sábado, 12 de outubro de 2013

RESENHA DO LIVRO PEDAGOGIA DA AUTONOMIA DE PAULO FREIRE



FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à
prática docente. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
Síntese elaborada por Carlos R. Paiva – publicada na Revista de
Educação nº 15

Capítulo l - NÃO HÁ DOCÊNCIA SEM DISCÊNCIA

Ensinar não é transferir conhecimentos e conteúdos, nem formar é a ação pela qual um sujeito
criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Não
há docência sem discência, as duas se explicam, e seus sujeitos,
apesar das diferenças, não se reduzem à condição de objeto um do
outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao
aprender. Ensinar exige rigorosidade metodológica Ensinar não se esgota
no tratamento do objeto ou do conteúdo, superficialmente feito, mas se
alonga à produção das condições em que aprender criticamente é
possível. E estas condições exigem a presença de educadores e de
educandos criadores, investigadores, inquietos, curiosos, humildes e
persistentes. Faz parte das condições em que aprender criticamente é
possível a pressuposição, por parte dos educandos, de que o educador
já teve ou continua tendo experiência da produção de saberes, e que
estes, não podem ser simplesmente transferidos a eles. Pelo contrário,
nas condições de verdadeira aprendizagem, tanto educandos quanto
educadores transformam-se em sujeitos do processo de aprendizagem. Só
assim podemos falar realmente de saber ensinado, em que o objeto
ensinado é aprendido na sua razão de ser. Percebe-se, assim, a
importância do papel do educador, com a certeza de que faz parte de
sua tarefa docente não apenas ensinar os conteúdos, mas também ensinar
a pensar certo - um professor desafiador, crítico. Ensinar exige
pesquisa Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Hoje se fala
muito no professor pesquisador, mas isto não é uma qualidade, pois faz
parte da natureza da prática docente a indagação, a busca, a pesquisa.
Precisamos que o professor se perceba e se assuma como pesquisador.
Pensar certo é uma exigência que os momentos do ciclo gnosiológico
impõem à curiosidade que, tornando-se mais e mais metodologicamente
rigorosa, transforma-se no que Paulo Freire chama de "curiosidade
epistemológica". Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos A
escola deve respeitar os saberes dos educandos – socialmente
construídos na prática comunitária - discutindo, também, com os
alunos, a razão de ser de alguns deles em relação ao ensino dos
conteúdos. Por que não aproveitar a experiência dos alunos que vivem
em áreas descuidadas pelo poder público para discutir a poluição dos
riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem-estar das populações,
os lixões e os riscos que oferecem à saúde? Por que não associar as
disciplinas estudadas à realidade concreta, em que a violência é a
constante e a convivência das pessoas com a morte é muito maior do que
com a vida? Ensinar exige criticidade A superação, ao invés da ruptura,
se dá na medida em que a curiosidade ingênua, associada ao saber
comum, se criticiza, aproximando-se de forma cada vez mais
metodologicamente rigorosa do objeto cognoscível, tornando-se
curiosidade epistemológica.
Muda de qualidade, mas não de essência, e essa mudança não se dá
automaticamente. Essa é uma das principais tarefas do educador
progressista - o desenvolvimento da curiosidade crítica, insatisfeita,
indócil. Ensinar exige estética e ética A necessária promoção da
ingenuidade à criticidade não pode ser feita sem uma rigorosa formação
ética e estética. Decência e boniteza andam de mãos dadas. Mulheres e
homens, seres histórico-sociais, tornamo-nos capazes de comparar, de
valorar, de intervir, de escolher, de decidir, de romper. Por tudo
isso nos fizemos seres éticos. Só somos porque estamos sendo. Estar
sendo é a condição, entre nós, para ser. Não é possível pensar os
seres humanos longe da ética. Quanto mais fora dela, maior a
transgressão. Ensinar exige a corporificação das palavras pelo
exemplo Quem pensa certo está cansado de saber que palavras sem exemplo
pouco ou nada valem. Pensar certo é fazer certo (agir de acordo com o
que pensa). Não há pensar certo fora de uma prática testemunhal, que o rediz em
lugar de desdizê-lo. Não é possível ao professor pensar que pensa
certo (de forma progressista), e, ao mesmo tempo, perguntar ao aluno
se "sabe com quem está falando". Ensinar exige risco, aceitação do novo
e rejeição a qualquer forma de discriminação. É próprio do pensar certo
a disponibilidade ao risco, a aceitação do novo que não pode ser
negado ou acolhido só porque é novo, assim como critério de recusa ao
velho não é o cronológico. O velho que preserva sua validade encarna
uma tradição ou marca uma presença no tempo continua novo. Faz parte
igualmente do pensar certo a rejeição mais decidida a qualquer forma
de discriminação. A prática preconceituosa de raças, de classes, de
gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a
democracia. Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática A prática
docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento
dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer. É
fundamental que, na prática da formação docente, o aprendiz de
educador assuma que o indispensável pensar certo não é presente dos
deuses nem se acha nos guias de professores que, iluminados
intelectuais, escrevem desde o centro do poder. Pelo contrário, o
pensar certo que supera o ingênuo tem de ser produzido pelo próprio
aprendiz, em comunhão com o professor formador. É preciso possibilitar
que a curiosidade ingênua, através da reflexão sobre a prática, vá
tornando-se crítica. Na formação permanente dos professores, o momento
fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando
criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a
próxima prática. O discurso teórico, necessário à reflexão crítica,
tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a
prática. Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade
cultural A questão da identidade cultural, com sua dimensão individual
e da classe dos educandos, cujo respeito é absolutamente fundamental
na prática educativa progressista, é problema que não pode ser
desprezado. Tem a ver diretamente com a assunção de nós por nós
mesmos. É isto que o puro treinamento do professor não faz, perdendo-
se na estreita e pragmática visão do processo.

