sábado, 27 de maio de 2017

UM PROFESSOR ANARQUISTA POR UMA PEDAGOGIA LIBERTÁRIA

Mestre e doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, o filósofo Sílvio Gallo é atualmente professor livre-docente na Unicamp e fala à revista FILOSOFIA Ciência & Vida sobre o início de sua trajetória profissional na área filosófica. Relembra sua vida estudantil, quando ainda estudava no curso de técnico em Química, e o início do seu contato com a Filosofia, o que o levou a seguir profissionalmente neste campo do saber, lecionando desde a educação básica até o ensino superior. Ao longo da entrevista, aborda, entre outros assuntos, as contribuições que o pensamento anarquista pode proporcionar para refletirmos sobre a educação do nosso país na atualidade. Analisa a presença da Filosofia no currículo do ensino médio brasileiro e comenta sobre a experiência de escrever o seu segundo livro didático para o respectivo nível de ensino. Ainda sobre a presença da Filosofia no Ensino Médio, reflete a respeito dessa disciplina ser trabalhada na perspectiva da criação de conceitos, definindo a Filosofia como um conjunto de ferramentas conceituais que poderão servir como instrumentos que não resolverão os problemas da atualidade, mas que contribuirão “para enfrentá-los, trabalhá-los, investigá-los”. Ao final da entrevista, Gallo reflete sobre a importância do pensamento dos filósofos franceses e destaca, especialmente, as contribuições que o filósofo René Schérer pode trazer para pensarmos a temática referente à Filosofia da Educação. 



FILOSOFIA • O que despertou o seu interesse em estudar Filosofia e em seguir nesta carreira profissionalmente?
Gallo • Fui estudar Filosofia porque durante o Ensino Médio estudei muito pouco a área de Humanas. Fiz um curso técnico em Química, de excelente qualidade, mas com carga horária mínima para Humanas: duas aulas semanais de História no primeiro ano, duas de Geografia no segundo ano e, no terceiro, uma aula de Educação Moral e Cívica e uma aula de Organização Social e Política do Brasil. Tínhamos aula em período integral, de segunda a sexta-feira das 8h às 18h e aos sábados das 8h às 12h, e apenas essa carga horária em Ciências Humanas. Isso, claro, em plena ditadura.
Quando terminei o curso fui trabalhar como técnico em química e sabia que não queria fazer curso superior na área; gostava da Química, mas achava que tinha aprendido o que queria. Durante um ano, optei por não ir à universidade e nesse período acabei fazendo alguns cursos livres de Astronomia, ciência pela qual me apaixonei. Em alguns desses cursos, estudei cosmologia e vimos as teorias gregas antigas sobre o universo, bem como as bases filosóficas da Física moderna e contemporânea. Isso despertou muito minha atenção. De modo que resolvi ir à universidade, cursar um bacharelado em Física para posteriormente fazer uma pós-graduação em Astrofísica. Como segunda opção, Filosofia, por puro deleite intelectual e nenhuma intenção profissional. Por uma série de questões práticas e familiares, desisti de cursar Física e resolvi, então, investir naquela que seria a segunda opção.
Na época, o único curso de Filosofia em Campinas era o da PUC, que tinha uma turma noturna, o que era conveniente para mim, pois trabalhava em indústria química. Esse curso era uma licenciatura, e então fui cursar a Licenciatura em Filosofia, mas por puro acaso e sem qualquer interesse profissional. Durante o curso, descortinou-se para mim ­outro universo da Filosofia, muito mais abrangente que meu interesse inicial em Cosmologia e Filosofia da Ciência. E, pouco a pouco, a paixão pela Filosofia foi aumentando, ao mesmo tempo em que crescia meu desinteresse pela Química. No final do curso, em 1986, o rumo estava traçado: cursar o mestrado em Filosofia da Educação na Unicamp e dar aulas de Filosofia. Deixei definitivamente para trás minha carreira como técnico em química.

FILOSOFIA • No período compreendido entre os anos de 1987 e 1992, você lecionou Filosofia em algumas escolas de Campinas (SP). Poderia dizer como foi essa experiência docente no ensino médio? Que aprendizados essa experiência trouxe para a sua vida?
Gallo • Comecei, na verdade, em 1987, a dar aulas numa escola pública estadual, de Educação Moral e Cívica e OSPB, para as séries finais do então primeiro grau e para o segundo grau. Minha intenção era desconstruir essas disciplinas da ditadura, trabalhando com conteúdos de Ética na primeira e de Filosofia Política na segunda. Tive mais sucesso com os alunos do segundo do que com os do primeiro grau. Depois de alguns meses, consegui uma bolsa de mestrado e fui obrigado a deixar as aulas.
No ano seguinte, fui convidado para lecionar Filosofia nas três séries do segundo grau em um colégio particular de Campinas. Ali trabalhei por cinco anos, enquanto fiz meu mestrado e boa parte do doutorado. Foi lá que aprendi, de fato, a ser professor. Despertou meu gosto de trabalhar com os alunos jovens, de estudar Filosofia com eles, de explorar o mundo e o pensamento. Posso dizer que essa experiência mudou minha vida, fazendo-me ser o que sou hoje, pensar o que penso, agir da forma como ajo. Consolidou também meu interesse pelo campo da Educação, fazendo-me permanecer no doutorado em Filosofia da Educação após terminar o mestrado.
Embora tenha depois passado a trabalhar no ensino superior, essa experiência foi marcante. Fui ­trabalhar no curso de Filosofia na Universidade Metodista de Piracicaba (onde fiquei por 15 anos, de 1990 a 2005), que era (e continua sendo) uma licenciatura. Resolvi que não poderia repetir ali o que eu tinha experimentado na PUC, uma licenciatura que funcionava como bacharelado. Isso nos fez realizar várias iniciativas, como a criação do Grupo de Estudos sobre ensino de Filosofia (GESEF), um dos pioneiros nos anos 1990 a trabalhar com esse tema. Isso, claro, com todas as dificuldades impostas pela realidade de uma instituição privada. Na Unicamp, onde estou desde 1996 (desde 2005 em tempo integral, depois que deixei a Unimep) na Faculdade de Educação, meu foco é a Filosofia da Educação, mas o ensino de Filosofia continua a ser uma das linhas de pesquisa a que me dedico.


