguesamento da grafia dos nomes dos grupos indígenas,
proibindo o uso de letras como “w”, “y”, “k” (!) e certos grupos de letras não
existentes no português, como “sh”. Esse critério não tem consistência, assim
como grafar os nomes sempre em minúsculas ou flexionar o número (singular/plural),
mas não o gênero (masculino/feminino). Por exemplo, se “Krahô” se deve escrever
“craô”, então “Kubitscheck” deveria ser escrito “Cubicheque”, “Geisel”,
“Gáisel”. Por que o mesmo manual que recomenda grafar ianomâmi e os ianomâmis,
veta a flexão por gênero, quando a palavra tem função de adjetivo (“mulheres
ianomâmis” e não “mulheres ianomamas”), resultando num aportuguesamento pela
metade?
A confusão fica ainda maior quando
entram em cena as autodenominações, isto é, as formas verbais através das quais
um determinado povo refere-se a si mesmo. Em muitos casos, pesquisas de
antropólogos e linguistas ensinam que as autodenominações não têm nada a ver
com os nomes aplicados ao grupo indígenas pelos não-índios. Boa parte dos nomes
utilizados, tanto hoje como no passado, para designar os povos indígenas no
Brasil não são autodenominações. Muitos deles foram atribuídos por outros
povos, frequentemente inimigos e, por isso mesmo, carregam conotações
pejorativas.
É o caso, por exemplo, dos Araweté,
assim nomeados pela primeira vez por um sertanista da FUNAI que julgava
compreender sua língua, logo após os “primeiros contatos” estabelecidos em
meados da década de 1970. Tal designação, grafada pela primeira vez por um
funcionário do governo federal num relatório, acabou permanecendo como
identidade pública oficial desse povo. Mas um antropólogo que estudou os
Araweté, alguns anos depois, aprendeu
sua língua e descobriu que esses índios não se denominam originalmente por um
substantivo “os Araweté”, mas fazem uso da palavra bïdé (um pronome que quer
dizer, “nós, os seres humanos”) para se referir ao coletivo do qual fazem
parte.
A palavra não remete a uma
substância (como brasileiros, por exemplo, remete ao Brasil), mas a uma
perspectiva (humana, que se opõe a animal, a divina, a inimiga...). Dependendo
do contexto em que é enunciada, a palavra bïdé pode se referir a coletividades
humanas mais ou menos abrangentes: aos próprios Araweté (em oposição a outros
grupos inimigos); a todos os índios (em oposição aos não-índios); a todos os
seres humanos (em oposição aos animais e deuses)...
Os membros de Estados-Nações, como
nós não índios, tem o preconceito de que toda sociedade tem que ter nome
próprio. E, como ilustra o caso araweté, trata-se de uma ideia equivocada.
Pois, se é certo que os Araweté, utilizam a palavra bïdé para se referir a si
mesmos, não é verdade que ela seja um “nome próprio” e nem que o “nós” a que se
refere seja sempre o mesmo.
Em outros casos, as conotações dos
nomes atribuídos às etnias indígenas chegam a ser depreciativas. Kayapó, por
exemplo, é uma designação genérica que foi dada a esses índios por povos, de
língua Tupi, com os quais guerrearam até recentemente e quer dizer “semelhante
a macaco”. Outros nomes foram dados por sertanistas do antigo SPI (Serviço de
Proteção aos Índios) ou da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), muitas vezes
logo após os primeiros contatos promovidos pelas chamadas “expedições de
atração”. Neste contexto, sem entender a língua nativa, os equívocos são
frequentes, e determinados povos acabam sendo conhecidos por nomes que lhes são
atribuídos por razões absolutamente aleatórias.
Na época dos primeiros contatos, na
qual a comunicação com “etnias desconhecidas” era precária, alguns povos
passaram a ser denominado pelo nome de algum dos seus indivíduos ou frações. Há
ainda casos de nomes impostos em português, como, por exemplo, os Beiço-de-Pau
(para se referir aos Tapayuna, do Mato Grosso) ou os Cinta-Larga, assim
chamados por sertanistas da FUNAI simplesmente porque usavam largas cintas de
entrecasca de árvore quando foram contatados no final da década de 1960, em
Rondônia.
Muitos povos reúnem, em seu cotidiano,
modos de viver herdados de seus antepassados, além de produtos, instituições e
relações sociais adquiridas após a intensificação do contato com os “brancos”.