Capítulo 2 - ENSINAR NÃO  É TRANSFERIR CONHECIMENTO

Ensinar não é transferir conhecimento, mas  criar as possibilidades para a sua própria construção. Quando o  educador entra em uma sala de aula, deve estar aberto a indagações,
curiosidade e inibições dos alunos: um ser crítico e inquiridor,
inquieto em face da tarefa que tem - a de ensinar e não a de
transferir conhecimento. Pensar certo é uma postura exigente, difícil,
às vezes penosa, que temos de assumir diante dos outros e com os
outros, em face do mundo e dos fatos, ante nós mesmos. É difícil,
entre outras coisas, pela vigilância constante que temos de exercer
sobre nós mesmos para evitar os simplismos, as facilidades, as
incoerências grosseiras. É difícil porque nem sempre temos o valor
indispensável para não permitir que a raiva que podemos ter de alguém
vire raivosidade, gerando um pensar errado e falso. É cansativo, por
exemplo, viver a humildade, condição sine qua non do pensar certo, que
nos faz proclamar o nosso próprio equívoco, que nos faz reconhecer e
anunciar a superação que sofremos. Sem rigorosidade metódica não há
pensar certo. Ensinar exige consciência do inacabamento Na verdade, a
inconclusão do ser é própria de sua experiência vital. Onde há vida,
há inconclusão, embora esta só seja consciente entre homens e
mulheres. A invenção da existência envolve necessariamente a
linguagem, a cultura, a comunicação em níveis mais profundos e
complexos do que ocorria e ocorre no domínio da vida, a
espiritualização do mundo, a possibilidade não só de embelezar, mas
também de enfear o mundo; tudo isso inscreveria mulheres e homens como
seres éticos. Só os seres que se tornaram éticos podem romper com a
ética. É necessário insistir na problematização do futuro e recusar
sua inexorabilidade. Ensinar exige o reconhecimento de ser condicionado
"Gosto de ser gente, inacabado, sei que sou um ser condicionado, mas,
consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele. Esta é a
diferença profunda entre o ser condicionado e o ser determinado...
Afinal, minha presença no mundo não é a de quem se adapta, mas a de
quem nele se insere". E a posição de quem luta para não ser apenas
objeto, mas também sujeito da história. Histórico-sócio-culturais,
tornamo-nos seres em quem a curiosidade, ultrapassando os limites que
lhe são peculiares no domínio vital, torna-se fundante da produção do
conhecimento. Mais ainda, a curiosidade é já o conhecimento. Como a
linguagem que anima a curiosidade e com ela se anima, é também
conhecimento e não só expressão dele. Na verdade, seria uma
contradição se, inacabado e consciente do inacabamento, o ser humano
não se inserisse em tal movimento. É neste sentido que, para mulheres
e homens, estar no mundo necessariamente significa estar com o mundo e
com os outros. É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se
funda a educação como processo permanente. Mulheres e homens se
tornaram educáveis na medida em que se reconheceram inacabados. O
ideal é que, na experiência educativa, educandos e educadores, juntos,
transformem este e outros saberes em sabedoria. Algo que não é
estranho a nós, educadores. Ensinar exige respeito à autonomia do ser
educando O professor, ao desrespeitar a curiosidade do educando, o seu
gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, ao ironizar o
aluno, minimizá-lo, mandar que "ele se ponha em seu lugar" ao mais
tênue sinal de sua rebeldia legítima, ao se eximir do cumprimento de
seu dever de propor limites à liberdade do aluno, ao se furtar do
dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência
formadora do educando, transgride os princípios fundamentalmente
éticos de nossa existência. É neste sentido que o professor
autoritário afoga a liberdade do educando, amesquinhando o seu direito
de ser curioso e inquieto. Qualquer discriminação é imoral e lutar
contra ela é um dever, por mais que se reconheça a força dos
condicionamentos a enfrentar. A beleza de ser gente se acha, entre
outras coisas, nessa possibilidade e nesse dever de brigar. Saber que
devo respeito à autonomia e à identidade do educando exige de mim uma
prática em tudo coerente com este saber. Ensinar exige bom senso O
exercício do bom senso, com o qual só temos a ganhar, se faz no corpo
da curiosidade. Neste sentido, quanto mais colocamos em prática, de
forma metódica, a nossa capacidade de indagar, de comparar, de
duvidar, de aferir, tanto mais eficazmente curiosos nos podemos tornar
e mais crítico se torna o nosso bom senso. O exercício do bom senso
vai superando o que há nele de instintivo na avaliação que fazemos dos
fatos e dos acontecimentos em que nos envolvemos. O meu bom senso não
me diz o que é, mas deixa claro que há algo que precisa ser sabido. É
ele que, em primeiro lugar, me diz não ser possível o respeito aos
educandos, se não se levar em consideração as condições em que eles
vêm existindo, e os conhecimentos experienciais com que chegam à
escola. Isto exige de mim uma reflexão crítica permanente sobre minha
prática. O ideal é que se invente uma forma pela qual os educandos
possam participar da avaliação. E que o trabalho do professor deve ser
com os alunos e não consigo mesmo. O professor tem o dever de realizar
sua tarefa docente. Para isso, precisa de condições favoráveis, sem as
quais se move menos eficazmente no espaço pedagógico. O desrespeito a
este espaço é uma ofensa aos educandos, aos educadores e à prática
pedagógica. Ensinar exige humildade, tolerância e luta em defesa dos
direitos dos educadores Como ser educador sem aprender a conviver com
os diferentes? Como posso respeitar a curiosidade do educando se,
carente de humildade e da real compreensão do papel da ignorância na
busca do saber, temo revelar o meu desconhecimento? A luta dos
professores em defesa de seus direitos e de sua dignidade deve ser
entendida como um momento importante de sua prática docente, enquanto
prática ética. Ainda que a prática pedagógica seja tratada com
desprezo, não tenho por que desamá-la e aos educandos. Não tenho por
que exercê-la mal. Minha resposta à ofensa à educação é a luta
política consciente, crítica e organizada dos professores. Os órgãos
de classe deveriam priorizar o empenho de formação permanente dos
quadros do magistério como tarefa altamente política, e reinventar a
forma de lutar. Ensinar exige apreensão da realidade Como professor,
preciso conhecer as diferentes dimensões que caracterizam a essência
da minha prática. O melhor ponto de partida para estas reflexões é a
inconclusão do ser humano. Aí radica a nossa educabilidade, bem como a
nossa inserção num permanente movimento de busca. A nossa capacidade de
aprender, de que decorre a de ensinar, implica a nossa habilidade de
apreender a substantividade de um objeto. Somos os únicos seres que,
social e historicamente, nos tornamos capazes de aprender. Por isso
aprender é uma aventura criadora, muito mais rica do que meramente
repetir a lição dada. Aprender é construir, reconstruir, constatar
para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do
espírito. Toda prática educativa demanda:- a existência de sujeitos -
um que, ensinando, aprende, e outro que, aprendendo, ensina (daí seu
cunho gnosiológico); - a existência de objetos, conteúdos a serem
ensinados e aprendidos;- o uso de métodos, de técnicas, de materiais.
Esta prática também implica, em função de seu caráter diretivo,
objetivos, sonhos, utopias, ideais. Daí sua politicidade, daí não ser
neutra, ser artística e moral. Exige uma competência geral, um saber
de sua natureza e saberes especiais, ligados à atividade docente. Como
professor, se a minha opção é progressista e sou coerente com ela, meu
papel é contribuir para que o educando seja o artífice de sua
formação. Devo estar atento à difícil caminhada da heteronomia para a
autonomia. "É assim que venho tentando ser professor, assumindo minhas
convicções, disponível ao saber, sensível à boniteza da prática
educativa, instigado por seus desafios..." Ensinar exige alegria e
esperança O meu envolvimento com a prática educativa jamais deixou de
ser feito com alegria, o que não significa dizer que tenha podido criá-la nos educandos. Parece-me uma contradição que uma pessoa que não
teme a novidade, que se sente mal com as injustiças, que se ofende com
as discriminações, que luta contra a impunidade, que recusa o
fatalismo cínico e imobilizante não seja criticamente esperançosa.
Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível A realidade não
é inexoravelmente esta. E esta agora, e para que seja outra,
precisamos lutar, viver a história como tempo de possibilidade, e não
de determinação. O amanhã não é algo pré-dado, mas um desafio. Não
posso, por isso, cruzar os braços. Esse é, aliás, um dos saberes
primeiros, indispensáveis a quem pretende que sua presença se torne
convivência. O mundo não é. O mundo está sendo. O meu papel no mundo
não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem
intervém como sujeito de ocorrências. Constato, não para me adaptar,
mas para mudar. No fundo, as resistências orgânicas e culturais são
manhas necessárias à sobrevivência física e cultural dos oprimidos. É
preciso, porém, que tenhamos na resistência fundamentos para a nossa
rebeldia e não para a nossa resignação em face das ofensas. Não é na
resignação que nos afirmamos, mas na rebeldia em face das injustiças.
A rebeldia é ponto de partida, é deflagração da justa ira, mas não é
suficiente. A rebeldia, enquanto denúncia, precisa se alongar até uma
posição mais radical e crítica, a revolucionária, fundamentalmente
anunciadora. Mudar é difícil, mas é possível. Ensinar exige
curiosidade Como professor, devo saber que, sem a curiosidade que me
move, não aprendo nem ensino. A construção do conhecimento implica o
exercício da curiosidade, o estímulo à pergunta, a reflexão crítica
sobre a própria pergunta. O fundamental é que professor e alunos
saibam que a postura deles é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e
não apassivada. A dialogicidade, no entanto, não nega a validade de
momentos explicativos, narrativos. O bom professor faz da aula um
desafio. Seus alunos cansam, não dormem. Um dos saberes fundamentais à
prática educativo-crítica é o que me adverte da necessária promoção da
curiosidade espontânea para a curiosidade epistemológica. Resultado do
equilíbrio entre autoridade e liberdade, a disciplina implica o
respeito de uma pela outra, expresso na assunção que ambas fazem de
limites que não podem ser transgredidos.