FILOSOFIA • Em seus estudos de mestrado e doutorado, você abordou o pensamento anarquista vinculado à Educação. De que modo a teoria anarquista pode contribuir para pensarmos a Educação de nosso país atualmente?
Gallo • O pensamento anarquista nos coloca na dimensão de uma educação que pode ser vista como pública, antes de ser estatal. Isso é, pensamos a educação pública como um dever do Estado e então a sociedade se desobriga; mas podemos tomá-la em nossas mãos, com a comunidade definindo, de fato, os rumos da educação de seus filhos. Penso que esse é um dos nossos grandes desafios hoje.
Por outro lado, o anarquismo nos coloca na direção de um pensamento autônomo, da necessidade de se pensar por si mesmo. Penso que não há outra possibilidade concreta para a Filosofia senão investir nesse pensamento autônomo, para que o ensino de Filosofia nos coloque numa dimensão libertária da Educação.
Enfim, como não temos condições de nos estender demais sobre o tema, podemos pensar práticas libertárias na relação entre professores e alunos, práticas concretas que podem ser realizadas no ­cotidiano da sala de aula. Praticar relações libertárias na escola ajuda a produzir outra educação, mais aberta, mais livre, mais dinâmica.

FILOSOFIA • Com relação à presença da Filosofia no currículo do Ensino Médio brasileiro, como você avalia a conquista de espaço dentro das escolas, após o término do período de adaptação à exigência da Lei 11.684/08?
Gallo • Em minha avaliação, estamos caminhando razoavelmente bem. É verdade que neste país enorme, a diversidade é imensa e há lugares com avanços interessantes e outros em que muito ainda precisa ser feito. Claro, nas regiões onde há cursos de Filosofia, avança-se mais e programas como o PIBID (Programa de Bolsas de Iniciação à Docência) têm feito uma imensa diferença, provocando efeitos muito interessantes, tanto na formação do futuro professor de Filosofia quanto nas escolas de Ensino Médio que recebem estagiários do PIBID. Penso que os impactos desse programa já estão sendo percebidos, mas que nos próximos anos teremos sua real dimensão. Para o campo do ensino de Filosofia, ele está sendo fundamental.
Por outro lado, em cidades e regiões onde não há cursos de Licenciatura em Filosofia, temos muitos professores não habilitados e, em alguns casos, a situação chega a ser calamitosa. Mas o problema precisa ser enfrentado, buscando-se a capacitação desses professores não habilitados, num primeiro momento, e a habilitação de professores de Filosofia para atender a essas regiões, em médio prazo.
Enfim, os desafios são grandes. Mas eles só estão postos porque a longa mobilização para que a Filosofia estivesse presente no Ensino Médio brasileiro teve sucesso.


FILOSOFIA • Recentemente você publicou, pelo Plano Nacional do Livro Didático – (PNLD) 2015, o livro intitulado Filosofia: experiência do pensamento. Como foi a investida nessa nova forma de publicação? Qual é a proposta didática, no âmbito da Filosofia, que apresenta no respectivo livro?
Gallo • A construção do livro foi um grande desafio. Já havia tido a experiência de produzir um livro didático para Filosofia, Ética e Cidadania – caminhos da Filosofia, publicado em 1997 e que já teve mais de 20 edições. Mas foi algo muito diferente: escrevemos em grupo, para uma realidade em que a Filosofia era disciplina optativa e na maior parte do tempo oferecida em apenas um ano. O livro está dimensionado para isso.
Agora, tratou-se de preparar um livro para os três anos do ensino médio, segundo as orientações do MEC para os livros didáticos de Filosofia, a partir de uma concepção definida de ensino de Filosofia e procurando diferenciar-se de outros bons livros disponíveis no mercado, três deles já aprovados no PNLD anterior. Foi uma grande alegria ver o livro aprovado, pois a avaliação feita pelos especialistas é muito criteriosa e a aprovação indica que o livro tem respeitabilidade na área. Espero que ele se constitua em uma alternativa para os professores de Filosofia que desejem trabalhar de um modo problemático e com uma abordagem mais contemporânea.
A proposta didática foi pensada segundo algumas premissas: tomar a Filosofia como atividade conceitual e seu ensino como um impulso à experimentação do pensamento; centrar-se em problemas vividos, buscando conceitos que nos ajudem a enfrentá-los; dialogar com a história da Filosofia, mas desde uma perspectiva contemporânea; sem deixar de lado os pensadores clássicos, trabalhar também com autores contemporâneos, tentando com isso mostrar a Filosofia como algo vivo, dinâmico, vibrante, que pensa nosso mundo e nosso tempo. Com tudo isso, propor um estudo da Filosofia visando à construção do pensamento próprio e autônomo, mas por meio da leitura de textos dos filósofos e da produção de textos próprios.

FILOSOFIA • Com base no pensamento dos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, você defende que a Filosofia se constitui como uma atividade de “criação de conceitos”. Poderia nos explicar como o docente de Filosofia pode desenvolver essa postura filosófica nas aulas de Filosofia do Ensino Médio?
Gallo • Penso que se a Filosofia é uma atividade, ela não pode ser apresentada aos estudantes como algo pronto, finalizado, acabado. Precisamos provocar o pensamento, “empurrar” os alunos para a Filosofia. E podemos fazer isso os trazendo para os problemas, tornando-os sensíveis aos problemas ou tornando-nos, nós, professores, sensíveis aos problemas que eles trazem. E apresentar a Filosofia como um conjunto de ferramentas conceituais que são instrumentos não para resolver esses problemas, mas para enfrentá-los, trabalhá-los, investigá-los.
Sinceramente, não vejo como a Filosofia possa ser outra coisa, principalmente se queremos que os jovens se interessem por ela. Se for apenas mais um conjunto de informações que vão cair na prova, no vestibular ou no Enem, não faz qualquer sentido.