Nesse ponto, não diferem muito de “nós”, brasileiros não-índios, afinal vivemos
em uma sociedade continuamente influenciada por outras tradições culturais. Por
exemplo, as cadeias de fast-food espalhadas pelas cidades de nosso país são
pequenas provas de que nossa língua e nossa cultura também sofrem influências
de outras.
O contato com a nossa sociedade
certamente trouxeram muitas mudanças no modo de viver dos povos indígenas. Em
relação a esse assunto, é preciso ter em mente pelo menos dois pontos.
·
As culturas
indígenas não são estáticas. Ao contrário, elas são, como qualquer outra
cultura, dinâmicas. Assim transformam-se ao longo do tempo, mesmo sem uma
influência estrangeira. Por outro lado, é inegável que as mudanças decorrentes
do contato com nossa sociedade podem, muitas vezes, alcançar escalas
preocupantes. Esse é o caso, por exemplo, de povos que perderam suas línguas
maternas e, hoje, só falam o português.·
É preciso dizer que
por trás das mudanças, cujo ritmo e natureza são diferentes em cada caso, há um
aspecto fundamental: mesmo travando relações com não-índios, os povos indígenas
mantêm suas identidades e se afirmam como grupos étnicos diferenciados,
portadores de tradições próprias. E isso vale também para os povos que vivem em
situações de contato mais intenso.
A identidade ética, isto é, a consciência
de pertencer a uma determinada etnia, resulta de um complexo jogo entre o “tradicional”,
e o “novo”, entre o “próprio” e o “estrangeiro”, que surge sempre quando
diferentes populações estão em contato. É importante levar em conta todas essas
considerações antes de dizer que alguém “já não é mais índio” porque usa roupas,
vai à missa, assiste TV, opera computadores, joga futebol ou dirige um carro.
Além da diversidade que existe entre
os índios por causa de suas línguas, culturas, modos de viver e pensar
distintos há outra que se refere a diferentes formas de contato que eles
mantiveram e/ou mantém com os não-índios: se razoavelmente pacífico ou
violento, se antigo ou recente, se direto com a população regional (fazendeiros,
posseiros, madeireiros, garimpeiros, pescadores, etc.) ou mediado por alguma
instituição, governamental ou não-governamental, laica ou religiosa. Muitos
povos foram e são vítimas de violência na época de seus primeiros contatos e
nos dias atuais com a população não-indígena.
É o caso dos Rikbaktsa, que vivem no
estado do Mato Grosso. Da década de 1950 até início de 1960, sofreram oposição
armada de seringalistas da região, além de madeireiros, mineradores e
fazendeiros, o que resultou na dizimação de 75% de sua população. Em contraste,
outros povos guardam na memória uma imagem até mesmo amistosa dos primeiros
contatos. Os Kadiwéu, por exemplo, recordam-se com insistência e orgulho da sua
participação ao lado dos brasileiros na Guerra do Paraguai, marco importante na
sua história de contato com a sociedade nacional.
Muitas vezes, uma relação inicial
entre índios e não-índios, marcada pelo enfrentamento hostil, pode dar lugar a
relações razoavelmente pacíficas e até mesmo desejáveis. Atualmente, diversos
povos indígenas têm desenvolvido parcerias com organizações de apoio da
sociedade civil brasileira. Os vários povos que vivem no Parque Indígena do
Xingu, por exemplo, contam com projetos na área da saúde, hoje encabeçados pela
Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) (e antes pela
Unifesp, antiga Escola Paulista de Medicina), de educação, de alternativas
econômicas, de fiscalização e vigilância, promovidas pelo Instituto
Socioambiental (ISA).
São comuns os casos de convivência
com missões católicas ou protestantes, como pode ser observado,
respectivamente, entre os Makuxi e os Taurepang, ambos localizados na região do
lavrado, no estado de Roraima. É importante notar também que a relação entre
índios e missionários possui formas diversas em todo o Brasil, sobretudo no que
diz respeito às propostas de transmissão dos valores cristãos.
A maneira como cada povo se insere
na sociedade brasileira é bastante variada. Há povos cujos membros trabalham no
mercado regional e são assalariados, como os Guarani Kaiowá, envolvidos em
atividades de corte de cana-de-açúcar pata as destilarias de álcool do estado
do Mato Grosso do Sul. Há aqueles que vivem centros urbanos, como as famílias
de Sateré-Mawé na periferia de Manaus e os Pankararu, migrantes do estado de
Pernambuco e que hoje habitam a favela Real Parque na cidade de São Paulo.