Capítulo 3 - ENSINAR É UMA ESPECIFICIDADE HUMANA
Creio que uma das qualidades essenciais que a
autoridade docente democrática deve revelar em suas relações com as
liberdades dos alunos é a segurança em si mesma. É a segurança que se
expressa na firmeza com que atua, com que decide, com que respeita as
liberdades, com que discute suas próprias posições, com que aceita
rever-se. Ensinar exige segurança, competência profissional e
generosidade - A segurança com que a autoridade docente se move
implica uma outra, fundada na sua competência profissional. Nenhuma
autoridade docente se exerce ausente desta competência. O professor
que não leva a sério sua formação, que não estuda, que não se esforça
para estar à altura de sua tarefa não tem força moral para coordenar
as atividades de sua classe. A incompetência profissional desqualifica
a autoridade do professor. Outra qualidade indispensável à autoridade,
em suas relações com a liberdade, é a generosidade. Não há nada que
inferiorize mais a tarefa formadora da autoridade do que a mesquinhez,
a arrogância ao julgar os outros e a indulgência ao se julgar, ou aos
seus. A arrogância que nega a generosidade nega também a humildade. O
clima de respeito que nasce de relações justas, sérias, humildes,
generosas, em que a autoridade docente e as liberdades dos alunos se
assumem eticamente, autentica o caráter formador do espaço pedagógico.
A autoridade, coerentemente democrática, está convicta de que a
disciplina verdadeira não existe na estagnação, no silêncio dos
silenciados, mas no alvoroço dos inquietos, na dúvida que instiga, na
esperança que desperta. Um esforço sempre presente à prática da
autoridade coerentemente democrática é o que a torna quase escrava de
um sonho fundamental - o de persuadir ou convencer a liberdade para a
construção da própria autonomia, ainda que reelaborando materiais
vindos de fora de si. É com a autonomia, penosamente construída e
fundada na responsabilidade, que a liberdade vai preenchendo o espaço
antes habitado pela dependência. O fundamental no aprendizado do
conteúdo é a construção da responsabilidade da liberdade que se
assume. O essencial nas relações entre autoridade e liberdade é a
reinvenção do ser humano no aprendizado de sua autonomia. Nunca me foi
possível separar dois momentos - o ensino dos conteúdos da formação
ética dos educandos. O saber desta impossibilidade é fundamental à
prática docente. Quanto mais penso sobre a prática educativa,
reconhecendo a responsabilidade que ela exige de nós, mais me convenço
do nosso dever de lutar para que ela seja realmente respeitada: Ensinar
exige comprometimento Não posso ser professor sem me pôr diante dos
alunos, sem revelar com facilidade ou relutância minha maneira de ser,
de pensar politicamente. Não posso escapar à apreciação dos alunos. E
a maneira como eles me percebem tem importância capital para o meu
desempenho. Daí, então, que uma de minhas preocupações centrais deva
ser a de procurar a aproximação cada vez maior entre o que digo e o
que faço, entre o que pareço ser e o que realmente estou sendo. Isto
aumenta em mim os cuidados com o meu desempenho. Se a minha opção é
democrática, progressista, não posso ter uma prática reacionária,
autoritária, elitista. Minha presença de professor é, em si, política.
Enquanto presença, não posso ser uma omissão, mas um sujeito de
opções. Devo revelar aos alunos a minha capacidade de analisar, de
decidir, de optar e de romper, minha capacidade de fazer justiça, de
não falhar à verdade. Ético, por isso mesmo, tem que ser o meu
testemunho. Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de
intervenção no mundo Outro saber de que 'não posso duvidar na minha
prática educativo-crítica é que, como experiência especificamente
humana, a educação é uma forma de intervenção no mundo. Intervenção
esta que, além do conhecimento dos conteúdos, bem ou mal ensinados e/
ou aprendidos, implica tanto o esforço da reprodução da ideologia
dominante quanto o seu desmascaramento. Nem somos seres simplesmente
determinados nem tampouco livres de condicionamentos genéticos,
culturais, sociais, históricos, de classe, de gênero, que nos marcam e
a que nos achamos referidos. Continuo aberto à advertência de Marx, a
da necessária radicalidade, que me faz sempre desperto a tudo o que
diz respeito à defesa dos interesses humanos. Interesses superiores
aos de grupos ou de classes de pessoas. Não posso ser professor se não
percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática
exige de mim uma definição, uma tomada de posição, uma ruptura. Exige
que eu escolha entre isto e aquilo. Não posso ser professor a favor de
quem quer que seja e a favor de não importa o quê. Não posso ser
professor a favor simplesmente da Humanidade, frase de uma vaguidade
demasiado contrastante com a concretude da prática educativa. Sou
professor a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade
contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da
democracia contra a ditadura. Sou professor a favor da luta constante
contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica
dos indivíduos ou das classes sociais, contra a ordem vigente que
inventou a aberração da miséria na fartura. Sou professor a favor da
esperança que me anima, apesar de tudo. Contra o desengano que consome
e imobiliza e a favor da boniteza de minha própria prática. Tão
importante quanto o ensino dos conteúdos é a minha coerência na
classe. A coerência entre o que digo, o que escrevo e o que
faço. Ensinar exige liberdade e autoridade O problema que se coloca para
o educador democrático é como trabalhar no sentido de fazer possível
que a necessidade do limite seja assumida eticamente pela liberdade.
Sem os limites, a liberdade se perverte em licença e a autoridade em
autoritarismo. Por outro lado, faz parte do aprendizado a assunção das
conseqüências do ato de decidir. Não há decisão que não seja seguida
de efeitos esperados, pouco esperados ou inesperados. Por isso a
decisão é um processo responsável. É decidindo que se aprende a
decidir. Não posso aprender a ser eu mesmo se não decido nunca, porque
há sempre a sabedoria e a sensatez de meu pai e de minha mãe a decidir
por mim. Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia
vai se construindo na experiência. Ninguém é sujeito da autonomia de
ninguém. Por outro lado, ninguém amadurece de repente. A gente vai
amadurecendo todo dia, ou não. A autonomia é um processo, não ocorre
em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de
estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da
responsabilidade, ou seja, que respeitam a liberdade. Ensinar exige
tomada consciente de decisões Voltemos à questão central desta parte do
texto - a educação, especificidade humana, como um ato de intervenção
no mundo.
Quando falo em educação como intervenção me refiro tanto a que aspira
a mudanças radicais na sociedade, no campo da economia, das relações
humanas, da propriedade, do direito ao trabalho, à terra, à educação,
à saúde, quanto a que, reacionariamente, pretende imobilizar a
História e manter a ordem injusta. E que dizer de educadores que se
dizem progressistas, mas de prática pedagógica-política eminentemente
autoritária? A raiz mais profunda da politicidade da educação se acha
na educabilidade do ser humano, que se funda em sua natureza inacabada
e da qual se tornou consciente. Inacabado e consciente
disso, necessariamente o ser humano se faria um ser ético, um ser de
opção, de decisão. Um ser ligado a interesses e em relação aos quais
tanto pode manter-se fiel à ética quanto pode transgredi-la. Se a
educação não pode tudo, pode alguma coisa fundamental. Se a educação
não é a chave das mudanças, não é também simplesmente reprodutora da
ideologia dominante.
O que quero dizer é que a educação nem é uma força imbatível a serviço
da transformação da sociedade nem tampouco é a perpetuação do status
quo.
Ensinar exige saber escutar
Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é
falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos os
portadores da Verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a
escutar, mas é escutando que aprendemos & falar com eles.Os sistemas
de avaliação pedagógica de alunos e de professores vêm se assumindo
cada vez mais como discursos verticais, de cima para baixo, mas
insistindo em passar por democráticos. A questão que se coloca a nós é
lutar em favor da compreensão e da prática da avaliação, enquanto
instrumento de apreciação do que fazer, de sujeitos críticos a
serviço, por isso mesmo, da libertação e não da domesticação.
Avaliação em que se estimule o falar a como caminho para o falar com.
Quem tem o que dizer, tem igualmente o direito e o dever de dizê-lo. É
preciso, porém, que o sujeito saiba não ser o único a ter algo a
dizer. Mais ainda, que esse algo, por mais importante que seja, não é
a verdade alvissareira por todos esperada.
Por isso é que acrescento, quem tem o que dizer deve assumir o dever
de motivar, de desafiar quem escuta, para que este diga, fale,
responda. É preciso enfatizar - ensinar não é transferir a
inteligência do objeto ao educando, mas instigá-lo no sentido de que,
como sujeito cognoscente, torne-se capaz de inteligir e comunicar o
inteligido. É neste sentido que se impõe a mim escutar o educando em
suas dúvidas, em seus receios, em sua incompetência provisória. E ao
escutá-lo, aprendo a falar com ele. Aceitar e respeitar a diferença é
uma das virtudes sem a qual a escuta não pode acontecer. Tarefa
essencial da escola, como centro de produção sistemática de
conhecimento, é trabalhar criticamente a i das coisas e dos fatos e a
sua comunicabilidade. Ensinar exige reconhecer que a educação é
ideológica Saber igualmente fundamental à prática educativa do
professor é o que diz respeito à força, às vezes, maior do que
pensamos da ideologia. É o que nos adverte de suas manhas, das
armadilhas em que nos faz cair.
A ideologia tem a ver diretamente com a ocultação da verdade dos
fatos, com o uso da linguagem para penumbrar ou opacizar a realidade,
ao mesmo tempo em que nos torna míopes. No exercício crítico de minha
resistência ao poder da ideologia, vou gerando certas qualidades que
vão virando sabedoria indispensável à minha prática docente. A
necessidade desta resistência crítica, por exemplo, me predispõe, de
um lado, a uma atitude sempre aberta aos demais, aos dados da
realidade; de outro, a uma desconfiança metódica que me defende de
tornar-me absolutamente certo das certezas. Para me resguardar das
artimanhas da ideologia não posso nem devo me fechar aos outros, nem
tampouco me enclausurar no ciclo de minha verdade. Pelo contrário, o
melhor caminho para guardar viva e desperta a minha capacidade de
pensar certo, de ver com acuidade, de ouvir com respeito, por isso de
forma exigente, é me deixar exposto às diferenças, é recusar posições
dogmáticas, em que me admita como dono da verdade.
Ensinar exige disponibilidade para o diálogo Nas minhas relações com
os outros, que não fizeram necessariamente as mesmas opções que fiz,
no nível da política, da ética, da estética, da pedagogia, nem posso
partir do pressuposto que devo conquistá-los, não importa a que custo,
nem tampouco temer que pretendam conquistar-me. É no respeito às
diferenças entre mim e eles, na coerência entre o que faço e o que
digo, que me encontro com eles. O sujeito que se abre ao mundo e aos
outros inaugura, com seu gesto, a relação dialógica em que se confirma
como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente
movimento na história. Como ensinar, como formar sem estar aberto ao
contorno geográfico, social, dos educandos? Com relação a meus alunos,
diminuo a distância que me separa de suas condições negativas de vida
na medida em que os ajudo a aprender não importa que saber, o do
torneio ou do cirurgião, com vistas à mudança do mundo, à superação
das estruturas injustas, jamais com vistas à sua imobilização. Debater
o que se diz e o que se mostra e como se mostra na televisão me parece
algo cada vez mais importante.
Como educadores progressistas não apenas não podemos desconhecer a
televisão, mas devemos usá-la, sobretudo, discuti-la. Não podemos nos
pôr diante de um aparelho de televisão entregues ou disponíveis ao que
vier. Ensinar exige querer bem aos educandos O que dizer e o que
esperar de mim, se, como professor, não me acho tomado por este outro
saber, o de que preciso estar aberto ao gosto de querer bem, às vezes,
à coragem de querer bem aos educandos e à própria prática educativa de
que participo. Na verdade, preciso descartar como falsa a separação
radical entre seriedade docente e afetividade. A afetividade não se
acha excluída da cognoscibilidade.
O que não posso, obviamente, permitir é que minha afetividade
interfira no cumprimento ético de meu dever de professor no exercício
de minha autoridade. Não posso condicionar a avaliação do trabalho
escolar de um aluno ao maior ou menor bem querer que tenha por ele. É
preciso, por outro lado, reinsistir em que não se pense que a prática
educativa vivida com afetividade e alegria prescinda da formação
científica séria e da clareza política dos educadores. Nunca idealizei
a prática educativa. Em tempo algum a vi como algo que, pelo menos,
parecesse com um que-fazer de anjos. Jamais foi fraca em mim a certeza
de que vale a pena lutar contra os descaminhos que nos obstaculizam de
ser mais.
Como prática estritamente humana, jamais pude entender a educação como
uma experiência fria, sem alma, em que os sentimentos e as emoções, os
desejos e os sonhos devessem ser reprimidos por uma espécie de
ditadura reacionalista. Jamais compreendi a prática educativa como uma
experiência a que faltasse o rigor em que se gera a necessária
disciplina intelectual. Estou convencido de que a rigorosidade, a
séria disciplina intelectual, o exercício da curiosidade
epistemológica não me fazem necessariamente um ser mal-amado,
arrogante, cheio de mim mesmo. Nem a arrogância é sinal de competência
nem a competência é causa de arrogância. Certos arrogantes, pela
simplicidade, se fariam gente melhor.