FILOSOFIA • Já existe alguma prática filosófica escolar permeada pela Filosofia como “criação de conceitos”? Se existir, como avalia a aplicação e o desenvolvimento dessa metodologia?
Gallo • Poderia falar de muitas experimentações nessa direção, mas não temos espaço suficiente, então destacarei algumas iniciativas. Há anos o Estado do Paraná definiu suas diretrizes curriculares para o ensino de Filosofia e elas foram pensadas segundo essa perspectiva. Desde então, os professores daquele Estado têm trabalhado nessa direção, alguns com avanços muito interessantes, com experimentações surpreendentes, outros com muitas dificuldades. Isso é inevitável.
Em outubro de 2014, durante o encontro da ANPEd Sudeste em São João del-Rei, tive um encontro com a professora responsável pelos estágios e pelo PIBID de Filosofia da UFJF, bem como com um grupo de alunos de Filosofia e duas professoras de Filosofia da rede pública da cidade, que recebem os estagiários da Universidade. Eles me relataram que estão trabalhando nessa perspectiva de ensino de Filosofia e realizando vários projetos nas escolas, com resultados interessantes.
Também em outubro de 2014, a Anpof realizou seu encontro bienal e, pela segunda vez, aconteceu a Anpof Ensino Médio, com apresentação de trabalhos de professores de Filosofia no Ensino Médio e minicursos. Tive a oportunidade de oferecer um ­minicurso com o título Ensino de Filosofia e Experimentação Conceitual e, ao longo de três dias, trabalhar com professores de Filosofia de vários Estados brasileiros. Também assisti a apresentações de trabalhos relatando experiências como essa perspectiva de ensino de Filosofia, pensada e praticada de diversas formas, o que mostra que temos tido avanços interessantes nesse campo.

FILOSOFIA • No ano de 2014, você organizou o livro intitulado As diferentes faces do racismo e suas implicações na escola. O tema do racismo certamente está bastante em voga no momento. De que modo a Filosofia na escola pode contribuir para problematizar as questões referentes ao preconceito, e não só o racial?
Gallo • Esse livro foi organizado a partir de trabalhos do grupo de pesquisa que coordeno na Faculdade de Educação da Unicamp, o DiS – Grupo de Estudos e Pesquisas Diferenças e Subjetividades em Educação, sendo o tema do racismo um daqueles a que nos dedicamos. Pensamos o racismo em sentido amplo, como o exercício de práticas preconceituosas contra aqueles que são diferentes. O racismo mostra uma reação daqueles que não sabem conviver e compartilhar os espaços com aqueles que são diferentes, em qualquer aspecto.
Penso que as aulas de Filosofia podem proporcionar nas escolas espaços para pensar essa problemática. Claro que ela não pode ser enfrentada apenas pela Filosofia, trata-se de um problema a ser enfrentado pelo conjunto das disciplinas e pela comunidade escolar como um todo, mas a Filosofia pode contribuir com uma abordagem conceitual em torno das diferenças e das multiplicidades que permitem que se veja de outra maneira.
No livro didático, a propósito, há capítulos escritos com essa intenção, por exemplo, ao problematizar a sexualidade e as múltiplas formas de vivenciá-la.

FILOSOFIA • Nos últimos anos, além de debater sobre a Filosofia no Ensino Médio, você tem dedicado seus estudos sobre os filósofos franceses (como Michel Foucault, Gilles Deleuze, entre outros). Embora suas teorias não estejam vinculadas diretamente ao campo educacional, de que modo o pensamento desses filósofos pode contribuir para pensarmos a área da Educação?
Gallo • Dedico-me ao estudo da Filosofia francesa contemporânea desde os tempos da graduação em ­Filosofia. Esses filósofos me acompanham desde ­então, estão presentes em minhas pesquisas no mestrado e no doutorado, ainda que não tenham sido o foco principal. Nos últimos anos, o que fiz foi ­desenvolver estudos mais sistemáticos, principalmente de ­Deleuze e de Foucault, no campo da Filosofia da Educação.
Penso que suas filosofias, embora não sejam filosofias da educação, oferecem ferramentas conceituais muito interessantes para pensarmos os problemas educacionais, e é isso que tenho me esforçado em demonstrar, experimentando a potência de certos conceitos produzidos por eles para pensar problemas que eles não pensaram. É o que ­poderíamos chamar de uma prática de “deslocamentos conceituais”, tirar certos conceitos de seu campo problemático original e fazê-los funcionar em outro campo problemático. Segundo Deleuze, isso já é uma atividade criativa, pois quando um conceito é deslocado, ele é profundamente transformado, acaba recriado, torna-se, de fato, outro conceito.


FILOSOFIA • Para finalizar, recentemente você pesquisou o pensamento do filósofo contemporâneo René Schérer [professor emérito da Universidade de Paris 8]. O que a Filosofia de Schérer apresenta de novo para as discussões referentes ao campo da Filosofia da Educação?
Gallo • René Schérer é uma figura apaixonante. Com mais de 90 anos, segue dando um seminário de doutorado todo ano na universidade, com uma vitalidade impressionante. Inquieto, está sempre pensando coisas novas e instigando os alunos de seu seminário.
Infelizmente, é pouco conhecido no Brasil, bem menos que os filósofos de sua geração, que já faleceram e dos quais foi colega (em alguns casos, amigo), como Foucault, Deleuze, Derrida, por exemplo. Apenas um de seus livros foi traduzido no Brasil (­Infantis, Ed. Autêntica, 2009), mas ele é autor de aproximadamente 30 livros, sobre variados ­assuntos, bem como diversos artigos. Dedicou-se a temas como a fenomenologia, a comunicação, a hospitalidade, a infância, o anarquismo no pensamento, a estética, a homossexualidade.
Para o que concerne à educação, publicou algumas obras importantes, de modo especial o livro Émile Perverti (1974, reedição revista em 2006), uma dura crítica à pedagogia moderna, que promove uma “perversão da infância”, ao colocar as crianças num molde produzido pelos adultos. O antídoto ele encontrou no utopista francês do século XVIII, Charles Fourier, cuja obra ele tratou de recolocar em circulação na França: pensar uma “infância maior”.
Schérer também não foi um filósofo da educação; mas estou preparando um livro sobre sua obra e seu pensamento, defendendo que podemos perceber uma filosofia da educação em sua trajetória. Uma filosofia da educação crítica do status quo, de um processo educativo que opera segundo aquilo que ele denomina o “dispositivo pedagógico” (tomando de Foucault o conceito de dispositivo e fazendo-o operar na problemática educativa; um exemplo daquilo que chamei anteriormente de “deslocamento conceitual”) e propositiva de um pensamento inventivo e criativo, de um processo educativo que tome as crianças não como seres a serem desenvolvidos e educados para tornarem-se maiores, adultos, mas como seres de desejos e de vontades, que produzem um mundo e suas relações. Uma educação que não defina a priori um processo que deve ser seguido por todos, mas que acompanhe passo a passo as criações das próprias crianças, aprendendo também com elas.
Com Schérer, encontrei outra maneira de pensar o anarquismo (ele afirma em livros do final da década passada que o pensamento é anárquico em sua própria natureza, uma vez que não tem princípios) e a autonomia, novas formas de pensar a educação numa perspectiva libertária. Além disso, ele nos traz também importantes contribuições para pensar o trabalho do professor de Filosofia, isso que ele fez toda sua vida, tanto na educação média como na universidade, investindo no pensamento próprio de cada um, que pode ser experimentado em experiências comunitárias e coletivas, sem deixar de ser singular.