Um fato notável é o crescimento do
número de indígenas no cenário político brasileiro. Somente em 2000, foram
eleitos, entre vereadores, vice-prefeitos e um prefeito, 80 índios.
No pólo oposto daqueles que
participam intensamente de várias esferas da sociedade brasileira, estão àqueles
grupos ou indivíduos recusam o contato com a população não-indígena. Dentre
eles destacam-se grupos que habitam a Terra Indígena Vale do Javari.
Sabe-se muito pouco sobre os
chamados índios isolados – também conhecidos como povos em situação de
isolamento voluntário, povos ocultos, povos não-contatados, entre outros. São
assim chamados aqueles grupos com os quais a FUNAI não estabeleceu contato. As
informações sobre eles são heterogêneas, transmitidas por outros índios ou por
regionais, além de indigenistas e pesquisadores.
A FUNAI, instituição responsável
pela política indigenista do Estado brasileiro, tem um órgão responsável para
proteger a região onde são indicadas as referências a esses grupos sem contato:
é a Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC), que
confirmou a existência de 28 desses grupos. Em toda a América Latina, o Brasil
é o único país a ter um órgão específico para desenvolver políticas de proteção
aos isolados. A CGIIRC está organizada em doze Frentes de Proteção Etnoambiental
(Juruena, Awa-Guajá, Cuminapanema, Vale do Javari, Envira, Guaporé, Madeira,
Madeirinha, Purus, Médio Xingu, Uru-Eu-Wau-Wau e Yanomami), que atuam na
Amazônia brasileira, em regiões onde houve confirmação da presença de índios
isolados e também onde vivem povos de recente contato.
De acordo com os dados do Instituto
Socioambiental (ISA) e de seus colaboradores, há na Amazônia brasileira mais de
70 evidências de índios isolados, mas não se sabe ao certo quem são, onde
estão, quantos são e que línguas falam. Entre esses grupos dos quais se tem
evidências, apenas um, os Avá-Canoeiro, encontra-se fora da Amazônia Legal. Dos
Avá-Canoeiro fala-se que são quatro
pessoas, em fuga permanente, evitando contato, pelo norte de Minas Gerais,
Bahia e Goiás. Além desse pequeno grupo, outros indivíduos Avá-Canoeiro vivem
na Terra Indígina homônima e mais algumas pessoas desse grupo e seus
descendentes vivem no Parque Indígena do Araguaia.
O que se sabe é que a maior parte
dessas referências encontra-se em Terras Indígenas já demarcadas ou com algum
grau de reconhecimento pelos órgãos federais. Também há evidências de grupos
isolados dentro de dois Parques Nacionais e de duas Florestas Nacionais
(Flonas). No caso dos parques, os grupos estão protegidos da ocupação
desordenada de seu habitat, já no caso das Flonas, que apesar de serem federais
e protegidas, são áreas destinadas à exploração florestal por empresas, de
forma que não há garantia de que os índios serão protegidos e terão seu futuro
assegurado.
As informações sobre esses povos são
escassas. Por vezes, vestígios como tapiris (palhoças, ranchos), flechas e
outros objetos encontrados nas áreas por onde passaram são fotografados. Os
relatos verbais de existência desses grupos são geralmente fornecidos por
outros índios e regionais mais próximos, que narram encontros fortuitos, ou que
simplesmente reproduzem informações de terceiros.
Um caso exemplifica bem a definição
de grupos isolados, onde as informações dos vizinhos confirmam sua existência e
a relação de contato que tiveram com eles, mostra que o isolamento é relativo:
os Hi-Merimã, que hoje vivem isolados, já
foram estimados em 1.000 pessoas em 1943. Eram considerados um dos maiores
grupos da região do rio Purus, no estado do Amazonas, mas voltaram ao
isolamento. Eram conhecidos também como Marimã ou Merimã, segundo informação da
antropóloga Luciene Pohl, em seu trabalho de identificação da Terra Indígena
Hi-Merimã. Pohl coletou as informações sobre eles com seus vizinhos Jamamadi,
cujas terras demarcadas são contínuas à terra dos isolados e cuja língua é da
família Arawá.