domingo, 22 de setembro de 2013

1889

Hoje acabei de ler 1889, muito bom. Recomendo. Sem sombras de dúvidas o Laurentino é uma porta que se abre para estudarmos vários assuntos da História Brasileira.

Após a leitura aproveitei para ver a entrevista do autor no roda viva no seguinte endereço:
http://youtu.be/FFIXmVuWd9U

Notem que esse é o Bloco um, tem mais três.

domingo, 1 de setembro de 2013

1889 - E JÁ LI



Já comprei, estou lendo e de primeira mão, já estou recomendando. Muito bom!

Gostei do que o Laurentino escreveu nas paginas 26 e 27:

   "Durante décadas, o brasileiro relutou, com certa razão, a se identificar com a sua tortuosa história republicana, permeada de golpes militares, ditaduras, intervenções e mudanças bruscas nas instituições e brevíssimos períodos de exercício da democracia. A boa notícia é que essa história mal-amada talvez esteja finalmente mudando. O Brasil exibe hoje ao mundo quase três décadas de exercício continuado da democracia, sem rupturas. Isso nunca aconteceu antes. É a primeira vez que todos os brasileiros estão sendo, de fato, chamados a participar da construção nacional. Apesar das dificuldades óbvias do presente, as promessas republicanas começam a ser postas em prática na forma de mais educação, mais saúde, mais trabalho e mais oportunidades para todos.
   "É curioso observar que este momento de transformação coincide também com um outro fenômeno inteiramente novo na sociedade brasileira. É o interesse pelo estudo da História do Brasil. Ele pode ser observado no mercado editorial de livros, que nunca vendeu tantas obras sobre o tema, e no grande número de títulos de revistas, sites de internet e outras publicações dedicadas ao assunto. Por que História se tornou um tema popular nos últimos anos? Existem várias respostas possíveis, mas uma delas é seguramente que os brasileiros estão olhando o passado em busca de explicações para o país de hoje. Dessa maneira, procuram também se aparelhar mais adequadamente para a construção do futuro. Isso também é uma excelente notícia. Uma sociedade que não estuda História não consegue entender a si própria porque desconhece suas raízes e razões que a trouxeram aqui. E, se não consegue entender a si mesma, provavelmente também não estará preparada para construir o futuro de forma organizada. O estudo de história é hoje, talvez até mais do que qualquer outra disciplina, uma ferramenta fundamental na construção do Brasil dos nossos sonhos em um novo ambiente de democracia."

Concordo com o Laurentino e tenho convicção que suas obras, 1808, 1822 e, agora, este 1889, contribuíram e contribuirão muito para esse retorno as nossas raízes.



O SISTEMA OLIGÁRQUICO DA REPUBLICA VELHA





O regime republicano inaugurado a 15 de novembro de 1889 correspondeu à necessidade de prover-se hegemonia política ao grupo que, desde a segunda metade do século XIX, vinha se afirmando como economicamente dominante: os cafeicultores. O poder político, já na década de 1890, concentrou-se em suas mãos, dentro da dinâmica da ‘política dos governadores’ inaugurada por Campos Sales. Esse esquema de dominação, que alijava os demais grupos do centro decisório, pôde manter-se graças a um sistema eleitoral que permitia manipulações, desde a fraude à violência física.

O setor agroexportador engendrou uma fórmula política que refletia sua estrita dependência em relação ao sistema capitalista internacional. O liberalismo era o manancial ideológico desse poder. Os princípios de livre concorrência, de superioridade da economia de mercado justificavam a divisão internacional do trabalho — que nos reservara o papel ‘natural’ de produtores de matérias-primas — e a dominação do setor agroexportador sob o conjunto da economia nacional. Ao mesmo tempo, o liberalismo impedia qualquer forma de intervenção estatal, garantindo a autonomia dos Estados, que de certa forma se manifestava, juridicamente, na própria Federação. A descentralização administrativa legitimava a hegemonia dos grupos oligárquicos de maior expressão econômica, enquanto os de­mais grupos se articulavam a estes, unidos por uma identidade fundamental: a propriedade da terra. Mantinha-se, assim, o equilíbrio político a nível nacional, pois não havendo antagonismos profundos entre os proprietários de terra, a autonomia federativa garantia os interesses de cada oligarquia em seu âmbito específico. Os atritos e dissidências ocorridos no período apenas retrataram divergências imediatas, conflitos de ambições eleiçoeiras, ou, então, nos momentos de crise, prejuízos dos grupos não vinculados ao café, pelas medidas de defesa do produto.

A própria manutenção da hegemonia dos cafeicultores, entretanto, ao permitir lucros crescentes, implicou no desenvolvimento econômico, na urbanização, na acumulação de capital pelos excedentes da exportação e no incentivo à produção industrial. Surgiram, então, forças econômicas e sociais que iriam, gradualmente, reivindicar participação política e contestar o regime vigente.

O sistema político e econômico estruturado pela oligarquia cafeeira era, porém, muito rígido. Nele não cabiam canais de representação para os novos grupos, nem mecanismos que pudessem neutralizar os efeitos crescentes das flutuações econômicas internacionais. O sistema de defesa do café, primeiramente apoiado na desvalorização de nossa moeda e depois na compra e estocagem do produto, implicava em custo social geral. Em momentos de crise aguda, os grupos sociais não vinculados ao setor tornavam-se antagônicos e a insatisfação crescia nos setores urbanos.

Em geral, porém, até a década de 1920, as camadas médias urbanas, os operários e os trabalhadores urbanos foram mantidos à margem da expressão política. As camadas médias urbanas constituíam um aglomera­do heterogêneo, incapaz de articular contestações além das reivindicações de contenção do custo de vi­da, de melhores moradias ou de ‘verdade eleitoral’. Os trabalhadores rurais, mantidos na ignorância e dentro do rígido círculo do controle coronelístico, não ultra­passavam os limites da violência social expressa no banditismo ou no fanatismo religioso. O operariado urbano, pressionado por baixos salários, por castigos corporais, pela ausência de qualquer proteção, lentamente se articulava.

O desenvolvimento da urbanização e da industrialização, subjacentes ao progresso do setor cafeeiro, faziam, entretanto, avançar a diferenciação social. O aumento gradativo das camadas intermediárias urbanas e, conseqüentemente, seu maior peso político, ao lado do crescimento da capacidade de organização e de mobilização do operariado, evidenciaram as limitações do sistema oligárquico, nos anos vinte. Os setores urbanos, a partir de então, manifestaram-se ativamente, aliando-se às dissidências oligárquicas, apoiando o movimento tenentista e reivindicando efetiva participação política.

O movimento operário crescia e não era mais possível ignorar sua importância, por mais desarticuladas e descontínuas que fossem suas manifestações. A indústria, nascida à sombra dos cafezais, estimulada e nutri­da pelos capitais cafeeiros, organizava-se.

A hegemonia oligárquica entrava em crise. O que fora novo em velho se tornara, ultrapassado pelo desenvolvimento do setor que ele mesmo criara. Era preciso redefinir o pacto social e dissolver o acordo político que sustentava o regime. Era fundamental encontrar saídas para a economia agroexportadora, afogada pela superprodução e pelo desequilíbrio do mercado. Era inadiável atender à questão social e absorver suas reivindicações, regulamentando as relações entre capital e trabalho. A crise interna caminhava, assim, para a redefinição do papel do Estado e para a formulação de soluções que pudessem combater a crise econômica, que se delineava.

Apoiado pela manipulação do voto rural, o sistema oligárquico não podia adaptar-se à estrutura social e econômica do país, que caminhava para a industrialização. O poder dos cafeicultores estava ferido de morte. O sistema partidário que lhe garantira sustentação estava esgotado e as dissidências, agora, eram profundas.