Revista Filosofia Ciência & Vida Ed. 104


PROPOSTA ANARQUISTA DE EDUCAÇÃO: A PEDAGOGIA LIBERTÁRIA


PEDAGOGIA LIBERTÁRIA: PRINCÍPIOS
POLÍTICO-FILOSÓFICOS

Sílvio Gallo 



Toda Filosofia da Educação está amparada, necessariamente, numa Antropologia Filosófica; isto equivale a dizer que, anterior a todo e qualquer intento de educação, subjaz uma concepção de homem. Kant já se perguntava: "que é o homem, para que seja educado?", dando a real dimensão que uma antropologia assume para qualquer processo pedagógico. Se a educação é um processo formador de pessoas, de homens, precisamos saber, de antemão, o que é e quem é esse homem que pretendemos formar. Acontece que ao pensarmos nosso conceito de homem, deparamo-nos com a questão política: tal conceito está estreitamente relacionado com a sociedade na qual este homem está ou estará inserido. Abrem-se então duas possibilidades fundamentais para nosso processo educacional: ou formar homens comprometidos com a manutenção desta sociedade ou formar homens comprometidos com sua transformação.
Na história da filosofia e da educação, podemos identificar duas concepções fundamentais acerca do conceito de homem: a concepção essencialista, segundo a qual aquilo que é o homem é definido por uma essência anterior e exterior a ele e a concepção existencialista, segundo a qual o homem define-se apenas a posteriori, através de seus atos, construindo paulatinamente a essência do que é ser homem de dentro para fora. A título de exemplo, a primeira perspectiva fundamenta a teoria educacional que Platão apresenta em A República, base da educação jesuíta e de todo o sistema tradicional de ensino; já a perspectiva existencialista é inaugurada com Rousseau em seu Emílio, ou da Educação, constituindo o fundamento das teorias e práticas pedagógicas que em Educação chamamos de escola nova.

A Educação Anarquista ou Pedagogia Libertária inscreve-se no contexto das teorias modernas da educação. Neste sentido, possui uma fundamentação filosófica e política que lhe é própria, embora esta fundamentação esteja relacionada com outras teorias e práticas pedagógicas que lhe são contemporâneas. É necessário, portanto, saber distingui-la de outras teorias educacionais.


 
A EDUCAÇÃO INTEGRAL

O fundamento da educação libertária é o conceito de educação integral que, de acordo com Paul Robin, é o resultado de um longo processo de evolução, em que diversos educadores, ao longo do tempo, foram levantando ideias e tecendo considerações que, em pleno século dezenove, já amadurecidas, puderam ser sistematizadas numa teoria orgânica:

          "A ideia de educação integral só há pouco tempo alcançou sua completa maturidade. Rabelais, provavelmente, é o primeiro autor a dizer algo sobre ela; com efeito, lemos em suas obras que Ponocrates ensinava a seu aluno as ciências naturais, a matemática, fazia-o praticar todos os exercícios corporais e aproveitava os dias de tempo chuvoso ‘para fazê-lo visitar as oficinas e se pôr a trabalhar’. Porém, essa concepção requer um desenvolvimento e que seja aplicada a todos os homens. A este respeito resta ainda muito a dizer, inclusive mais tarde o Emílio, em que o autor consagra todas as faculdades de um homem para educar a um só, num meio preparado artificialmente para este objetivo."

O conceito de homem que sustenta tal teoria fica muito claro para Robin:

          "A ideia moderna - de educação integral - nasceu do sentimento profundo de igualdade e do direito que cada homem tem, quaisquer que sejam as circunstâncias de seu nascimento, de desenvolver, da forma mais completa possível, todas as faculdades físicas e intelectuais. Estas últimas palavras definem a Educação Integral."

A concepção de homem que subjaz à teoria da educação integral é decorrente do humanismo iluminista do século dezenove, percebendo-o como um "ser total"; o homem é concebido como resultado de uma multiplicidade de facetas que se articulam harmoniosamente e, por isso, a educação deve estar preocupada com todas estas facetas: a intelectual, a física, a moral etc. Ferrer i Guàrdia aponta a necessidade de a educação estar atenta a todas elas:

          "Ademais, não se educa integralmente ao homem disciplinando sua inteligência, fazendo caso omisso do coração e relegando a vontade. O homem, na unidade de seu funcionalismo cerebral, é um complexo; tem várias facetas fundamentais, é uma energia que vê, afeto que rechaça ou adere ao concebido e vontade que faz ato o percebido e amado."

