Cátaros:
Hereges, graças a Deus
(Álvaro Oppermann – Revista Super Interessante)
Eles queimaram na fogueira porque
repudiaram a Igreja, desafiaram o papa e fundaram um catolicismo alternativo em
plena Idade Média.
O povo de Languedoc, no sul da
França, é conhecido por ser do contra e orgulhoso de sua terra. Os habitantes
daquela região se gabam de ter as videiras mais antigas do país, plantadas
pelos romanos. Também empinam o nariz para o futebol, esporte mais popular
entre os franceses. Lá, o que se joga é rúgbi. Essa vocação para a dissidência
vem de longe. Seu ápice ocorreu no século 11, quando cidadãos de Languedoc
repudiaram a Igreja Católica – por
eles chamada de Igreja dos Lobos – e fundaram um cristianismo alternativo: o
catarismo.
Os cátaros formaram a sociedade secreta mais “popular” da Idade Média. Alguém falou em heresia? Para
esses cristãos, herege era o papa. “Eles se
julgavam herdeiros dos apóstolos e foram condenados por isso”, escreve Mark
Gregory Pegg em The Corruption of Angels (“A Corrupção dos Anjos”, inédito no
Brasil), que narra a trajetória da seita.
BONS
HOMENS
A história dos cátaros teve um início
obscuro. Em 1022, dois monges que nada tinham a ver com o movimento foram
queimados vivos, acusados de adorar o Diabo. O bispo do condado de Toulouse, o
maior da região de Languedoc, condenou a execução. Secretamente, ele e outros
membros da Igreja já vinham discutindo idéias pouco ortodoxas aos olhos do
catolicismo. Acreditavam num Deus que era puro espírito. E que a criação era
obra maléfica, não divina.
No século 12, 4 paróquias de
Languedoc abandonaram formalmente o credo católico, abraçando as novas idéias:
Toulouse, Carcassone, Albi e Agen. Por causa das duas últimas, o movimento
acabou sendo chamado também de albigense. A palavra “cátaro”, porém, só entrou para
o vocabulário medieval por volta de 1160, graças a um pregador católico da
Renânia chamado Eckbert de Schönau – emérito detrator da seita. Segundo uma de
várias versões, o termo viria do grego katharoi, que significaria “os puros”. A
história mais aceita, contudo, é bem menos
lisonjeira. Segundo Alain de Lille, um teólogo francês do século 13, sua origem
estaria na palavra catus (“gato” em latim), pois os seguidores da seita “faziam
coisas ignóbeis em suas reuniões, como beijar o traseiro de gatos”.
Os novos fiéis estavam se lixando.
Eles se autodenominavam bons hommes e bonnes femmes (“bons homens” e “boas
mulheres”). E repudiavam o termo “cátaro”. Os padres se vestiam com hábitos
negros. Rejeitavam o dogma da Santíssima Trindade e também os sacramentos, como
o batismo, a eucaristia e o matrimônio. E viam com naturalidade o sexo fora do
casamento. “Se a castidade não pudesse ser priorizada, era melhor manter
encontros casuais do que regularizar oficialmente o mal”, diz a historiadora
Maria Nazareth de Barros, autora de Deus Reconhecerá os Seus: A História Secreta dos Cátaros. A nova crença também arregimentou adeptos na
Catalunha, na Alemanha, na Inglaterra e na Itália.
FOGO
DIVINO
Roma tentou conter o catarismo na
base da conversa até meados do século 12. Quando o papa Inocêncio 3º assumiu, em 1198, a atitude da Igreja
endureceu. Inocêncio suspendeu diversos bispos do sul da França. Em 1208, o
representante eclesiástico Pierre de Castelnau excomungou um nobre de Toulouse.
Em represália, foi assassinado.
O incidente foi a gota d’água. No
mesmo ano, o Vaticano autorizou uma guerra santa contra Languedoc – a primeira
e última cruzada contra cristãos da história. No cerco a Béziers, em julho de
1209, 7 mil fiéis foram chacinados, entre eles mulheres e crianças. Em 1244,
200 cátaros foram queimados vivos numa grande fogueira nas redondezas da
fortaleza de Montségur. A tortura era generalizada. O interrogador católico
Guilhem Sais, certa vez, afogou uma mulher cátara num barril de vinho, pois ela
não queria confessar seus supostos pecados.
A Igreja precisou de décadas, mas
conseguiu varrer os cátaros da face da terra. No coração dos habitantes de
Languedoc, porém, a seita sobreviveu. O povo daquela região é do contra,
lembra? Até hoje, em cidades como Montpellier e Toulouse, os revoltosos viraram
até nome de rua: des Heretiques (dos Heréticos) na primeira e des Cathares (dos
Cátaros) na segunda. Custou a vida de muitos, mas eles conseguiram sua revanche
contra o papado. “Se existe uma coisa que os cátaros nos ensinaram”, diz Pegg,
“é que as fronteiras da heresia são móveis, e que devemos ousar alargá-las.”
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