A República oligárquica desabava. Velha, sentia-se sua incapacidade em assimilar as mudanças internas. Débil, era pressionada pela crise econômica mundial. Não era um fim violento, dramático. Era a destruição paulatina de um sistema político-econômico, desencadeada a partir de suas contradições internas e acelera­da pela crise mundial.

Desde 1922 o processo de contestação do regime tinha, em sua vanguarda, o movimento tenentista. Este, se não era, essencialmente, um movimento coeso e de ideologia precisa, representava, de qualquer forma, renovação. E suas manifestações em favor de um regime mais representativo foram endossadas pelas facções descontentes e pela maioria da população urbana.

A solução tenentista não era, porém, a única ver­tente revolucionária do fim da década de 20. Várias eram as propostas políticas que se articulavam para modificar a estrutura de dominação em vigor. Revolução era o tema principal do Partido Democrático de São Paulo e revolução era a aspiração dos setores operários em ascensão.

O processo que culminou com a deposição de Washington Luís, em 1930, foi a revolução vencedora, articulada pelas elites dissidentes. Cabia a estas o papel de reorganizar a sociedade, controlar a crise, neutralizar as forças sociais em conflito questões cruciais que marcarão indelevelmente o quadro histórico aberto com a Revolução de 1930”.


José Jobson de Andrade Arruda

ANÁLISE DE FRIEDRICH ENGELS SOBRE O PAPEL DO TRABALHO NA TRANSFORMAÇÃO DO HOMEM


O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem

Friederich Engels

1876




Escrito em: 1876

1ª Edição: Neue Zeit, 1896.

Origem da presente transcrição: edição soviética de 1952, de acordo com o manuscrito, em alemão. Traduzido do espanhol.




O trabalho é a fonte de toda riqueza, afirmam os economistas. Assim é, com efeito, ao lado da natureza, encarregada de fornecer os materiais que ele converte em riqueza. O trabalho, porém, é muitíssimo mais do que isso. É a condição básica e fundamental de toda a vida humana. E em tal grau que, até certo ponto, podemos afirmar que o trabalho criou o próprio homem.

Há muitas centenas de milhares de anos, numa época, ainda não estabelecida em definitivo, daquele período do desenvolvimento da Terra que os geólogos denominam terciário, provavelmente em fins desse período, vivia em algum lugar da zona tropical — talvez em um extenso continente hoje desaparecido nas profundezas do Oceano Indico — uma raça de macacos antropomorfos extraordinariamente desenvolvida. Darwin nos deu uma descrição aproximada desses nossos antepassados. Eram totalmente cobertos de pelo, tinham barba, orelhas pontiagudas, viviam nas árvores e formavam manadas.

É de supor que, como conseqüência direta de seu gênero de vida, devido ao qual as mãos, ao trepar, tinham que desempenhar funções distintas das dos pés, esses macacos foram-se acostumando a prescindir de suas mãos ao caminhar pelo chão e começaram a adotar cada vez mais uma posição ereta. Foi o passo decisivo para a transição do macaco ao homem.

Todos os macacos antropomorfos que existem hoje podem permanecer em posição ereta e caminhar apoiando-se unicamente sobre seus pés; mas o fazem só em casos de extrema necessidade e, além disso, com enorme lentidão. Caminham habitualmente em atitude semi-ereta, e sua marcha inclui o uso das mãos. A maioria desses macacos apóia no solo os dedos e, encolhendo as pernas, fazem avançar o corpo por entre os seus largos braços, como um paralítico que caminha com muletas. Em geral, podemos ainda hoje observar entre os macacos todas as formas de transição entre a marcha a quatro patas e a marcha em posição ereta. Mas para nenhum deles a posição ereta vai além de um recurso circunstancial.

E posto que a posição ereta houvesse de ser para os nossos peludos antepassados primeiro uma norma, e logo uma necessidade, dai se depreende que naquele período as mãos tinham que executar funções cada vez mais variadas. Mesmo entre os macacos existe já certa divisão de funções entre os pés e as mãos. Como assinalamos acima, enquanto trepavam as mãos eram utilizadas de maneira diferente que os pés. As mãos servem fundamentalmente para recolher e sustentar os alimentos, como o fazem já alguns mamíferos inferiores com suas patas dianteiras. Certos macacos recorrem às mãos para construir ninhos nas árvores; e alguns, como o chimpanzé, chegam a construir telhados entre os ramos, para defender-se das inclemências do tempo. A mão lhes serve para empunhar garrotes, com os quais se defendem de seus inimigos, ou para bombardeá-los com frutos e pedras. Quando se encontram prisioneiros realizam com as mãos várias operações que copiam dos homens. Mas aqui precisamente é que se percebe quanto é grande a distância que separa a mão primitiva dos macacos, inclusive os antropóides mais superiores, da mão do homem, aperfeiçoada pelo trabalho durante centenas de milhares de anos. O número e a disposição geral dos ossos e dos músculos são os mesmos no macaco e no homem, mas a mão do selvagem mais primitivo é capaz de executar centenas de operações que não podem ser realizadas pela mão de nenhum macaco. Nenhuma mão simiesca construiu jamais um machado de pedra, por mais tosco que fosse.

Por isso, as funções, para as quais nossos antepassados foram adaptando pouco a pouco suas mãos durante os muitos milhares de anos em que se prolongam o período de transição do macaco ao homem, só puderam ser, a princípio, funções sumamente simples. Os selvagens mais primitivos, inclusive aqueles nos quais se pode presumir o retorno a um estado mais próximo da animalidade, com uma degeneração física simultânea, são muito superiores àqueles seres do período de transição. Antes de a primeira lasca de sílex ter sido transformada em machado pela mão do homem, deve ter sido transcorrido um período de tempo tão largo que, em comparação com ele, o período histórico por nós conhecido torna-se insignificante. Mas já havia sido dado o passo decisivo: a mão era livre e podia agora adquirir cada vez mais destreza e habilidade; e essa maior flexibilidade adquirida transmitia-se por herança e aumentava de geração em geração.

Vemos, pois, que a mão não é apenas o órgão do trabalho; é também produto dele. Unicamente pelo trabalho, pela adaptação a novas e novas funções, pela transmissão hereditária do aperfeiçoamento especial assim adquirido pelos músculos e ligamentos e, num período mais amplo, também pelos ossos; unicamente pela aplicação sempre renovada dessas habilidades transmitidas a funções novas e cada vez mais complexas foi que a mão do homem atingiu esse grau de perfeição que pôde dar vida, como por artes de magia, aos quadros de Rafael, às estátuas de Thorwaldsen e à música de Paganini.

Mas a mão não era algo com existência própria e independente. Era unicamente um membro de um organismo íntegro e sumamente complexo. E o que beneficiava à mão beneficiava também a todo o corpo servido por ela; e o beneficiava em dois aspectos.

Primeiramente, em virtude da lei que Darwin chamou de correlação do crescimento. Segundo essa lei, certas formas das diferentes partes dos seres orgânicos sempre estão ligadas a determinadas formas de outras partes, que aparentemente não têm nenhuma relação com as primeiras. Assim, todos os animais que possuem glóbulos vermelhos sem núcleo e cujo occipital está articulado com a primeira vértebra por meio de dois côndilos, possuem, sem exceção, glândulas mamárias para a alimentação de suas crias. Assim também, a úngula fendida de alguns mamíferos está ligada de modo geral à presença de um estômago multilocular adaptado à ruminação. As modificações experimentadas por certas formas provocam mudanças na forma de outras partes do organismo, sem que estejamos em condições de explicar tal conexão. Os gatos totalmente brancos e de olhos azuis são sempre ou quase sempre surdos. O aperfeiçoamento gradual da mão do homem e a adaptação concomitante dos pés ao andar em posição ereta exerceram indubitavelmente, em virtude da referida correlação, certa influência sobre outras partes do organismo. Contudo, essa ação se acha ainda tão pouco estudada que aqui não podemos senão assinalá-la em termos gerais.

Muito mais importante é a ação direta — possível de ser demonstrada — exercida pelo desenvolvimento da mão sobre o resto do organismo. Como já dissemos, nossos antepassados simiescos eram animais que viviam em manadas; evidentemente, não é possível buscar a origem do homem, o mais social dos animais, em antepassados imediatos que não vivessem congregados. Em face de cada novo progresso, o domínio sobre a natureza, que tivera início com o desenvolvimento da mão, com o trabalho, ia ampliando os horizontes do homem, levando-o a descobrir constantemente nos objetos novas propriedades até então desconhecidas. Por outro lado, o desenvolvimento do trabalho, ao multiplicar os casos de ajuda mútua e de atividade conjunta, e ao mostrar assim as vantagens dessa atividade conjunta para cada indivíduo, tinha que contribuir forçosamente para agrupar ainda mais os membros da sociedade. Em resumo, os homens em formação chegaram a um ponto em que tiveram necessidade de dizer algo uns aos outros. A necessidade criou o órgão: a laringe pouco desenvolvida do macaco foi-se transformando, lenta mas firmemente, mediante modulações que produziam por sua vez modulações mais perfeitas, enquanto os órgãos da boca aprendiam pouco a pouco a pronunciar um som articulado após outro.