Politicamente, a educação integral define-se já de saída: baseia-se na igualdade entre os indivíduos e no direito de todos a desenvolver suas potencialidades. Se vivemos uma sociedade desigual e na qual nem todos podem desenvolver-se plenamente, a educação integral deve assumir, necessariamente, uma postura de transformação e não de manutenção desta sociedade. O mesmo Ferrer i Guàrdia reconhece que:

          "Não tememos dizê-lo: queremos homens capazes de destruir, de renovar constantemente os meios e a si mesmos; homens cuja independência intelectual seja a força suprema, que jamais sujeitem-se a nada; dispostos sempre a aceitar o melhor, desejosos do triunfo das ideias novas e que aspirem a viver múltiplas vidas em uma única. A sociedade teme tais homens: não se pode, pois, esperar que queira jamais uma educação capaz de produzi-los."

Como o socialismo libertário vê no homem alienado um dos pilares da sociedade de exploração, a educação deve ser um instrumento para a superação dessa alienação. A educação integral é o caminho para esta superação, e um passo na transformação desta sociedade, pois pretende educar ao homem sem separar o trabalho manual do trabalho intelectual, pretende desenvolver as faculdades intelectuais, mas também desenvolver as faculdades físicas, harmonizando-as. E, além disso, pretende ainda trabalhar uma educação moral, uma formação para a vida social, uma educação para a vivência da liberdade individual em meio à liberdade de todos, da liberdade social.

Já em meados do século dezenove Proudhon começa a discutir as bases de uma educação integral. Para o filósofo francês, a educação tem a função de produzir o homem como uma representação das relações sociais e é, portanto, a função mais importante da sociedade, pois é uma das condições básicas de sua manutenção e da perpetuação de sua existência:

          "Toda educação tem por objetivo produzir o homem e o cidadão - segundo uma imagem, em miniatura, da sociedade - pelo desenvolvimento metódico das faculdades físicas, intelectuais e morais das crianças. Noutros termos: a educação é criadora de costumes no sujeito humano(...) A educação é a função mais importante da sociedade(...) Aos homens só é necessário o preceito, à criança é necessária a aprendizagem do próprio dever, o exercício da consciência como do corpo e do pensamento."

Para Proudhon e para a filosofia política anarquista em geral a sociedade não é resultado de um contrato que reduz a liberdade dos indivíduos com seu consentimento, mas sim de um processo constante de produção coletiva de cultura e humanização. Assim, a educação, que é a transmissão da carga cultural da humanidade, é um dos seus pontos centrais de existência: sem a educação não há transmissão da cultura, não havendo avanço, mas retrocesso e, com isso, uma desestruturação da sociedade rumo à barbárie.
Com essa visão de educação e de sociedade, Proudhon empreende uma análise crítica da educação fornecida pelo capitalismo. É óbvio que esta sociedade hierarquizada preconizará uma educação hierarquizada. A classe dominante precisará receber, por intermédio da educação, os meios e os conhecimentos necessários para dominar todo o processo de produção, circulação e consumo, podendo manter-se em posição de proprietária e gerente dos meios de produção. As classes operárias, por outro lado, devem receber apenas a instrução necessária para a realização das tarefas a que estão destinadas. Em termos de cultura, trata-se de manter as classes dominadas, em sua ignorância, numa condição de "sub-humanidade", para que não tenham consciência de seu direito à liberdade e à igualdade. Para dizer de outra maneira, a educação capitalista sustenta e reforça o sistema de divisão social do trabalho, fonte da alienação.
A proposta de uma nova educação deve, portanto, ser capaz de superar o fenômeno da alienação. Para Proudhon, o caminho está na defesa intransigente do trabalho artesanal, processo no qual o artesão domina a totalidade do processo do trabalho. Segundo ele, se tomarmos o trabalho manual como um instrumento de aprendizagem teremos uma educação muito mais completa, que não dicotomizará a realidade em duas facetas irreais, se tomadas inarticuladamente: o racional e o físico. Por outro lado, uma pessoa que domine tanto o conhecimento teórico quanto o conhecimento prático é uma pessoa completa, que não é deficiente em nenhum dos dois aspectos.

          "O trabalho(...) resumindo a realidade e a ideia, apresenta-se(...) como modo universal de ensino(...) De todos os sistemas de educação, o mais absurdo é o que separa a inteligência da atividade e separa o homem em duas entidades impossíveis: um abstraidor um autômato(...) Se a educação fosse, antes de tudo, experimental e prática, reservando os discursos somente para explicar, resumir e coordenar o trabalho; se permitissem aprender pelos olhos e pelas mãos a quem não pudesse aprender pelos olhos e pela memória, em breve veríamos(...) multiplicarem-se as capacidades."

É neste contexto que Proudhon proporá uma aprendizagem politécnica, o ensino das diversas técnicas de produção manual, aliada à formação cultural que privilegie o "desenvolvimento das faculdades físicas, intelectuais e morais da criança" que consistem na base da educação integral. Mas o que ele ainda não conseguia vislumbrar era o fato de que o sistema artesanal estava definitivamente superado; a revolução industrial havia já instaurado a divisão de funções de forma irreversível. Era necessária uma nova fundamentação para a educação integral, que não significasse a defesa de um processo ultrapassado. É Bakunin quem vai tornar mais contemporânea - em termos de segunda metade do século dezenove - a fundamentação desta proposta educacional. Sem abdicar da defesa da articulação entre trabalho manual e trabalho intelectual como possibilidade de superação da alienação, o anarquista russo inovará com sua concepção de homem, fugindo completamente do contexto naturalista da filosofia política liberal.
Ao tratar o homem como um produto social, Bakunin assume uma perspectiva dialética que coloca a questão antropológica para além da oposição essencialismo/existencialismo que citamos antes; nesse contexto, aquilo que é o homem comporta tanto características a priori quanto características resultantes de escolhas e atos a posteriori, levando a um conceito de educação integral muito mais complexo e completo.