Os Jamamadi dizem que tiveram
contato com eles no passado, mas houve problemas de entendimento entre as
partes, o que resultou em conflito com mortes. Os Banawa, também da família linguística
Arawá, dizem entender parcialmente a língua falada pelos Hi-Merimã e afirmam
que mantiveram relações com eles, podendo descrever características do modo de
ser desses índios que voltaram ao isolamento. Os índios Zuruahã, da mesma
família linguística e seus vizinhos a oeste, relatam histórias de hostilidades
entre eles.
A partir desses relatos, pode-se
perceber que a ideia de que há índios isolados desde a chegada dos portugueses
ou sociedades mantidas à margem de todas as transformações ocorridas desde
então, é enganadora. Os grupos considerados isolados travaram, muitas vezes,
relações de longa data com segmentos da sociedade nacional, tendo
posteriormente optado pelo isolamento. Os Apiaká do Matrinxã, por exemplo,
tiveram contatos com a sociedade regional, sofreram muito e resolveram fugir e
isolar-se de novos contatos. A mesma história é atribuída aos Katawixi. Assim,
o isolamento representa, em muitos casos, uma opção do grupo, que pode estar
pautada pelas suas relações com outros grupos, pela história das frentes de
ocupação na região onde vivem e também pelos condicionantes geográficos que
propiciam essa situação. A noção de isolados, portanto, diz respeito ao contato
regular, principalmente com a FUNAI.
O que tem ocorrido com alguma freqüência
é a tentativa da FUNAI de realizar o contato com grupos que se encontram em
situações de risco, porém muitos recusam essa aproximação.
Um caso de opção pelo isolamento
também pode ser observado na região do Tanaru, sul do estado de Rondônia.
Trata-se não de uma sociedade, mas, mas de um único homem sobrevivente. Tudo
leva a crer que o seu povo desapareceu devido à violência e à ganância dos
pecuaristas que ocuparam a região. Desde 1996, a FUNAI vem tentando lhe
oferecer assistência, mas todas as vezes que seu acampamento foi identificado
ele o abandonava. Mostrou-se absolutamente avesso ao contato, embora aceitasse
alguns presentes dos sertanistas, como panelas e facões.
Depois de serem contatados, os povos
indígenas ficavam sob proteção da FUNAI, que não dispunha, no entanto, de uma
política especial voltada para eles. Assim, com freqüência, esses povos acabavam
sofrendo com epidemias e invasões em terras, além dos inúmeros problemas
decorrentes da intensificação do contato e da sedentarização.
A partir da avaliação da situação de
extrema fragilidade a que os grupos recém contatados estavam sujeitos, a então
Coordenadoria Geral de Índios isolados (CGII) da FUNAI passou a dispensar
assistência diferenciada aos Zo’é, no Pará; aos Kanoê e aos Akuntsu de
Rondônia, contatados há mais de 10 anos; e um pequeno grupo Korubo, localizado
no Vale do Javari (AM).
Os Zo’é, grupo tupi-guarani
localizado na bacia do Cuminapanema (PA), foram contatados pela FUNAI em 1989,
mas já estabeleciam relações com missionários protestantes estado-unidenses
desde 1982. Os Zo’é entraram para a história como um dos últimos povos “intactos”
na Amazônia. Os contatos com os não indígenas foram largamente noticiados pela
mídia, que, em 1989, divulgou as primeiras imagens deste povo tupi, que até
então vivia em situação de isolamento.
Os primeiros contatos da FUNAI com
os Kanoê também possibilitaram o encontro com outro povo, os Akuntsu. Em 1985
foi instituída oficialmente a frente de atração responsável pelo contato com
povos desconhecidos que circulavam pela região de Corumbiara, no sudeste de
Rondônia. Embora essas informações já fossem de conhecimento da FUNAI desde a
década de 1970, relatos de 1984 reiteraram a presença de grupos isolados nas
matas das reservas legais de fazendas na região, que vinham sendo desmatadas
para a comercialização de madeira e a implementação de pecuária. Em 1986 foi
desinterditada à área destinada aos contatos com estes grupos.
Em 1995, a partir da análise de
imagens de satélite, os indigenistas Marcelo dos Santos e Altair Algayer
conseguiram identificar a área de ocupação Kanoê e entrar em contato com eles.
Durante as primeiras conversas, os Kanoê informaram aos indigenistas que
próximo dali havia outro grupo indígena que chamavam de Akuntsu. Em seguida, outra
expedição alcançou as pequenas malocas dos Akuntsu, que somavam então sete
pessoas.