A comparação com os animais mostra-nos que essa explicação da origem da linguagem a partir do trabalho e pelo trabalho é a única acertada. O pouco que os animais, inclusive os mais desenvolvidos, têm que comunicar uns aos outros pode ser transmitido sem o concurso da palavra articulada. Nenhum animal em estado selvagem sente-se prejudicado por sua incapacidade de falar ou de compreender a linguagem humana. Mas a situação muda por completo quando o animal foi domesticado pelo homem. O contato com o homem desenvolveu no cão e no cavalo um ouvido tão sensível à linguagem articulada que esses animais podem, dentro dos limites de suas representações, chegar a compreender qualquer idioma. Além disso, podem chegar a adquirir sentimentos antes desconhecidos por eles, como o apego ao homem, o sentimento de gratidão, etc. Quem conheça bem esses animais dificilmente poderá escapar à convicção de que, em muitos casos, essa incapacidade de falar é experimentada agora por eles como um defeito. Desgraçadamente, esse defeito não tem remédio, pois os seus órgãos vocais se acham demasiado especializados em determinada direção. Contudo, quando existe um órgão apropriado, essa incapacidade pode ser superada dentro de certos limites. Os órgãos vocais das aves distinguem-se em forma radical dos do homem e, no entanto, as aves são os únicos animais que podem aprender a falar; e o animal de voz mais repulsiva, o papagaio, é o que melhor fala. E não importa que se nos objete dizendo-nos que o papagaio não sabe o que fala. Claro está que por gosto apenas de falar e por sociabilidade o papagaio pode estar horas e horas repetindo todo o seu vocabulário. Mas, dentro do marco de suas representações, pode chegar também a compreender o que diz. Ensinai a um papagaio dizer palavrões (uma das distrações favoritas dos marinheiros que regressam das zonas quentes) e vereis logo que se o irritardes ele fará uso desses palavrões com a mesma correção de qualquer verdureira de Berlim. E o mesmo ocorre com o pedido de gulodices.

Primeiro o trabalho, e depois dele e com ele a palavra articulada, foram os dois estímulos principais sob cuja influência o cérebro do macaco foi-se transformando gradualmente em cérebro humano — que, apesar de toda sua semelhança, supera-o consideravelmente em tamanho e em perfeição. E à medida em que se desenvolvia o cérebro, desenvolviam-se também seus instrumentos mais imediatos: os órgãos dos sentidos. Da mesma maneira que o desenvolvimento gradual da linguagem está necessariamente acompanhado do correspondente aperfeiçoamento do órgão do ouvido, assim também o desenvolvimento geral do cérebro está ligado ao aperfeiçoamento de todos os Órgãos dos sentidos. A vista da águia tem um alcance muito maior que a do homem, mas o olho humano percebe nas coisas muitos mais detalhes que o olho da águia. O cão tem um olfato muito mais fino que o do homem, mas não pode captar nem a centésima parte dos odores que servem ao homem como sinais para distinguir coisas diversas. E o sentido do tato, que o macaco possui a duras penas na forma mais tosca e primitiva, foi-se desenvolvendo unicamente com o desenvolvimento da própria mão do homem, através do trabalho.

O desenvolvimento do cérebro e dos sentidos a seu serviço, a crescente clareza de consciência, a capacidade de abstração e de discernimento cada vez maiores, reagiram por sua vez sobre o trabalho e a palavra, estimulando mais e mais o seu desenvolvimento. Quando o homem se separa definitivamente do macaco esse desenvolvimento não cessa de modo algum, mas continua, em grau diverso e em diferentes sentidos entre os diferentes povos e as diferentes épocas, interrompido mesmo às vezes por retrocessos de caráter local ou temporário, mas avançando em seu conjunto a grandes passos, consideravelmente impulsionado e, por sua vez, orientado em um determinado sentido por um novo elemento que surge com o aparecimento do homem acabado: a sociedade.

Foi necessário, seguramente, que transcorressem centenas de milhares de anos — que na história da Terra têm uma importância menor que um segundo na vida de um homem(1) — antes que a sociedade humana surgisse daquelas manadas de macacos que trepavam pelas árvores. Mas, afinal, surgiu. E que voltamos a encontrar como sinal distintivo entre a manada de macacos e a sociedade humana? Outra vez, o trabalho. A manada de macacos contentava-se em devorar os alimentos de uma área que as condições geográficas ou a resistência das manadas vizinhas determinavam. Transportava-se de um lugar para outro e travava lutas com outras manadas para conquistar novas zonas de alimentação; mas era incapaz de extrair dessas zonas mais do que aquilo que a natureza generosamente lhe oferecia, se excetuarmos a ação inconsciente da manada ao adubar o solo com seus excrementos. Quando foram ocupadas todas as zonas capazes de proporcionar alimento, o crescimento da população simiesca tornou-se já impossível; no melhor dos casos o número de seus animais mantinha-se no mesmo nível Mas todos os animais são uns grandes dissipadores de alimentos; além disso, com freqüência, destroem em germe a nova geração de reservas alimentícias. Diferentemente do caçador, o lobo não respeita a cabra montês que lhe proporcionaria cabritos no ano seguinte; as cabras da Grécia, que devoram os jovens arbustos antes de poder desenvolver-se, deixaram nuas todas as montanhas do pais. Essa “exploração rapace” levada a efeito pelos animais desempenha um grande papel na transformação gradual das espécies, ao obrigá-las a adaptar-se a alimentos que não são os habituais para elas, com o que muda a composição química de seu sangue e se modifica toda a constituição física do animal; as espécies já plasmadas desaparecem. Não há dúvida de que essa exploração rapace contribuiu em alto grau para a humanização de nossos antepassados, pois ampliou o número de plantas e as partes das plantas utilizadas na alimentação por aquela raça de macacos que superava todas as demais em inteligência e em capacidade de adaptação. Em uma palavra, a alimentação, cada vez mais variada, oferecia ao organismo novas e novas substâncias, com o que foram criadas as condições químicas para a transformação desses macacos em seres humanos. Mas tudo isso não era trabalho no verdadeiro sentido da palavra. O trabalho começa com a elaboração de instrumentos. E que representam os instrumentos mais antigos, a julgar pelos restos que nos chegaram dos homens pré-históricos, pelo gênero de vida dos povos mais antigos registrados pela história, assim como pelo dos selvagens atuais mais primitivos? São instrumentos de caça e de pesca, sendo os primeiros utilizados também como armas. Mas a caça e a pesca pressupõem a passagem da alimentação exclusivamente vegetal à alimentação mista, o que significa um novo passo de sua importância na transformação do macaco em homem. A alimentação cárnea ofereceu ao organismo, em forma quase acabada, os ingredientes mais essenciais para o seu metabolismo. Desse modo abreviou o processo da digestão e outros processos da vida vegetativa do organismo (isto é, os processos análogos ao da vida dos vegetais), poupando, assim, tempo, materiais e estímulos para que pudesse manifestar-se ativamente a vida propriamente animal. E quanto mais o homem em formação se afastava do reino vegetal, mais se elevava sobre os animais. Da mesma maneira que o hábito da alimentação mista converteu o gato e o cão selvagens em servidores do homem, assim também o hábito de combinar a carne com a alimentação vegetal contribuiu poderosamente para dar força física e independência ao homem em formação. Mas onde mais se manifestou a influência da dieta cárnea foi no cérebro, que recebeu assim em quantidade muito maior do que antes as substâncias necessárias à sua alimentação e desenvolvimento, com o que se foi tomando maior e mais rápido o seu aperfeiçoamento de geração em geração. Devemos reconhecer — e perdoem os senhores vegetarianos — que não foi sem ajuda da alimentação cárnea que o homem chegou a ser homem; e o fato de que, em uma ou outra época da história de todos os povos conhecidos, o emprego da carne na alimentação tenha chegado ao canibalismo (ainda no século X os antepassados dos berlinenses, os veletabos e os viltses, devoravam os seus progenitores) é uma questão que não tem hoje para nós a menor importância.

O consumo de carne na alimentação significou dois novos avanços de importância decisiva: o uso do fogo e a domesticação dos animais. O primeiro reduziu ainda mais o processo da digestão, já que permitia levar a comida à boca, como se disséssemos, meio digerida; o segundo multiplicou as reservas de carne, pois agora, ao lado da caça, proporcionava uma nova fonte para obtê-la em forma mais regular. A domesticação de animais também proporcionou, com o leite e seus derivados, um novo alimento, que era pelo menos do mesmo valor que a carne quanto à composição. Assim, esses dois adiantamentos converteram-se diretamente para o homem em novos meios de emancipação. Não podemos deter-nos aqui em examinar minuciosamente suas conseqüências.

O homem, que havia aprendido a comer tudo o que era comestível, aprendeu também, da mesma maneira, a viver em qualquer clima. Estendeu-se por toda a superfície habitável da Terra, sendo o único animal capaz de fazê-lo por iniciativa própria. Os demais animais que se adaptaram a todos os climas — os animais domésticos e os insetos parasitas — não o conseguiram por si, mas unicamente acompanhando o homem. E a passagem do clima uniformemente cálido da pátria original para zonas mais frias, onde o ano se dividia em verão e inverno, criou novas exigências, ao obrigar o homem a procurar habitação e a cobrir seu corpo para proteger-se do frio e da umidade. Surgiram assim novas esferas de trabalho, e com elas novas atividades, que afastaram ainda mais o homem dos animais.