O HOMEM COMO PRODUTO SOCIAL

A filosofia política de tradição burguesa trabalha com a categoria de um "estado natural"; no caso das desigualdades sociais, é comum encontrarmos análises que colocam-nas como "naturais": todos os homens são naturalmente diferentes, e as diferenças nas condições sociais são nada mais nada menos do que extensões destas diferenças naturais. Sendo assim, o sucesso ou o fracasso, o domínio ou não do saber, a riqueza ou a miséria são simplesmente o fruto do trabalho de cada homem, trabalho este que se processa de acordo com as características e "aptidões naturais" deste homem. Naturalmente, então, a sociedade será desigual, pois os homens são desiguais: um é rico porque teve aptidão suficiente para aproveitar as oportunidades que lhe apareceram; outro é um miserável operário porque suas características naturais assim o determinaram. A sociedade e a cultura são um simples reflexo da natureza.
Bakunin insurge-se contra essas afirmações. Para ele o homem é um produto social e não natural. É a sociedade que molda os homens, segundo suas necessidades, através da educação. E se a sociedade é desigual, os homens serão todos diferentes e viverão na desigualdade e na injustiça, não por um problema de aptidões, mas mais propriamente por uma questão de oportunidade. Não podemos mudar a "natureza humana", mas podemos mudar aquilo que o homem faz dela na sociedade: se a desigualdade é natural, estamos presos a ela; mas se é social, podemos transformar a sociedade, proporcionando uma vida mais justa para todos os seus membros. Bakunin procura mostrar que o homem é determinado socialmente:

          "Tomando a educação no sentido mais amplo desta palavra, incluindo nela não somente a  instrução e as lições de moral, mas ainda e sobretudo os exemplos que dão às crianças  todas as pessoas que as cercam, a influência de tudo o que ela entende do que ela vê, e não somente a cultura de seu espírito, mas ainda o desenvolvimento de seu corpo, pela alimentação, pela higiene, pelo exercício de seus membros e de sua força física, diremos com plena certeza de não podermos ser seriamente contraditados por ninguém: que toda criança, todo adulto, todo jovem e finalmente todo homem maduro é o puro produto do mundo que o alimentou e o educou em seu seio, um produto fatal, involuntário, e consequentemente, irresponsável."

Por outro lado, embora determinadas características humanas sejam formadas socialmente, não deixa de ser verdade que outras características do homem são naturais. As características naturais não podem ser transformadas, mas devem ser plenamente conhecidas, através da ciência, para que possam ser dominadas; o fato de se assumir essas características naturais não significa submissão, escravidão: fugir delas seria dispensar a humanidade. Bakunin deixa bastante clara a percepção destas características naturais em um outro texto:

          "Ao reagir sobre si mesmo e sobre o meio social de que é, como acabo de dizer, o produto imediato, o homem, não o esqueçamos nunca, não faz outra coisa do que obedecer todavia a estas leis naturais que lhe são próprias e que operam nele com uma implacável e irresistível fatalidade. Último produto da natureza sobre a terra, o homem continua, por assim dizer, por seu desenvolvimento individual e social, a obra, a criação, o movimento e a vida. Seus pensamentos e seus atos mais inteligentes e mais abstratos e, como tais, os mais distantes do que se chama comumente de natureza, não são mais do que criações ou manifestações novas. Frente a esta natureza universal, o homem não pode ter nenhuma relação exterior nem de escravidão nem de luta, porque leva em si esta natureza e não é nada fora dela. Mas ao identificar suas leis, ao identificar-se de certo modo com elas, ao transformá-las por um procedimento psicológico, próprio de seu cérebro, em ideias e em convicções humanas, se emancipa do tríplice jugo que lhe impõem primeiro a natureza exterior, depois sua própria natureza individual e, por fim, a sociedade de que é produto.

          "(...) Ao rebelar-se contra ela rebela-se contra si mesmo. É evidente que é impossível para o homem conceber somente a veleidade e a necessidade de uma rebelião semelhante, posto que, não existindo fora da natureza universal e carregando-a consigo, achando-se a cada instante de sua vida em plena identidade com ela, não pode considerar-se nem sentir-se ante ela como um escravo. Ao contrário, é estudando e apropriando-se, por assim dizer, com o pensamento, das leis naturais dessa natureza – leis que se manifestam igualmente, em tudo o que constitui o seu mundo exterior, e em seu próprio desenvolvimento individual: corporal, intelectual e moral -, como ele chega a sacudir sucessivamente o jugo da natureza exterior, o de suas próprias imperfeições naturais, e, como veremos mais tarde, o de uma organização social autoritariamente constituída."

Dentre as características naturais do homem não estão, entretanto, outras características - como a liberdade, por exemplo - que são um produto da vivência do homem em sociedade. Sendo assim, é necessário que se domine o conhecimento científico sobre as leis naturais e sobre os mecanismos e estruturas da sociedade, para que seja possível a construção de uma nova sociedade e de um novo homem, fundada na liberdade, na justiça e na igualdade. A construção da liberdade é processo de aprendizado da natureza e da cultura.
Mas se o homem é, em grande parte, uma construção social, é possível que uma sociedade justa - através do aprendizado pelo contato direto - produza homens completos, livres e felizes:

          "Para que os homens sejam morais, isto é, homens completos no sentido mais lato do termo, são necessárias três coisas: um nascimento higiênico, uma instrução racional e integral, acompanhada de uma educação baseada no respeito pelo trabalho, pela razão, pela igualdade e pela liberdade, e um meio social em que cada indivíduo, gozando de plena liberdade, seja realmente, de direito e de fato, igual a todos os outros."