Os Korubo se tornaram famosos na mídia
nacional e internacional quando uma parcela de sua população foi contatada, em
1996, por uma expedição promovida pela FUNAI, e coordenada pelo sertanista
Sydney Possuelo. A expedição foi acompanhada por repórteres da revista National
Geographic, que transmitiu o evento ao vivo e online para todo o mundo.
Conhecidos como “índios caceteiros”, por não usarem arcos, os Korubo travam, há
décadas, uma guerra contida com a população regional, apesar de tentativas
mútuas de aproximação. Este pequeno grupo contatado contava em 2007 com 26
pessoas e separou-se do grupo original, que permanece isolado.
Em julho de 2006, foi criada a Coordenadoria
Geral de Índios Recém Contatados, subordinada à Diretoria de Assistência da
FUNAI e coordenada pelo antropólogo Artur Nobre Mendes. Seu objetivo era a “proteção
dos grupos e povos indígenas contatados no passado recente e que vivem em
relativo estado de autonomia político-cultural e, ao mesmo tempo, sem o
completo domínio das forças sociais dominantes que os circundam”.
Compreendia-se, neste contexto, como recém-contatados, os grupos que estabeleceram
contatos permanentes com a sociedade nacional após a criação da FUNAI, em 1967.
Entre outros motivos que levaram à criação dessa coordenação, estava o fato de
que os inúmeros contatos realizados na década de 1970 e meados de 1980
ocorreram em situações de extrema vulnerabilidade desses grupos,
particularmente por causa da pressão das frentes de expansão econômica. Como
não havia políticas específicas para essas populações, cujas realidades sociais
eram bastante distintas, a vulnerabilidade continuou. Além disso, a
participação de grupos recém contatados nos programas do governo e nas ações da
FUNAI ficava comprometida frente a melhor articulação de outros povos.
Esta Coordenadoria, entretanto, não
foi implementada na época. Foi somente a partir de dezembro de 2009, com a
reestruturação da FUNAI, que o órgão indigenista incluiu no campo de ação da
CGII as populações de recente contato. Dessa forma, este órgão passou a ser
chamado de Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC).
Nos últimos anos, aumentou o número
de populações que passam a reivindicar pública e oficialmente a condição de
indígenas no Brasil. Trata-se de famílias que, miscigenadas e territorialmente
espoliadas ao longo do tempo, reencontram, no presente, contextos políticos e
históricos favoráveis à retomada de suas identidades coletivas indígenas.
O processo não é exclusividade do
Brasil; casos semelhantes são conhecidos em outros Estados nacionais
contemporâneos como, por exemplo, na Bolívia e na Índia.
Em nosso país, esse fenômeno surge
de modo mais evidente nas últimas décadas, quando as histórias regionais passam
a ser reestudadas; os direitos indígenas, mais reconhecidos e respeitados; e as
organizações de apoio aos índios se consolidam de forma mais efetiva e passam a
ser agentes importantes da causa indígena.
Embora, o governo atual do
presidente Jair Bolsonaro tenha apresentado vários retrocessos na causa
indígena no país, onde ocorre aumento de garimpos ilegais em Territórios Indígenas
e desmatamento em reservas naturais, assim como extração ilegal de madeira,
levando a vários problemas de ordem ambiental que acarretaram perigo a
sobrevivência de várias nações indígenas no Brasil.
Fontes:
Toda Matéria. Disponível
em: https://www.todamateria.com.br/estado-natureza/amp/.
Acesso em: 07 de maio 2022.
Povos Indígenas no
Brasil – ISA. Disponível em: https://pib.socioambiental.org.
Acesso em 05 de maio 2022. E também em: https://pib.socioambiental.org/pt/Quem_s%C3%A3o#:~:text=Atualmente%20encontramos%20no%20territ%C3%B3rio%20brasileiro,da%20popula%C3%A7%C3%A3o%20total%20do%20pa%C3%ADs.
Acesso em: 07 de maio 2022.
ISA – Instituto
Socioambiental – atua desde 1994 ao lado de comunidades indígenas, quilombolas
e extrativistas, parceiros históricos para desenvolver soluções que protejam
seus territórios, fortaleçam sua cultura e saberes tradicionais, elevem seu
perfil político e desenvolvam economias sustentáveis.