Graças à cooperação da mão, dos órgãos da linguagem e do cérebro, não só em cada indivíduo, mas também na sociedade, os homens foram aprendendo a executar operações cada vez mais complexas, a propor-se e alcançar objetivos cada vez mais elevados. O trabalho mesmo se diversificava e aperfeiçoava de geração em geração, estendendo-se cada vez a novas atividades. A caça e à pesca veio juntar-se a agricultura, e mais tarde a fiação e a tecelagem, a elaboração de metais, a olaria e a navegação. Ao lado do comércio e dos ofícios apareceram, finalmente, as artes e as ciências; das tribos saíram as nações e os Estados. Apareceram o direito e a política, e com eles o reflexo fantástico das coisas no cérebro do homem: a religião. Frente a todas essas criações, que se manifestavam em primeiro lugar como produtos do cérebro e pareciam dominar as sociedades humanas, as produções mais modestas, fruto do trabalho da mão, ficaram relegadas a segundo plano, tanto mais quanto numa fase muito recuada do desenvolvimento da sociedade (por exemplo, já na família primitiva), a cabeça que planejava o trabalho já era capaz de obrigar mãos alheias a realizar o trabalho projetado por ela. O rápido progresso da civilização foi atribuído exclusivamente à cabeça, ao desenvolvimento e à atividade do cérebro. Os homens acostumaram-se a explicar seus atos pelos seus pensamentos, em lugar de procurar essa explicação em suas necessidades (refletidas, naturalmente, na cabeça do homem, que assim adquire consciência delas). Foi assim que, com o transcurso do tempo, surgiu essa concepção idealista do mundo que dominou o cérebro dos homens, sobretudo a partir do desaparecimento do mundo antigo, e continua ainda a dominá-lo, a tal ponto que mesmo os naturalistas da escola darwiniana mais chegados ao materialismo são ainda incapazes de formar uma idéia clara acerca da origem do homem, pois essa mesma influência idealista lhes impede de ver o papel desempenhado aqui pelo trabalho.

Os animais, como já indicamos de passagem, também modificam com sua atividade a natureza exterior, embora não no mesmo grau que o homem; e essas modificações provocadas por eles no meio ambiente repercutem, como vimos, em seus causadores, modificando-os por sua vez. Nada ocorre na natureza em forma isolada. Cada fenômeno afeta a outro, e é por seu turno influenciado por este; e é em geral o esquecimento desse movimento e dessa interação universal o que impede a nossos naturalistas perceber com clareza as coisas mais simples. Já vimos como as cabras impediram o reflorestamento dos bosques na Grécia; em Santa Helena, as cabras e os porcos desembarcados pelos primeiros navegantes chegados à ilha exterminaram quase por completo a vegetação ali existente, com o que prepararam o terreno para que pudessem multiplicar-se as plantas levadas mais tarde por outros navegantes e colonizadores. Mas a influência duradoura dos animais sobre a natureza que os rodeia é inteiramente involuntária e constitui, no que se refere aos animais, um fato acidental. Mas, quanto mais os homens se afastam dos animais, mais sua influência sobre a natureza adquire um caráter de uma ação intencional e planejada, cujo fim é alcançar objetivos projetados de antemão. Os animais destroçam a vegetação do lugar sem dar-se conta do que fazem. Os homens, em troca, quando destroem a vegetação o fazem com o fim de utilizar a superfície que fica livre para semear trigo, plantar árvores ou cultivar a videira, conscientes de que a colheita que irão obter superará várias vezes o semeado por eles. O homem traslada de um pais para outro plantas úteis e animais domésticos, modificando assim a flora e a fauna de continentes inteiros. Mais ainda: as plantas e os animais, cultivadas aquelas e criados estes em condições artificiais, sofrem tal influência da mão do homem que se tornam irreconhecíveis.

Não foram até hoje encontrados os antepassados silvestres de nossos cultivos cerealistas. Ainda não foi resolvida a questão de saber qual o animal que deu origem aos nossos cães atuais, tão diferentes uns de outros, ou às atuais raças de cavalos, também tão numerosos. Ademais, compreende-se de logo que não temos a intenção de negar aos animais a faculdade de atuar em forma planificada, de um modo premeditado. Ao contrário, a ação planificada existe em germe onde quer que o protoplasma — a albumina viva — exista e reaja, isto é, realize determinados movimentos, embora sejam os mais simples, em resposta a determinados estímulos do exterior. Essa reação se produz, não digamos já na célula nervosa, mas inclusive quando ainda não há célula de nenhuma espécie. O ato pelo qual as plantas insetívoras se apoderam de sua presa aparece também, até certo ponto, como um ato planejado, embora se realize de um modo totalmente inconsciente. A possibilidade de realizar atos conscientes e premeditados desenvolve-se nos animais em correspondência com o desenvolvimento do sistema nervoso e adquire já nos mamíferos um nível bastante elevado. Durante as caçadas organizadas na Inglaterra pode-se observar sempre a infalibilidade com que a raposa utiliza seu perfeito conhecimento do lugar para ocultar-se aos seus perseguidores, e como conhece e sabe aproveitar muito bem todas as vantagens do terreno para despistá-los. Entre nossos animais domésticos, que chegaram a um grau mais alto de desenvolvimento graças à sua convivência com o homem podem ser observados diariamente atos de astúcia, equiparáveis aos das crianças, pois do mesmo modo que o desenvolvimento do embrião humano no ventre materno é uma réplica abreviada de toda a história do desenvolvimento físico seguido através de milhões de anos pelos nossos antepassados do reino animal, a partir do estado larval, assim também o desenvolvimento espiritual da criança representa uma réplica, ainda mais abreviada, do desenvolvimento intelectual desses mesmos antepassados, pelo menos dos mais próximos. Mas nem um só ato planificado de nenhum animal pôde imprimir na natureza o selo de sua vontade. Só o homem pôde fazê-lo.

Resumindo: só o que podem fazer os animais é utilizar a natureza e modificá-la pelo mero fato de sua presença nela. O homem, ao contrário, modifica a natureza e a obriga a servir-lhe, domina-a. E ai está, em última análise, a diferença essencial entre o homem e os demais animais, diferença que, mais uma vez, resulta do trabalho.

Contudo, não nos deixemos dominar pelo entusiasmo em face de nossas vitórias sobre a natureza. Após cada uma dessas vitórias a natureza adota sua vingança. É verdade que as primeiras conseqüências dessas vitórias são as previstas por nós, mas em segundo e em terceiro lugar aparecem conseqüências muito diversas, totalmente imprevistas e que, com freqüência, anulam as primeiras. Os homens que na Mesopotâmia, na Grécia, na Ásia Menor e outras regiões devastavam os bosques para obter terra de cultivo nem sequer podiam imaginar que, eliminando com os bosques os centros de acumulação e reserva de umidade, estavam assentando as bases da atual aridez dessas terras. Os italianos dos Alpes, que destruíram nas encostas meridionais os bosques de pinheiros, conservados com tanto carinho nas encostas setentrionais, não tinham idéia de que com isso destruíam as raízes da indústria de laticínios em sua região; e muito menos podiam prever que, procedendo desse modo, deixavam a maior parte do ano secas as suas fontes de montanha, com o que lhes permitiam, chegado o período das chuvas, despejar com maior fúria suas torrentes sobre a planície. Os que difundiram o cultivo da batata na Europa não sabiam que com esse tubérculo farináceo difundiam por sua vez a escrofulose. Assim, a cada passo, os fatos recordam que nosso domínio sobre a natureza não se parece em nada com o domínio de um conquistador sobre o povo conquistado, que não é o domínio de alguém situado fora da natureza, mas que nós, por nossa carne, nosso sangue e nosso cérebro, pertencemos à natureza, encontramo-nos em seu seio, e todo o nosso domínio sobre ela consiste em que, diferentemente dos demais seres, somos capazes de conhecer suas leis e aplicá-las de maneira adequada.

Com efeito, aprendemos cada dia a compreender melhor as leis da natureza e a conhecer tanto os efeitos imediatos como as conseqüências remotas de nossa intromissão no curso natural de seu desenvolvimento. Sobretudo depois dos grandes progressos alcançados neste século pelas ciências naturais, estamos em condições de prever e, portanto, de controlar cada vez melhor as remotas conseqüências naturais de nossos atos na produção, pelo menos dos mais correntes. E quanto mais isso seja uma realidade, mais os homens sentirão e compreenderão sua unidade com a natureza, e mais inconcebível será essa idéia absurda e antinatural da antítese entre o espírito e a matéria, o homem e a natureza, a alma e o corpo, idéia que começa a difundir-se pela Europa sobre a base da decadência da antigüidade clássica e que adquire seu máximo desenvolvimento no cristianismo.