Bakunin reconhece na educação a função de formar as pessoas de acordo com as necessidades sociais, o que hoje chamamos de dimensão ideológica do ensino. E é isso que ele ataca na educação trabalhada pelo sistema capitalista, cujo objetivo é perpetuar a sociedade de exploração: ela ensina os burgueses a explorar, dominando todos os conhecimentos disponíveis e não vendo outro modo de vida; e ensina as massas proletárias a permanecerem dóceis à exploração, não se rebelando contra o sistema social injusto. A escola passa então por uma instituição perversa, um aparelho de tortura que mutila alguns membros para moldar o homem segundo seus injustos propósitos. A educação capitalista não forma um homem completo, mas um ser parcial, comprometido com princípios definidos a priori e exteriores a ele; em outras palavras, a educação capitalista funda-se na heteronomia. Mas nem por isso ele deixa de reconhecer que a educação também pode ser trabalhada de outra maneira, perseguindo um objetivo oposto ao da educação capitalista:

          "Será preciso, pois, eliminar da sociedade toda a educação e abolir todas as escolas? Não, de modo algum; é preciso dispensar a mãos cheias a educação nas massas, e transformar todas as igrejas, todos estes templos dedicados à gloria de Deus e à submissão dos homens, em outras tantas escolas de emancipação humana. Mas, antes de tudo, entendamo-nos: as escolas propriamente ditas, em uma sociedade normal, fundada sobre a igualdade e o respeito à liberdade humana, deverão existir apenas para as crianças, não para os adultos; e para que se convertam em escolas de emancipação e não de submissão, terão que eliminar toda essa ficção de Deus, o eterno e absoluto escravizador, e deverá fundamentar toda a educação das crianças e a instrução no desenvolvimento científico da razão, e não sobre a fé; sobre o desenvolvimento da dignidade e da independência pessoais, e não o da piedade e da obediência; sobre o culto  à verdade e à justiça, e antes de tudo sobre o respeito humano, que deve substituir em  tudo e por tudo o culto divino."

A realização de uma educação com estas características não é, entretanto, imediata e nem um pouco tranquila, e Bakunin está consciente das dificuldades a serem enfrentadas. Por um lado, com toda certeza a reação da sociedade capitalista a tal projeto pedagógico seria radical: tentaria ao máximo resguardar-se, não permitindo que tal sistema educacional pudesse formar pessoas conscientes e críticas, livres e justas, que não poderiam ser cooptadas pela sociedade de exploração, colocando-a em xeque; por outro lado, pelo efeito maléfico que esta sociedade exerceria sobre as próprias pessoas egressas das escolas que trabalhassem com essa perspectiva crítica e libertária . E como a educação mão se processa apenas na instituição escola, mas na sociedade como um todo, uma escola revolucionária não lograria alcançar plenamente seus objetivos em uma sociedade reacionária. Aqui vem à luz a dialética social de Bakunin: uma nova educação, somente, não constrói a nova sociedade, e nem a nova sociedade é possível sem um novo homem, em cuja formação é de extrema importância uma nova escola. No entanto, fundar uma nova escola no seio da velha sociedade, sem a preocupação de organizar um trabalho revolucionário para transformar paulatinamente as estruturas sociais, é condenar esta escola ao fracasso. Bakunin escreve:

          "Se no meio existente se conseguissem fundar escolas que dessem aos alunos instrução e uma educação tão perfeitas quanto é possível hoje imaginar, conseguiriam elas criar homens justos, livres e morais? Não, porque ao sair da escola se encontrariam numa sociedade que é dirigida por princípios absolutamente contrários a essa educação e a essa instrução e, como a sociedade é sempre mais forte que os indivíduos, não tardaria a dominá-los, isto é, desmoralizá-los. Mais ainda, a própria função de tais escolas é impossível no atual meio social. Porque a vida social abarca tudo, invade as escolas, as vidas das famílias e de todos os indivíduos que dela fazem parte."

Através destas afirmações, Bakunin procura mostrar que, apesar de ter uma participação fundamental no processo revolucionário, a escola não faz sozinha a revolução. A sociedade não é mecânica. Se existe exploração porque não há consciência, não basta que aos poucos eduquemos e conscientizemos as pessoas para que a sociedade se transforme. Os caminhos sociais são mais complexos e obscuros; longe de ser um mecanismo simples e previsível, a sociedade é - como já apontava Proudhon – um frágil e tênue equilíbrio entre uma multiplicidade de forças, e o meio social humano é muito mais próximo da imprevisibilidade. A educação revolucionária e os trabalhos revolucionários de base, como a organização, por exemplo, devem ser articulados, processados simultaneamente, para que se possa ter esperanças de, aos poucos, conseguir dar alguns passos no sentido da revolução social que destruirá as bases da antiga sociedade.


A AUTOGESTÃO PEDAGÓGICA

O conceito de homem que fundamenta e permeia a concepção libertária da educação desemboca, necessariamente, numa posição política, como já vimos. Para manter-se fiel a essa perspectiva político-social de transformação, a pedagogia anarquista elege como princípio político a autogestão. Tal princípio está intimamente relacionado com o conceito de autonomia: trata-se de construir uma comunidade - fábrica, escola, sociedade - na qual a gerência seja responsabilidade única e exclusiva dos indivíduos que a compõem; em outras palavras, a autogestão consiste na constituição de uma sociedade sem Estado, ou pelo menos numa sociedade na qual o Estado não esteja organicamente separado dela, como uma instância político-administrativa heterônoma.
O princípio da autogestão pode ser aplicado aos mais diversos âmbitos: à administração de uma empresa ou de uma coletividade rural, a uma cooperativa de bens e/ou serviços, a um sindicato, a uma associação comunitária de bairro etc. Dentre as muitas instituições que podem passar pela experiência da autogestão está a escola, e foi justamente nela que se desenvolveram as mais abrangentes.
A aplicação do princípio autogestionário à pedagogia envolve dois níveis específicos do processo de ensino-aprendizagem: primeiro, a auto-organização dos estudos por parte do grupo, que envolve o conjunto dos alunos mais o(s) professor(es), num nível primário e toda a comunidade escolar - serventes, secretários, diretores etc. - num nível secundário; além da formalização dos estudos, a autogestão pedagógica envolve um segundo nível de ação, mais geral e menos explícito, que é o da aprendizagem sócio-política que se realiza concomitantemente com o ensino formal propriamente dito.
Ao ser antiautoritária por definição, a educação anarquista sempre teve na autogestão pedagógica seu foco central, implícita ou explicitamente. Não foi apenas o anarquismo, porém, que assumiu a tendência autogestionária na educação; a autogestão cabe a múltiplas interpretações políticas, do anarquismo mais radical até o liberalismo laissez-faire mais reacionário. Assim, muitas tendências pedagógicas acabaram por assumir práticas total ou parcialmente ligadas ao princípio da autogestão, seja de forma consciente, seja na sutil inocência - ou ignorância - que tudo permite. A autogestão está presente, pois, de Cempuis a Summerhill, do racionalismo pedagógico de Ferrer i Guàrdia ao "escolanovismo" mais liberal, da pedagogia institucional às técnicas de Freinet.
Georges Lapassade define a autogestão pedagógica como sendo a "forma atual de educação negativa" iniciada com Rousseau, pois ela é um sistema de educação no qual o professor renuncia à sua autoridade de transmissor de mensagens, interagindo com os alunos através dos meios de ensino, deixando que eles escolham os programas e os métodos da aprendizagem. Divide ainda a aplicação da autogestão à pedagogia em três grandes tendências: uma primeira, que ele denomina "autoritária", pois o professor propõe ao grupo de alunos algumas técnicas de autogestão e que, segundo ele, é iniciada pelo pedagogo soviético A. Makarenko. A segunda ele denomina "tendência Freinet", pois teria na proposta do professor francês de criação de novos métodos e técnicas pedagógicos sua característica central. Nessa tendência, próxima à individualização do ensino e à autoformação, estariam ainda englobadas as experiências norte-americanas de self-government na educação esboçadas pelo Plano Dalton e as propostas de uma Pedagogia Institucional, às quais se filia o próprio Lapassade. A terceira tendência seria a "libertária" e englobaria as experiências pedagógicas anarquistas, caracterizadas, segundo ele, por um processo em que os professores deixam nas mãos dos alunos quaisquer orientações no sentido de instituir um grupo de aprendizagem e limitam-se a ser "consultores" deste grupo.
A classificação de Lapassade sem dúvida é bastante operacional mas traz, como qualquer classificação, problemas técnicos, como, no caso, a caracterização que ele faz da tendência libertária. Sobre a aplicação do princípio da autogestão na pedagogia libertária podemos distinguir duas perspectivas: uma, a que chamaria "tendência não-diretiva", assume os princípios metodológicos rousseanianos da educação, embora com críticas à sua perspectiva sócio-política. Estaria representada na pedagogia antiautoritária que tem em Max Stirner seu teórico mais radical e que animou diversas experiências de escolas libertárias. Do ponto de vista metodológico e psicológico, estaria muito próxima à tendência escolanovista e também da Pedagogia Institucional, se bem que mais voltada para uma perspectiva de educação política dos filhos do proletariado. A segunda, que poderia ser denominada de "tendência mainstream", assume Rousseau negativamente, construindo-se como uma crítica radical de sua filosofia educacional. Essa corrente estaria sustentada teoricamente em Proudhon e Bakunin, apresentando como exemplos práticos as experiências de Robin, Faure e Ferrer i Guàrdia.
O que diferencia as duas perspectivas de aplicação da autogestão pedagógica no contexto libertário é que enquanto a primeira toma a autogestão como um meio, a segunda a toma pôr um fim; em outras palavras, na "tendência não-diretiva" a autogestão é tomada como metodologia de ensino, enquanto que na "tendência mainstream" ela é assumida como o objetivo da ação pedagógica. Ou, ainda: educa-se pela liberdade ou para a liberdade. De novo, o fundamento é a oposição Rousseau x Bakunin: se assumimos a liberdade como uma característica natural, a criança deve ser educada sem direcionamentos; se, por outro lado, tomamos a liberdade como característica social, como desejava Bakunin, a criança precisa ser educada, dirigida no sentido da construção e conquista da liberdade.
Parece-me que a segunda posição é mais coerente com os princípios anarquistas, principalmente porque estamos falando do exercício de uma pedagogia libertária no contexto de uma sociedade capitalista, o que significa afirmar a autogestão em um meio heterogestionário. Criar escolas em que as crianças vivam na mais absoluta liberdade é um grande engodo, pois não é essa a situação que elas encontrarão no meio social; ao contrário, estarão imersas num meio em que ou são submetidas ou submetem, onde a liberdade é, portanto, impossível. Politicamente, assumir uma postura não-diretiva na educação significa deixar que a sociedade encarregue-se da formação política dos indivíduos. Isso o próprio Rousseau já percebia, e daí a sua opção por isolar Emílio da sociedade, afastando-o dos efeitos corruptos dela. Pensava o filósofo genebrino que, após ter a personalidade formada, o indivíduo poderia ser introduzido no convívio social, sendo uma influência positiva para a sociedade corrompida. Hoje sabemos, entretanto, que o indivíduo nunca deixa de ser suscetível às influências sociais, principalmente com o poder de penetração que a mídia possui atualmente.
A perspectiva não-diretiva advinda de Rousseau e sistematizada pelos escolanovistas, de Dewey a Freinet, de Claparède a Rogers, serve aos interesses políticos do capitalismo, criando indivíduos adaptados ao laissez-faire absoluto, que procurarão o desenvolvimento individual sem preocupar-se com o coletivo, com o social. Na melhor das hipóteses, uma escola baseada em tal princípio formará indivíduos alheios à questão política, presas fáceis da poderosa mídia capitalista.
A proposta libertária de uma educação integral, fundada no princípio da autogestão, não pode, portanto, ser confundida com as propostas escolanovistas que lhe são contemporâneas. Se há convergências entre elas, há uma divergência fundamental, a postura política resultante da concepção antropológica que a sustenta. Assumir o homem como um ser complexo, integral, com direito à igualdade e à liberdade leva necessariamente a um confronto político com a sociedade capitalista, que funciona através da alienação. Uma educação anarquista só pode ser a luta contra essa alienação, buscando formar o homem completo, ao mesmo tempo em que confronta-se com o capitalismo, buscando estratégias políticas de transformação social. Abandona, assim, a imobilidade de um passado de tradições para abrir-se ao futuro como um novo horizonte de possibilidades.



 

     BIBLIOGRAFIA CITADA 


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Publicado em Educação Libertária: textos de um seminário, organizado por Maria Oly Pey - Rio de Janeiro/Florianópolis: Achieamé/Movimento, 1996.


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