Mas, se foram necessários milhares de anos para que o homem aprendesse, em certo grau, a prever as remotas conseqüências naturais no sentido da produção, muito mais lhe custou aprender a calcular as remotas conseqüências sociais desses mesmos atos. Falamos acima da batata e de seus efeitos quanto à difusão da escrofulose. Mas que importância pode ter a escrofulose, comparada com os resultados que teve a redução da alimentação dos trabalhadores a batatas puramente sobre as condições de vida das massas do povo de países inteiros, com a fome que se estendeu em 1847 pela Irlanda em conseqüência de uma doença provocada por esse tubérculo e que levou à sepultura um milhão de irlandeses que se alimentavam exclusivamente, ou quase exclusivamente, de batatas e obrigou a que emigrassem para além-mar outros dois milhões? Quando os árabes aprenderam a destilar o álcool, nem sequer ocorreu-lhes pensar que haviam criado uma das armas principais com que iria ser exterminada a população indígena do continente americano, então ainda desconhecido. E quando mais tarde Colombo descobriu a América não sabia que ao mesmo tempo dava nova vida à escravidão, há muito tempo desaparecida na Europa, e assentado as bases do tráfico dos negros. Os homens que nos séculos XVII e XVIII haviam trabalhado para criar a máquina a vapor não suspeitavam de que estavam criando um instrumento que, mais do que nenhum outro, haveria de subverter as condições sociais em todo o mundo e que, sobretudo na Europa, ao concentrar a riqueza nas mãos de uma minoria e ao privar de toda propriedade a imensa maioria da população, haveria de proporcionar primeiro o domínio social e político à burguesia, e provocar depois a luta de classe entre a burguesia e o proletariado, luta que só pode terminar com a liquidação da burguesia e a abolição de todos os antagonismos de classe. Mas também aqui, aproveitando uma experiência ampla, e às vezes cruel, confrontando e analisando os materiais proporcionados pela história, vamos aprendendo pouco a pouco a conhecer as conseqüências sociais indiretas e mais remotas de nossos atos na produção, o que nos permite estender também a essas conseqüências o nosso domínio e o nosso controle.

Contudo, para levar a termo esse controle é necessário algo mais do que o simples conhecimento. É necessária uma revolução que transforme por completo o modo de produção existente até hoje e, com ele, a ordem social vigente.

Todos os modos de produção que existiram até o presente só procuravam o efeito útil do trabalho em sua forma mais direta e Imediata. Não faziam o menor caso das conseqüências remotas, que só surgem mais tarde e cujos efeitos se manifestam unicamente graças a um processo de repetição e acumulação gradual. A primitiva propriedade comunal da terra correspondia, por um lado, a um estádio de desenvolvimento dos homens no qual seu horizonte era limitado, em geral, às coisas mais imediatas, e pressupunha, por outro lado, certo excedente de terras livres, que oferecia determinada margem para neutralizar os possíveis resultados adversos dessa economia primitiva. Ao esgotar-se o excedente de terras livres, começou a decadência da propriedade comunal. Todas as formas mais elevadas de produção que vieram depois conduziram à divisão da população em classes diferentes e, portanto, no antagonismo entre as classes dominantes e as classes oprimidas. Em conseqüência, os interesses das classes dominantes converteram-se no elemento propulsor da produção, enquanto esta não se limitava a manter, bem ou mal, a mísera existência dos oprimidos.

Isso encontra sua expressão mais acabada no modo de produção capitalista, que prevalece hoje na Europa ocidental. Os capitalistas individuais, que dominam a produção e a troca, só podem ocupar-se da utilidade mais imediata de seus atos. Mais ainda: mesmo essa utilidade — porquanto se trata da utilidade da mercadoria produzida ou trocada — passa inteiramente ao segundo plano, aparecendo como único incentivo o lucro obtido na venda.

* * *

A ciência social da burguesia, a economia política clássica, só se ocupa preferentemente daquelas conseqüências sociais que constituem o objetivo imediato dos atos realizados pelos homens na produção e na troca. Isso corresponde plenamente ao regime social cuja expressão teórica é essa ciência. Porquanto os capitalistas isolados produzem ou trocam com o único fim de obter lucros imediatos, só podem ser levados em conta, primeiramente, os resultados mais próximos e mais imediatos. Quando um industrial ou um comerciante vende a mercadoria produzida ou comprada por ele e obtém o lucro habitual, dá-se por satisfeito e não lhe interessa de maneira alguma o que possa ocorrer depois com essa mercadoria e seu comprador. O mesmo se verifica com as conseqüências naturais dessas mesmas ações. Quando, em Cuba, os plantadores espanhóis queimavam os bosques nas encostas das montanhas para obter com a cinza um adubo que só lhes permitia fertilizar uma geração de cafeeiros de alto rendimento pouco lhes importava que as chuvas torrenciais dos trópicos varressem a camada vegetal do solo, privada da proteção das arvores, e não deixassem depois de si senão rochas desnudas! Com o atual modo de produção, e no que se refere tanto às conseqüências naturais como às conseqüência sociais dos atos realizados pelos homens, o que interessa prioritariamente são apenas os primeiros resultados, os mais palpáveis. E logo até se manifesta estranheza pelo fato de as conseqüências remotas das ações que perseguiam esses fins serem multo diferentes e, na maioria dos casos, até diametralmente opostas; de a harmonia entre a oferta e a procura converter-se em seu antípoda, como nos demonstra o curso de cada um desses ciclos industriais de dez anos, e como puderam convencer-se disso os que com o “crack” viveram na Alemanha um pequeno prelúdio; de a propriedade privada baseada no trabalho próprio converter-se necessariamente, ao desenvolver-se, na ausência de posse de toda propriedade pelos trabalhadores, enquanto toda a riqueza se concentra mais e mais nas mãos dos que não trabalham; de [...](2)




Notas:

(1) Notas Sir William Thomson. grande autoridade na matéria, calculou em pouco mais de cem milhões de anos o tempo transcorrido desde o momento em que a Terra se esfriou o suficiente para que nela pudessem viver as plantas e os animais.

(Nota de Engels) Engels refere-se à crise econômica de 1873/1874. (N. da R)

(2) Aqui se interrompe o manuscrito. (N. da R.)

domingo, 2 de junho de 2013

GALILEU GALILEI



(artigo publicado no jornal jpporto)


É muito bom ser professor de História. Essa polêmica Ciência nos dá muita tranqüilidade (a chamada paciência histórica) porque os exemplos que dela emana vindos do passado muito nos revelam e ensinam.


Como o de Galileu Galilei nascido em Pisa em 15 de fevereiro de 1564 e morto em Florença em 8 de janeiro de 1642, foi um dos mais notáveis entre os físicos e astrônomos renascentistas e é considerado um dos maiores gênios da humanidade juntamente com Leonardo da Vinci, Isaac Newton e Einstein.

Em Florença, Itália, um dos maiores estudos de Galileu levou-o a conclusão que o “Centro Planetário” era o Sol e não a Terra, que nosso planeta azul girava ao redor do Sol como os outros planetas, conforme a teoria do grande Nicolau Copérnico.

Na segunda década de 1600 Galileu Galilei esteve em Roma onde enfrentou drástica oposição as suas opiniões, principalmente advindas do Tribunal do Santo Ofício (Inquisição) que pronunciou que a teoria Heliocêntrica que declarava que o Sol era o centro do universo era heréticaue declarava que o Sol era o centro do universo era herin.

 (ou seja, contra os princípios da Igreja Católica) e que a idéia de que a Terra se move estava "teologicamente" equivocada.

         Galileu era católico fervoroso, mas tinha um temperamento conflituoso, vivendo numa época atribulada na qual a Igreja Católica endurecia sua doutrina para fazer frente à Reforma Protestante. O Papa sentiu que a aceitação do modelo Heliocêntrico como ferramenta tinha sido abusada e convocou Galileu a Roma para ser julgado. Após um julgamento longo e atribulado foi condenado a abjurar publicamente as suas idéias e a prisão domiciliar para não ser levado a fogueira. A prisão de Galileu tornou-se um exemplo muito citado da "luta entre fé e ciência". Enquanto que na Itália e nas zonas católicas seus livros eram proibidos, Galilei publicou sem quaisquer problemas nos Países Baixos, onde o protestantismo se tinha sobreposto ao catolicismo. Reza a lenda que, ao sair do tribunal após sua condenação, disse uma frase célebre: "Eppur si muove!", ou seja, "contudo, ela se move", referindo-se a Terra.

         Galileu morreu cego condenado pela Igreja, longe do convívio público. Obras de Galileu foram censuradas e proibidas pela Igreja Católica Romana. 341 anos após a sua morte, em 1983, num gesto de humildade, a Igreja Católica acabou revendo o processo e decidiu pela absolvição de Galileu que ocorreu em 1999.

         Casos históricos como o de Galileu demonstram a ironia do destino em relação àquelas pessoas que pretendem fazer mudanças, que não aceitam de braços cruzados o mundo injusto como ele está e procuram lutar para modificá-lo.

         Hoje os tempos são outros, porém os inquisidores de plantão continuam a solta, alguns disfarçados, outros mais descarados, porém continuam em busca daqueles que ousam querer mudar o “status quo” para enviá-los as fogueiras.

         Em homenagem a esses neo-inquisidores prometo se um dia eu voltar a ter um cachorro ou um gato de estimação (cachorrinho este, que a minha filha Luíza, muito tem me cobrado) se chamará Galileu Galilei, e ao latir, tentarei ensiná-lo a dizer: “Eppur si muove!
 Este é o meu gato Galileu (promessa feita promessa cumprida)

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